Ameno Dore escrita por MyKanon


Capítulo 5
V - Fraqueza




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_ Sério mesmo que não tem perigo ir embora sozinha neste horário?

Já fazia tempo que aparições repentinas não sobressaltavam Itacy. Pelo menos não aquelas totalmente desprovidas de qualquer poder que fosse.

Encarou-o de frente com frieza, tentando não demonstrar como o desprezava.

_ Sério. Boa noite, Lorenzo.

Dizendo isso, voltou a andar.

_ Fiquei sabendo de uns incidentes bem desagradáveis pela região... Nem isso te assusta?

_ Não mais que ser perseguida por um colega desconhecido e misterioso. - respondeu sem se virar, com seu colega ainda em seu encalço.

_ Misterioso? Uh... O mistério não te atrai?

_ Prefiro a clareza do explícito.

Ouviu-o rir discretamente e então silenciar. Continuou caminhando sem se atrever a olhar para trás. Mas quando notou que o silêncio era quase completo, não resistiu conferir.

_ Procurando por mim? - ele perguntou ao notar que ela olhara para trás.

_ Pretende me seguir até em casa?

_ Posso?

_ Absolutamente. Só não espere sair vivo de lá. Vamos?

_ Uau, pretende me matar?

_ Sabe, é uma coisa que não consigo controlar...

_ Você não me engana. Com esse seu rostinho angelical, aposto que vai se tornar enfermeira, desesperada em salvar vidas...

_ É, você já pode abrir uma tenda de adivinhação. - respondeu sarcástica, parando e encarando-o de braços cruzados.

+

Enzo observou sua costumeira postura soberba de braços cruzados e sobrancelhas erguidas. Não era tão alta, mas emanava uma energia tão vibrante que parecia maior e mais poderosa que realmente era.

Fora que tinha aquele quê a mais que o fazia ter essa vontade de provocá-la e irritá-la para saber até onde seria capaz de ir. Talvez aquele gênio indomável aliado à arrogância descomedida. Claro que nada disso teria despertado seu interesse se não fosse velado pelos seus olhos tão azuis apertados em completo descaso.

_ É, talvez eu faça isso.

- Sim, faça.

_ E então? Vamos?

_ Claro.

Itacy veio em sua direção, ainda de braços cruzados, e Enzo não consegui evitar contrair as sobrancelhas em estranhamento. Ao chegar a poucos centímetros de distância, ela estendeu as mãos e tocou seus ombros quase com receio e pressionou o direito, fazendo-o se virar.

_ Você para a sua, e eu para a minha.

_ E se eu for seu vizinho?

_ Nós dois sabemos que não é. Agora, vai. - empurrou-o com força, fazendo-o tropeçar alguns passos para a frente.

Enzo riu e deu-se por vencido, seguindo seu caminho. Não sem antes lançar um último olhar para a colega logo atrás, batendo as mãos uma na outra como para se livrar da sujeira, ou num simples ato de satisfação por sair vitoriosa daquela batalha. Daquela, se dependesse dele.

+ + +

Itacy completou as últimas lacunas da sua música.

Sempre que a professora Mary Help – como gostava de ser chamada – estava com preguiça de dar aula, distribuía letras incompletas de músicas para que os alunos completassem enquanto a ouviam.

_ Já? - perguntou Francine já sem surpreender.

_ Tenho bons ouvidos.

_ E o que não é bom?

_ Quê?

_ O que você tem de ruim? Consegue se lembrar de alguma coisa? - perguntou quase amargurada

_ Ainda não dominei o mundo. Isso é uma droga. - disse enquanto estudava as longas unhas quadradas.

Francine meneou a cabeça e tentou terminar seu exercício. “Talvez devesse se lembrar do quanto é arrogante...” Pensou intimamente.

Ao sinal do fim da aula, juntaram seus materiais e deixaram a sala, rumo à quadra da aula de educação física.

Durante o caminho, Itacy ouviu a amiga desembrulhar alguma coisa, e sentiu um cheiro horrível pairar no ar.

_ Nossa Fran! O que você tem aí?

_ Ué, é meu lanche!

_ De carniça? - perguntou dando uma espiada no embrulho que a outra tinha nas mãos

_ Deixa de ser nojenta! É de rosbife com patê!

Itacy percebeu que além do cheiro lhe ser extremamente desagradável, começava a lhe causar mal estar.

_ Tem certeza que não está estragado? - insistiu.

_ Olha, Tacy, eu não tenho anorexia! Nem tudo me embrulha o estômago!

Itacy sentiu vontade de estapeá-la nessa hora. Tanto por não saber de nada sobre sua vida, como por banalizar o que poderia ser um problema tão sério.

Mas dignou-se a lançar-lhe um olhar reprobatório, e deixar-lhe sozinha no caminho para a quadra.

_ E aí Tacy! - cumprimentou sua colega de sala e de balé, Caroline – Você vem pro nosso time, certo?

_ No próximo, Carol. Deixa eu me aquecer antes.

De onde estava, Itacy quase teve de gritar para se fazer ouvir para a amiga que se encontrava no meio da quadra, preparada para jogar.

Era só um pretexto. Não estava muito a fim de se exercitar. Seus pensamentos estavam completamente tomados pela preocupação de sua suposta anorexia/bulimia se espalhar pelo colégio. Se chegasse aos ouvidos dos professores, seria desastroso! Seria enviada para o aconselhamento, tratamento, grupos de apoio e sabe-se lá o quê mais...

Estava prestes a arruinar tudo...

Tentou pensar numa forma segura e eficaz de corrigir seus erros enquanto caminhava por entre as arquibancadas.

_ Tacy... - chamou uma voz fraca atrás de si.

Virou-se nos calcanhares com as mãos ainda nos bolsos da calça.

_ Ah. - tentou parecer decepcionada com a companhia recebida - O que é agora?

_ Eu só queria me desculpar... Fui horrível ainda há pouco... Eu deveria estar te ajudando.

Na verdade, Francine jamais poderia lhe ajudar. Nem qualquer outra de suas amigas. Por mais que se empenhassem.

_ Esquece.

_ É sério. Você me desculpa?

_ Contanto que você pare com essa ceninha melodramática insuportável...

Um sorriso radiante surgiu no rosto de Francine, e pulando no pescoço da amiga, disse:

_ Obrigada amiga! Nunca mais serei tão imbecil!

_ Tá bom, Fran, tá bom... Agora chega...

Francine afastou-se da amiga e segurando suas mãos, perguntou:

_ Falando nisso, você está fazendo alguma coisa para... O que foi?

O hálito de Francine a incomodava profundamente. Era por causa daquele lanche de aroma odioso. Cambaleou um passo para trás, até apoiar-se na grade da quadra.

_ Estou meio tonta...

_ Claro! É tudo por causa da-

_ Shh!! - pediu tentando fazê-la fechar a boca.

_ Tacy, vamos, melhor irmos para a enfermaria...

_ Não, não! Me deixa Fran!

Itacy livrou-se das mãos da amiga e começou a andar na direção da saída do ginásio.

_ Tacy, você está me preocupando!

A cada palavra que Francine proferia, deixava Itacy mais zonza e enjoada.

_ Fran... Do que era o patê? - perguntou ainda sem se virar, quase correndo para a saída.

_ O patê? Do lanche?

_ É! Do lanche, droga! - Itacy agora cobria o nariz com a manga da blusa.

_ Era de molho de alho, mas por quê você quer saber? Tacy!

Francine agarrou o pulso da amiga, fazendo-a tropeçar e cair. Não fosse aquela praga de patê, não estaria tão enfraquecida a ponto de sofrer uma queda causada por sua força tão limitada.

_ Tacy! Me desculpe! Você está bem?

_ CALE A DROGA DESSA BOCA!!! - Itacy berrou de raiva e de dor, quando ergueu-se sobre os joelhos.

Tocou a testa e percebeu que sangrava. Devia ter se cortado em alguma pedra. Mas esse não era o problema.

Francine ajoelhou-se à sua frente, e inicialmente pareceu preocupada com o ferimento da amiga, depois, chocada com o que aconteceu logo em seguida.

Itacy sabia o que ela estava vendo. Sentiu sua pele formigar quando o corte começou a se fechar, regenerando sua pele por completo.

_ T-Tacy... Fechou... Seu machucado... - inesperadamente, Francine tocou a testa da amiga, suja de sangue, porém, intacta.

_ Fechou o quê? Tá louca? - perguntou Itacy irritada, enquanto empurrava a mão da amiga para longe.

_ O que aconteceu com a sua testa? Por que ela fechou?

Primeiro Itacy pensou em negar o fato de ter se machucado, mas o sangue estava lá. Depois pensou em negar o fato do ferimento ter se fechado instantaneamente, mas sua amiga já o havia visto e tocado, completamente curado.

_ N-Não fechou...

Para completar, aquele odor irritante de alho. Sentia-se completamente vulnerável.

_ Fechou, eu vi!

_ Tacy? Você está bem?

Itacy esticou o pescoço sobre o ombro de Francine, para mirar outras duas amigas que se aproximavam, provavelmente preocupadas com sua queda.

Não teria tempo de convencer Francine do contrário, nem de fazê-la jurar segredo quanto àquele acontecimento surreal, por isso, sem pensar muito, agarrou-lhe o pulso e a puxou para perto de si:

_ Preste muita atenção! - sussurrou baixo e rápido – Você não viu nada! Você apenas me viu tropeçar e cair! - seus olhos ardiam em função do hálito da amiga, mas apertou-os, tentando se recompor e prosseguiu – Você não viu nada, entendeu?

Francine prendeu-se no olhar da amiga. Perdeu as forças, perdeu as palavras e até sua própria consciência. Mas uma coisa havia restado... Seu instinto, e esse lhe dizia que a única coisa certa a fazer, era obedecer a Itacy.

Confirmou com um aceno de cabeça, sem forças para emitir qualquer som.

_ Ótimo. Não me siga.

Antes que suas outras amigas pudessem se aproximar e se alarmarem com todo aquele sangue em sua testa, Itacy levantou-se e correu para fora da quadra. Atravessou os portões de ferro que a protegiam e ganhou o pátio onde os alunos passavam o intervalo silenciosamente.

Era melhor que estivesse fraca como no início da semana, assim o corte não teria se regenerando bizarramente, e não teria de ter hipnotizado sua amiga.

Maldição!” Quase soluçou ao praguejar em pensamento, mas não se permitiu. Quando seus olhos se encheram de lágrimas, lutou para não deixá-las aflorar.

Diminuiu o ritmo da corrida, até uma caminhada urgente, cruzando os braços em frente ao corpo.

Talvez fosse hora de encarar a verdade, abandonar a escola e trancafiar-se, como fizera com o irmão. Estava na hora de aceitar sua condição, ao invés de viver contornando as situações desagradáveis, esquivando-se, inventando mentiras, desculpas e até mesmo... O que mais odiava... Invadindo a privacidade das memórias de suas amigas, alterando-as e até apagando-as.

Como era desprezível...

Ao dobrar à esquerda, rumo ao banheiro feminino do pátio, prendeu o ar num susto silencioso. Estacou a poucos passos de seu destino, em dúvida sobre prosseguir ou procurar por outro banheiro.

Continuar significaria aproximar-se dele e não estava nem um pouco a fim de conversar, e menos ainda discutir.

Depois de encará-la rapidamente, ele deu uma última tragada no cigarro que tinha entre os dedos, e então o lançou ao chão. Esmagou-o com o pé para eliminar a brasa restante.

Se estava fumando, era de se esperar que estivesse em um local tão isolado.

Continua


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