Treina Comigo escrita por Carlos Abraham Duarte


Capítulo 2
Sangue no Paraíso


Notas iniciais do capítulo

A concepção das "bolhas-universo", ou universos "pi-parasitas", é de minha autoria e do meu amigo Alexis Bernardo de Lemos. Apareceu pela 1ª vez em nosso "Projeto Espelho e Árvore".

"Morning star" é uma arma medieval em forma de bola de ferro crivada de pontas, presa a uma corrente.



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Aquilo que não nos mata torna-nos mais fortes.

- Friedrich Wilhelm Nietzsche

Paraíso dos Monstros...

Uma de muitas e estranhas aberrações denominadas de "bolhas-universo" que flutuam como bolhas de espuma na fronteira de libração entre a quinta e sexta dimensões, entre o hiperespaço e o ultraespaço - vibrando em algum lugar do cosmos entre a Terra, o Mundo Celestial e o Mundo das Trevas. Usando de Metamagia, Tenmei Mikogami, Diretor da Academia Youkai e um dos misteriosos "três Lordes Negros", abrira tal universo-bolha e o transplantara para uma realidade preestabelecida com seu próprio espaço-tempo, passando a utilizá-la como um santuário da vida selvagem para animais mágicos bizarros de espécies ameaçadas de extinção na Terra ou em outros planetas.

Um mundo pacífico e paradisíaco - até então.

- Moka-san...! - arfou Tsukune Aono, que vestia uma camiseta branca suja de terra e uma calça de moleton surrada, erguendo os punhos cerrados em atitude ameaçadora. Sangrava pelo nariz e pela boca, as íris rubras com pupilas verticais coruscavam, o suor escorria pelo rosto todo e os cabelos cinza desgrenhados; uma aura negra misturada com vermelho fluía em volta dele. Rilhou os dentes.

Moka Akashiya - Ura-Moka - trazia na mão esquerda o legendário Belmont, o chicote alquímico que cancelava o poder do selo que lacrava sua personalidade maligna. Uma portentosa aura negra, tão monstruosa quanto refulgente, envolvia seu corpo inteiro. Ela encarou friamente seu oponente, a face iluminada com a ânsia de lutar e uma sede de sangue que não prometia misericórdia.

- Tsukune, prepare-se pra apanhar até morrer!

Os movimentos da bela vampira de olhos vermelhos e cabeleira cor de prata foram rápidos demais para a vista humana acompanhar. Antes que Tsukune Aono pudesse esboçar sequer um gesto de resistência, Moka Akashiya saltou para frente e atacou, tal como uma tigresa siberiana de garras e presas afiadas. O impacto de seu chute circular ou roundhouse kick atingiu violentamente a mandíbula do rapaz ghoul que nem uma marretada desferida por um deus mitológico, com a força de cem homens. Tsukune levantou no ar e caiu estatelado na relva alta, com o sangue espirrando do queixo quebrado (fosse ele 100% mortal e viraria defunto, de-chu!).

- Lento. E fraco de ossos - falou ela no seu tom frio e desdenhoso, pisando com o sapato no pescoço de Tsukune, cujos olhos e cabelos readquiriram a aparência normal. - Como esperado de um reles humano.

Foi quando seu sexto sentido rastreou três youkis vindo numa velocidade incrível para atacá-la por trás. São elas. Três grandes bolas de luz astral, invisíveis aos olhos da carne, se bem que perfeitamente visíveis ao "detetor youki" que os vampiros possuem.

Foi nesse instante que um uníssono e altissonante grito de guerra entoado por um trio de vozes femininas sacudiu o ar.

Moka virou-se repentinamente e estava preparada para golpear suas antagonistas. Pela percepção da força vital, graças a seus sentidos vampíricos, já havia pressentido a youki delas, e que vinham com a intenção de matar.

Em um ataque coordenado elas lançaram-se sobre a solitária guerreira das trevas: a também vampira Kokoa Shuzen, sua meia-irmã caçula, empunhando seu fiel Kou-chan na forma de uma pesada e contundente morning star, a súcubo Kurumu Kurono exibindo as garras de quinze centímetros de comprimento, cortantes como adagas, e a mulher das neves Mizore Shirayuki atirando uma saraivada de afiados dardos de gelo com as manoplas mágicas feitas de gelo Elemental.

Moka girou rodopiando a vasta cabeleira prateada, desviando-se habilmente dos ataques furiosos das três ayashis e revidando com uma série de socos, chutes de canela, joelhadas, alternando com outros golpes apurados de kickboxing numa explosão estonteante de velocidade sobre-humana. Quase ao mesmo tempo, um novo youki apareceu - e um enxame de cartas de baralho que pareciam ser feitas de metal passou assobiando pelo ar, apenas alguns centímetros acima de suas costas, mas sem lograr alvejá-la.

"Yukari-chan e seu baralho cigano enfeitiçado", pensou a vampira enquanto fazia o movimento do pêndulo para se esquivar do veloz ataque aéreo das mortíferas lâminas do Tarot que voavam todas ao mesmo tempo como um esquadrão de caças em miniatura. "Eu reconheceria esse youki até a cem metros de distância."

Yukari Sendo, a pré-adolescente bruxa meio-youkai cujos poderes mágicos lidavam com a Terra e os Metais, além do Caminho Terciário Vodu, surgira no campo de batalha a fim de ajudar seus amigos na luta contra a supervampira Moka. Seus dons de telecinese, graças à varinha mágica que funcionava como um canalizador e amplificador energético, permitiam-lhe fazer levitar e teleguiar as lâminas de metal que nem mísseis.

Tinham selado o youki, tal qual no dia anterior, nos Arcos Mononoke, visando me pegar de surpresa. Mas ao machucar deliberadamente o Tsukune, tirando sangue dele, eu as obriguei a exacerbar suas emoções, e, com isso, aumentar sua própria energia youkai, assim traindo sua localização antes da hora.

Enquanto Tsukune, ensanguentado e com o queixo fraturado, jazia inerte na grama, as suas amigas corriam e saltavam ao redor de Moka, tentando derrubá-la. A vampira viu-se no centro de um torvelinho de lâminas e garras e armas, que coruscavam, golpeavam e rasgavam o ar, mas sempre erravam o alvo, pois a ágil Moka mudava ininterruptamente de posição e com tamanha velocidade que desnorteava todos que pelejavam por acompanhá-la. Kokoa, Kurumu, Mizore e Yukari cortavam apenas o vazio e atingiam-se umas às outras, confundidas pela rapidez fulminante e desmoralizadas pela ferocidade bestial com que Moka reagia e contra-atacava distribuindo roundhouse kick com uma precisão alarmante.

A essência do poder de um vampiro é a habilidade sobrenatural de converter seu youki, sua aura demoníaca em pura força de magnitude incomensuravelmente superior à simples força muscular bruta.

Toda a refrega durou 117 segundos. Kokoa, Kurumu, Mizore e Yukari estavam caídas, ofegando e sangrando por vários ferimentos obtidos.

Foi quando Moka sentiu o youki de Ruby Toujyou. Simultaneamente, dezenas de feixes negros de trevas baixaram do céu róseo-violeta-claro para envolver o corpo da linda vampira e imobilizá-la com força irresistível. Tais tentáculos flexíveis de escuridão e sombras saíam das seis enormes asas de corvo, negras como a noite, com que a jovem bruxa voava pelos ares - tendo nas mãos o Grande Grimório que é seu item mágico e catalisador para usar magia.

- Te peguei, Moka vampira!

Mas Moka estava preparada para ela, e, antes que os feixes de negrume de Ruby se enroscassem em seu corpo, a vampira já se achava fora do alcance dos mesmos. (É notório que vampiros só perdem em velocidade e agilidade para otoko-ookami, lobisomens, e somente numa noite de Lua cheia. Chu!)

- Chega, Ruby-san - disse Moka. - É o bastante por ora.

Os tentáculos filamentosos saídos das asas de Ruby retraíram-se. Em seguida, a bela karasu onna pousou suavemente à frente de Moka, e suas asas recolheram-se. (Além de lidar com os Caminhos elementais Terra e Madeira como principais, e Animais e Plantas como secundários, sua magia xamânica Onmyoji combinava Trevas+Animais. Chu!)

- Vamos parar o treinamento então? - ela indagou com uma olhadela para as garotas, que foram se levantando lentamente, sangrando muito e com as roupas rasgadas, e para o próprio Tsukune, que tinha o peito coberto de sangue e o maxilar quebrado, mas já sentara e cobria a boca ensanguentada com as mãos. - Foi um bocado puxado para o primeiro dia.

- Eles têm youki correndo nas veias - retrucou Ura-Moka. - Suportam bem... - Interrompeu-se, de súbito, pois o que viu fê-la sentir uma quentura nas faces.

Kokoa, ajoelhada ao lado de Tsukune, lambia o queixo ensanguentado do rapaz, lambia o sangue escorrendo copiosamente da boca e do nariz dele. "Hmmm...! Delicioso!", murmurava ela com deleite, ronronando feito uma gata vadia no cio.

- Kokoa-chan! - exclamou Moka, as faces tingidas de rubor escarlate, a boca sensual repuxada num esgar medonho deixando à mostra suas presas retráteis arreganhadas. Ela conhecia melhor do que ninguém a atração irresistível que o cheiro do sangue humano exercia sobre os vampiros - pois não se alimentava, em sua forma degenerada de Omote-Moka, quase diariamente, religiosamente, do sangue de Tsukune, o ÚNICO humano legítimo da escola? - mas por alguma razão inconfessável ficara amofinada à vista da caçulinha mimada de Lorde Shuzen a lamber o rosto sanguinolento de seu novo pupilo. - Enxergue o seu lugar!

- Onee-sama... - balbuciou a garota vampira ruiva, interrompendo seu "lanchinho" e sorrindo timidamente para a irmã mais velha. No instante seguinte, viu-se arrojada brutalmente a vinte metros de distância por um chute circular da poderosa Moka, indo cair de cara no chão áspero. Tsukune e as meninas olhavam abestalhados para aquela cena.

- UAU! Estão cada vez melhores! - gemeu Kokoa levantando a cabeça, com uma expressão de felicidade no rosto quase infantil lanhado de cortes sangrentos, emoldurado por dois rabos-de-cavalo de cabelos cor de cenoura, revirando os olhos verdes. - Eu adoro os chutes de muay thai e kickboxing da Moka onee-sama!

(Cá entre nós, parece que a Ruby-san não é a única masoquista do pedaço, de-chu!)

Mizore, Kurumu e Yukari reuniram-se protetoramente em torno de Tsukune, que colocou o dedo indicador na ponta do nariz e a seguir fez um gesto de "OK" com a mão (a ponta do polegar unida à do indicador, formando um círculo, na altura da cabeça).

Moka, por seu turno, tinha plena consciência de que cada uma daquelas garotas de diferentes raças dotadas de habilidades sobrenaturais mataria e morreria por seu amado Tsukune - e ela também, a bem da verdade, apesar de seu orgulho de vampira a impedir de admitir tal "fraqueza de sentimento", ao contrário das demais.

- Tsukune - principiou devagar e com uma brandura na voz que não combinava em absoluto com o furor assassino com que ela o atacara pouco antes. - Você já sabe como funciona, não sabe? Um vampiro pode se regenerar rapidamente de quaisquer ferimentos e fraturas bombeando sangue para o local da lesão. Em nós, por termos o sangue superforte e concentrado, a ação das plaquetas é milhões de vezes mais rápida que nos humanos. Sendo você um ghoul, mesmo selado, pode acessar o poder restaurador do sangue vampírico em seu corpo para regenerar o osso do queixo, apenas pela força de vontade. Faça-o!

Tsukune entendeu. Pelo poder da vontade e da imaginação consciente, usando o que os místicos chamam de Pensamento Mágicko, foi redirecionando o fluxo sanguíneo que se achava eivado de "esteroides vampíricos" de modo a percorrer seu corpo até a área afetada, mantendo-se focado em aumentar a circulação sanguínea para a mandíbula fraturada a fim de produzir novas células em ritmo acelerado. Mais rápido... Mais rápido. Quase podia ver na sua imaginação a corrente sanguínea transportando cálcio para colar as partes fissuradas, depois o surgimento do calo ósseo unindo a fissura com a parte intacta do mento, o início do processo de calcificação. Admirou-se com a regeneração acelerada de seu tecido ósseo após sofrer uma fratura tão violenta. O sangue de Moka-san tem poder!

- Em poucas horas a calcificação estará completa, a remodelagem também, e você poderá falar e comer normalmente - disse Moka, dando as costas para Tsukune, que continuou a ser mimado por Kurumu, Yukari e Mizore. - Vai ficar mais forte que antes.

Ruby, um pouco mais afastada que as outras, o semblante bonito convertido em uma máscara impassível, acompanhava tudo nos mínimos detalhes. "Vampiros, tanto no Oriente quanto no Ocidente, são seres agressivamente territoriais", refletiu a sensual e bela bruxa cujos ancestrais, fugidos da Inquisição na Europa Medieval, a partir do século XIII, ao chegar às lindas ilhas japonesas fizeram um pacto de sangue com um uzoku, youkai corvo. "A Moka Ura-san tolera a presença da Kurumu-chan, da Mizore-chan e da Yukari-chan assim tão juntinhas em volta do Tsukune-san, praticamente se esfregando nele, porque nenhuma delas é vampira. Já com a Kokoa-chan, que também é vampira e sua própria meia-irmã, sua imouto... ela não perdoa!" E ficou a se perguntar, em silêncio, qual seria a reação da princesa guerreira vampira com olhos de rubi ao tomar conhecimento de todos os detalhes dos treinos entre Ruby e Tsukune... Todas as fantasias sadomasoquistas reprimidas que ela, depois de muito insistir com ele, o persuadira a realizar, sem preconceito, mas com respeito mútuo e amizade, para o benefício mútuo e o autoconhecimento... Muitas, muitas coisas aconteceram. A mera recordação das amarras, das mãos de Tsukune nos seus seios, dos choques elétricos provocados pelas chibatadas com o Belmont, tudo isso deixava Ruby com a pele morena arrepiada de tesão. Ao seu redor rebrilhava um ovoide áurico em tom vermelho-azulado, azul-índigo e rosa-choque, perceptível unicamente a olhos sensitivos.

Melhor assim, que fique trancado em segredo, Ruby pensou com convicção. Aquilo era uma experiência incompreensível quer para Moka, quer para Mizore, Kurumu e Yukari, e não havia nenhuma razão para que elas soubessem a seu respeito. Se era bom ou ruim pouco lhe importava; ficaria com ela para sempre. Pelos próximos cem ou duzentos anos, e até o fim de sua vida natural no plano existencial da matéria física, haveria de entesourar aquele único dia que ela e Tsukune tinham compartilhado a sós no "Paraíso dos Monstros". Era um pequeno pedaço de Tsukune que ela não daria a ninguém. Estamos apenas de passagem pela Terra. Nada nem ninguém nos pertence. Mas esse breve momento feliz com o Tsukune-san, esse pequeno tesouro é só meu. É o que me coube nesta vida.

(Talvez a Ruby-san seja a única que compreende bem os laços cármicos que nessa vida terrena unem o Tsukune e as meninas, e o seu próprio lugar entre eles. Chu!)

- O treino de hoje acabou, pessoal - disse Moka, fitando os amigos um após o outro. - Tsukune precisa descansar pra se recuperar.

- Coitadinho do Tsukune! Deixa eu cuidar bem de você! - disse Kurumu com muita doçura, abraçando protetoramente o rapaz com o rosto moreno manchado de sangue seco.

- Eu também vou cuidar de você, Tsukune - replicou Mizore, num fio de voz, afagando os cabelos negros do estudante humano/ghoul.

- Todas nós vamos, desu - complementou Yukari, que também se esforçava para abraçar Tsukune, malgrado a concorrência das amigas e rivais mais velhas.

- Ora, pra que precisamos dele? - interveio Kokoa, que já se levantara e vinha se aproximando da irmã mais velha; a pele macia do seu rosto rosado não apresentava sinais dos lanhos que alguns minutos atrás ainda sangravam. - Por que não treinamos só nós duas, que nem fazíamos na mansão do papai?

Os orbes de íris vermelhas e pupilas verticais afiladas de Moka fitaram-na. - Kokoa, você é teimosa e imatura, mas possui um youki poderoso, como filha do clã Shuzen. Falta adquirir autodisciplina e controle emocional. No mais, tem pouco a aprender comigo.

- Onee-sama... - Kokoa soltou um gemido longo e choroso, mas o semblante frio da irmã mais velha, com seu olhar duro e severo, não admitia a menor réplica. Suspirou fundo, e, resignada, afastou-se cabisbaixa, tendo seu fiel morcego youkai transmorfo, Kou-chan, pousado no ombro que nem papagaio de pirata.

- Kurumu, Mizore, Yukari - disse Moka encarando cada uma delas. - O que vale para a minha irmã vale igualmente para vocês. Apesar de não serem vampiras têm potencial para virem a ser boas guerreiras, tanto mais se trabalharem em equipe para compensar seus pontos fracos, de youkais classe B e A.

Um orgulho indisfarçável iluminou os rostos do trio de garotas youkais. Por fim, Moka se dirigiu ao moço japonês em cujas veias corria o seu poderoso sangue imortal.

- Tsukune, o que eu falei antes é pura verdade. Você é lento demais, não reage rápido o bastante para se defender contra um atacante sobrenatural, apesar de ter aprendido a sentir o youki e a intenção de matar do adversário sem olhar para ele. Ainda assim, não conseguiu evitar meus golpes a tempo e contra-atacar. Na forma humana, com seus poderes selados, a sua ossatura é frágil como a de um humano inalterado. Desta vez eu te poupei, mas, fique sabendo, se deixar a guarda baixa da próxima vez então você vai morrer.

Enquanto ela falava, Tsukune deixou que sua lembrança recuasse ao dia anterior, ao dia turbulento em que ele deixou-se conduzir pela área comercial conhecida como "os Arcos Mononoke" por uma linda, vistosa, sedutora Ura-Moka trajando vestido de alcinha azul-escuro até o joelho, com detalhes em dourado, uma echarpe azul-celeste e sapatos de tacão alto azuis-escuros (usando o Belmont amarrado na coxa esquerda, fora capaz de anular o selamento mágico que fazia seu alterego violento e cruel adormecer). Tsukune, totalmente embasbacado, seduzido tanto pela estonteante e intoxicante beleza da vampira de olhos vermelhos hitoe e cabelos brancos e longos quanto por seu jeito tão inesperadamente gentil, afetuoso mesmo, de mãos dadas com ele, não percebera então que tudo não passava desde o início de um "simples" treinamento para capacitá-lo a rastrear o youki, a aura demoníaca dos antagonistas - até ver-se perseguido, junto com Moka, por Kurumu, Mizore e Yukari, ensandecidas quer com o furto do Belmont pela vampira, quer com a súbita intimidade entre ela e Tsukune, como se estivessem num encontro romântico!

"Ao fingir ter interesse por mim, pra Deus e o mundo ver, a Ura-san provocou, de propósito, o ciúme das meninas, fazendo com que as emoções delas se elevassem tão súbita e violentamente junto com o fluxo de youki que tentavam ocultar que até um meio-humano e meio-youkai feito eu, sem experiência nenhuma, pude sentir, e localizar", refletiu Tsukune, que em seus pensamentos repassava os acontecimentos do dia passado. "Foi graças a esse estratagema sacana da Ura-san que fui capaz de usar pela primeira vez o "detetor youki" pra sentir não só a presença de outras criaturas sobrenaturais mas também a intenção delas de matar, e nos proteger delas." De olhos fechados, podia "ver" o youki, a aura de energia sinistra de todo e qualquer youkai se aproximando sob a forma de luzes de cor indefinível, pálida, bizarra, pulsante, antes do ataque - enxergar sem precisar olhar, tal qual um morcego voando na noite escura não se guia pela visão e sim pela ecolocalização.

"Merda", praguejou em pensamento, "Eu pude sentir o youki da Ura-san, mas não consegui reagir com a rapidez necessária pra me defender dos golpes dela. Se ao invés da Moka fosse a Karua-san, eu já estaria morto a essa hora!" O que aconteceria, então, se da próxima vez ela selasse o seu youki, apagando a sua presença até que fosse tarde demais?

Moka fez uma expressão risonha - ou irônica - pelo repuxar dos lábios de coral rosado, como que para abrandar a impressão de crueldade deixada pelas palavras duras que tinha acabado de proferir.

- Pelo menos, Tsukune aprendeu hoje que o uso da youriki não serve só pra lutar, mas também pra soldar ossos quebrados. Na medida em que for usando suas bioenergias youkais com mais frequência, vai ser capaz de abreviar o tempo de cura, de três horas pra uma hora, e de uma hora pra trinta minutos... Esperado de um lendário vampiro classe S.

Ura-san, quem é você... O que eu sou pra você? Tsukune mergulhou cada vez mais profundamente nessa indagação. Em pensamento estava de volta à área comercial, passeando de braço dado com Ura-Moka Akashiya. Enquanto pensava, via a si próprio de mãos entrelaçadas com a linda e sensual vampira de cabelos argênteos e corpo fascinante. Podia sentir-lhe a tepidez da pele, a maciez e o calor dos seus seios quando Moka, de forma deliberadamente provocante, colava o seu corpo contra o dele. Conseguia se lembrar do som das risadas cristalinas que ela dava em face do constrangimento de Tsukune ao ser alvo de um pombo (tsc, tsc, tsc!). E no fim ainda tivera o desplante de dizer que tinha feito tudo aquilo só para se divertir, e não para treinar Tsukune como todos supunham. Moka das mil caras. Pareceu a Tsukune que ela era como uma daquelas bonequinhas russas que se encaixam uma dentro das outras, as famosas matrioshkas. Pensou no chute quilométrico que recebera da orgulhosa vampira pela "ousadia" de tê-la abraçado, visando, por meio desse estratagema, provocar ainda mais o ciúme de suas perseguidoras, induzindo-as a extravasar o youki para que ele, Tsukune, fosse capaz de localizá-lo. "Não consigo entender nem a cabeça nem o coração da Ura-Moka", suspirou mentalmente.

(Infelizmente, porém, vampiras não vêm com um manual de instruções, de-chu!)

A voz de Ruby interrompeu os devaneios de Tsukune. - Aí vem ele, pessoal. É Aung-sama.

Aung Kan Ki Miao era um mago youkai especialista nos Caminhos de Magia que lidam com Luz, Animais e Espaço. Podia tornar-se invisível por distorcer a luz ou o próprio tempo, controlar animais reais ou criar animais imaginários usando de Metamagia para acessar os Registros Akáshicos e fazer as formas-pensamento adquirirem substância física no plano existencial da materialização normal. Além disso, dominava o teletransporte e o uso dos sentidos a longas distâncias, tais como a visão remota, a clarividência, clariaudiência, viagens astrais e até viagens interplanares. Tantos poderes e habilidades contidos no invólucro aparentemente frágil de um pequeno e mirrado ser humanoide de 1,20m de altura, pele negra retinta, coberta de miríades de brilhantes, crânio volumoso e redondo com três olhos, trajando um hábito cor de açafrão de monge tibetano!

Aung, assim como Ruby, trabalhava para o Diretor Mikogami. Era o Zelador do "Paraíso dos Monstros". Tinha sido ele quem induzira magicamente os mononokes daquela dimensão artificial a atacarem Tsukune e Ruby, dias antes, a fim de forçar o rapaz a lutar, lançando mão de sua superforça de ghoul latente, para se proteger e à sua companheira. Fazia parte dos planos elaborados por Mikogami para adestrar as habilidades marciais do jovem Tsukune, dissera o sábio humanoide. Era o "grande conflito" que se prenunciava.

Todos os sete jovens ergueram os olhos para cima, para ver Aung Kan Ki Miao que descia do céu rosa-dourado, pairando no ar, envolto em uma ampola de campo de força que parecia uma grande bolha de sabão iridescente. Tendo visto pelas vias parapsíquicas que a vampira Moka dera por encerrado o treinamento daquele dia, Aung viera para levá-los de volta até o lugar onde uma "porta induzida" - um portal interdimensional - os recambiaria para a Academia Youkai.

O pequeno youkai preto segurava na sua mão direita um shakujo, cajado budista com seis anéis que representam os seis estados da existência: humanos, animais, inferno, fantasmas famintos, deuses e deuses ciumentos.

Ao tocar silenciosamente o solo, o campo energético transparente desfez-se tal qual uma bolha de sabão que estoura, sem produzir o menor som. Os jovens, maravilhados, foram se aproximando.

- Venham, venham, crianças de Mikogami-sama - chamou-os amistosamente Aung. Seu trio de olhos coloridos (amarelo, azul e vermelho) permitia uma visão do Universo que abarcava todas as faixas do espectro eletromagnético: três imagens superpostas, uma na faixa da luz visível até o ultravioleta, outra captando os raios X e gama, e a terceira explorando o submundo do infravermelho, dos raios T, das micro-ondas e das ondas de rádio. - Deixem que Aung Kan Ki Miao os transporte em uma pérola de luz transparente com a velocidade do pensamento.

- Ele é um cara legal, mas não sei por que tem que usar esse palavreado esquisito - Kurumu cochichou para Yukari.

- Não tente entender um "homem santo" feito o Aung-sama, Kurumu-chan, que o seu cérebro vai entrar em parafuso, desu - retrucou a menina bruxa, rindo.

Rodeado pelos estudantes, Aung agitou o shakujo, fazendo as argolas repicarem, sussurrou algumas palavras dum feitiço páli e todos foram englobados dentro de uma luz dourada e suave que brotou da extremidade superior do cajado. A enorme bolha dourada e translúcida se transformou em algo parecido com vidro, subiu e flutuou no ar - e desapareceu repentinamente sem barulho algum. Era como se nunca tivesse estado ali.

Tudo isso aconteceu num abrir e fechar de olhos; frações de segundos depois, o mago youkai e seus jovens acompanhantes reapareceram ao pé das verdes colinas na beira do rio Ziyi, do outro lado daquele mundo estranho, em cujas encostas gramadas salpicadas de arvoredos localiza-se o principal portal de conexão entre o "Paraíso dos Monstros" e a Youkai Gakuen.

- Lá - disse Aung, apontando com o seu cajado de peregrino para o sopé da maior das Colinas de Gan; no rochedo da colina, Tsukune, Moka, Kokoa, Kurumu, Mizore, Yukari e Ruby perceberam uma gruta. - O Portal da Gruta dos Cristais Arco-Íris. É a vossa Ponte de Anthakarana.

O youkai ergueu o cajado e direcionou sua ponta para a entrada da gruta e emitiu seis notas musicais sopradas em elevada frequência vibratória, três vezes. Era a frequência vibratória que continha as chaves responsáveis pela abertura do portal.

Os jovens e Kou-chan (que voava) se dirigiram à entrada da caverna que brilhava com uma vívida luz azul-prateada-estelar. Tsukune olhou de soslaio para a vampira Moka, a tempo de vê-la entregar o chicote alquímico na mão de Ruby. Pensou, constrangido: Moka-san empunhando o Belmont é a própria imagem da Domme, uma verdadeira dominatrix!

De repente, quase contra sua vontade, recordou-se do sonho que tivera com Moka na noite retrasada, antes de o treino marcial começar. Aquele sonho! Ele e a vampira de cabeleira prateada, seminus, juntos na cama... Puro erotismo. E então ela estava nua em seus braços. Livre e amoral que nem uma Lilith. "Não se preocupe", ela dizia ternamente. "Está tudo bem. Eu vou cuidar bem de você, Tsukune..."

Sim, foi um sonho maravilhoso. Pena não ter sido mais que um... sonho.

A última coisa que Tsukune viu antes de entrar pelo portal aberto foram os imensos e expressivos olhos verdes, futae, de Moka, emoldurados pelos longos cabelos rosa fúcsia e cara de loli, encarando-o de forma enigmática.


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Notas finais do capítulo

Assim findou o primeiro dia de treinamento marcial de Tsukune, sob a severa disciplina de Ura-Moka Akashiya. Saldo: uma mandíbula fraturada (podia ser pior!).
"Anthakarana" é um conceito védico que significa "caminho", "ponte", "fio condutor" através do qual a nossa mente nos leva a outros níveis de consciência. Misticamente, representa a "ponte do arco-íris" (tal como a Bifröst da mitologia germano-escandinava), a ponte de Luz ou o "caminho iluminado" que permite ao neófito a passagem para os "mundos superiores".
Páli é uma língua indo-ariana aparentada ao sânscrito clássico, usada como língua sagrada pelos busdistas do ramo "theravada", do Sri Lanka (antigo Ceilão) e dos países da Indochina.
No próximo capítulo, a aparição de um novo personagem traz lembranças a Tsukune e desperta desconfiança!



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