A Senhora da Montanha escrita por Josiane Veiga


Capítulo 2
Capítulo 2




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A Senhora das Montanhas

Capítulo II

Por Josiane Veiga

Nota: “Maa” significa Mãe de Hindi.

O sol quente contrastava com as sombras frias que as enormes árvores faziam movendo suas folhas ao vento. Live saíra de casa naquela manhã usando um casaquinho de moletom claro, e amarara os cabelos longos em um rabo de cavalo. Parecia uma adolescente, alheia a imagem que tinha.

Durante muitos anos se considerou feia. A Índia é conhecida pela beleza de suas mulheres, mas Live era uma mestiça. Branca demais para a região, ela invejava as coleguinhas de escola que possuíam um tom dourado na pele enquanto ela era não escurecia nem se pegasse muito sol.

Mas um dia ela se viu obrigada a sair do país natal e viajar o mundo junto com outros onze jovens. A missão, destinada a todos os que possuíam um pingente, era fechar um portal que unia o mundo humano ao inferno.

Parecia uma grande mentira, impossível de acreditar, mas Live viveu sim uma aventura. Desde jovem, seu avô a preparou para este feito. Somente após o fechamento do portal, quando ela ainda era uma menina, a guardiã teve liberdade para fazer as próprias escolhas e também para prestar mais atenção a si mesma. Enfim... a aventura acabou, mas a da vida real estava apenas começando.

Depois que conhecera os guardiões, notara que beleza era mais que algum traço da aparência. Começara a apreciar mais seus pontos fortes como os olhos grandes e castanhos esverdeados, e as formas bem feitas do corpo. Sorriu ao pensar que os amigos haviam sido mais que simples companheiros de missão.

Mas apesar disso, Live ainda desconhecia o próprio poder feminino. Por ser a menor do grupo, os outros rapazes nunca flertaram com ela, e mesmo os namorados e paqueras da escola e da faculdade, eram apenas garotos comuns. Nunca alguém realmente bonito a olhara. Infelizmente a aquariana não percebia que não era por falta de beleza e sim por excesso de franqueza que os rapazes mais lindos (e também mais fúteis) se afastavam dela.

Descendo por uma trilha íngreme, ela conseguiu chegar até o local em para ela era um pedacinho do céu na terra. Olhando ao redor, sorriu ao ver que tudo estava no mesmo lugar desde a última vez em que correra por entre as árvores.

Um vasto gramado e um pequeno córrego compunham o ambiente. As árvores eram enormes, mas o sol conseguia adentrar por entre suas folhas. Os pássaros cantavam e a natureza agradecia pelo homem não ter tido ainda a audácia de adentrar naquele lugar e estragar o cenário.

Ecologista ferrenha, Live aprendeu ainda mais com Maire a amar todos os seres vivos. Mas diferentemente da mãe adotiva, ela não tinha a menor paciência com pessoas que não respeitavam a flora e fauna.

“-Blábláblá não resolve. O negócio é a gente descer o braço neles” ela gritava para Maire, antes de ir numa das muitas manifestações de ativistas que as duas freqüentavam.

Mas a guardiã de Libra acreditava no diálogo e proibia Live de se meter em confusão.

Mesmo assim, a indiana sabia que se alguém ousasse interferir no ecossistema da sua casa, ela faria uma briga digna de uma terceira guerra mundial.

Ainda pensava nessas coisas, quando notou que não estava sozinha. De início, pensou que era uma alucinação, um sonho ruim. Mas de fato, constatou que Nicolas Velaz estava lá também, a mais ou menos uns cem metros dela, próximo a um jardim natural de flores nativas.

Mordeu o lábio inferior tentando não avançar em direção a ele e o xingar de todos os nomes feios que conhecia (e não eram poucos!). Então notou que ele estava com uma prancheta grande a sua frente.

O maldito estava pintando seu lugar como se fosse dele!

-O que esta fazendo aqui?

Ele virou-se em direção a ela. Usava uma calça caqui e a camisa xadrez estava suja de tinta.

“Incrivelmente sexy...”

Arregalando os olhos, Live sentiu vontade de se esbofetear. Que porcaria que agora não conseguia olhar para aquele homem sem sentir-se tentada!

-Estou pintando! –ele respondeu calmamente

-No meu lugar secreto!

-Não vi nenhuma placa indicando que eu não poderia pintar aqui.

Live respirou fundo tentando não perder a paciência. Suspeitava que ele gostava de vê-la brava, por isso dava essas respostas tão desafiadoras.

-Você é sempre assim? – ele perguntou de repente.

Ela grudou os olhos nos dele, que eram tão verdes quanto os dela.

-Assim como?

-Descontrolada...

Live abriu a boca, mas conseguiu segurar o palavrão a tempo. Realmente, ele estava a provocando! E ela não cairia desta vez!

-Sou calma...

-Não parece –ele a interrompeu.

Ela respirou fundo e fechou os dedos. Tentou contar até dez e recomeçou:

-Sou calma, só fico nervosa quando não tenho minha privacidade respeitada.

Nicolas passou as mãos pelos cabelos e sorriu. Sem mais palavras, ele virou-se em direção aos papéis, e com a aquarela nas mãos, voltou a pintar. Rígida de raiva, Live por pouco não pegou os desenhos e os atirou no córrego.

-E então? –ela perguntou despeitada.

-Então o quê?

-Como o quê? Você não vai sair do “meu lado da cerca"?

A tranqüilidade fria dele a enlouquecia. Live era o tipo de pessoa ativa, de respostas rápidas. E Nicolas, ou era devagar ou adorava pensar antes de agir, a deixando numa espera que perdurava algum tempo. Pouco tempo, verdade, mas o suficiente para a avermelhar de ódio.

-No meu contrato de aluguel...

-Pro inferno o seu contrato! Sou a nova herdeira e não assinei contrato nenhum! Saia agora do meu lado!

Respirando pausadamente e tentando controlar as mãos de voarem no pescoço dele, Live notou que Nicolas ignorou completamente sua explosão.

-Como eu ia dizendo, no meu contrato de aluguel, assinado por seu avô, está escrito que eu tenho o direito de andar e pintar qualquer lugar das montanhas. Além disso, sabendo que seu estado de saúde não estava muito bom, o sr. Kamadeva assegurou em uma clausula que eu teria o direito de permanecer por tempo indeterminado, enquanto pagasse os aluguéis, com seus devidos reajustes anuais, claro.

A resposta sensata quase a fez perder o resto da paciência. Mas percebendo que ele gostou de vê-la zangada, Live respirou fundo e aos poucos foi adquirindo controle sobre si mesma. Enquanto isso, seus olhos pousaram nos esboços que ele desenhava.

-É bom... – ela murmurou.

-Obrigado.

A morena maldize a si mesma com todos os nomes feios que conhecia. Não queria elogiá-lo, mas o cumprimento saiu involuntariamente de seus lábios. Voltando os olhos para Nicolas, ela então resolveu dar uma trégua:

-O que você faz da vida?

Ele tirou o pincel do papel e a olhou.

-Sou pintor – e arqueou as sobrancelhas.

É obvio!

-Gostei da sua arte, mas isso dá dinheiro?

Ele riu.

-Nem tudo na vida é feito por ganância.

A trégua acabara de chegar ao fim.

-Mas tudo na vida tem preço! –ela respondeu zangada – ou você come o que planta? Não tem luz, água, suas roupas são doações? E o aluguel do meu avô? Paga com quadros?

-Pago em dinheiro. Em relação a isso não precisa se preocupar.

Nicolas Velaz! O nome e a profissão eram tudo que Live sabia dele. Será que ele tinha uma família? Seus quadros eram expostos ou vendidos a algum antiquário? Enfim... Por mais que quisesse negar a si mesma, a guardiã ardia de curiosidade de saber mais sobre seu misterioso inquilino.

O que Maire faria em seu lugar?

Bom... Se fosse Maire, ela já saberia até o tamanho do pé de Nicolas, pois ninguém resistia ao sorriso da guerreira de Libra. Mas Live estava mais pra Micaela, que querendo ou não, era a senhora antipatia!

-Desculpe-me por estar me intrometendo na sua vida, mas são apenas perguntas de rotina. Espero que entenda que eu sou uma mulher sozinha nas montanhas e apenas quero saber quem é você.

Precisava mudar de tática senão não tiraria uma palavra mais íntima dele. Apostar numa fragilidade inexistente e sorrir como se fosse uma mulher tola, pareceu funcionar, pois ela viu o jovem de cabelos escuros abandonar o pincel e caminhar até uma pedra grande. Próximo ao rochedo estava uma bolsa térmica e foi dela que ele retirou uma garrafa de água. Sentou-se então no chão e a bebeu.

-Ok. Pode perguntar.

Mas as palavras não saíram facilmente. Live ficou encantada com a postura informal dele. A camisa estava um pouco aberta, mostrando o peito firme e quando ele se sentou, a calça colocou nas coxas duras. Que homem! Se a guardiã de aquário fosse mais espontânea como Kari-chan ou Shermmie, suas antigas companheiras de batalha, já estaria dando uma jeito de flertar.

Mas Live não tinha jeito para essas coisas! Então ela apenas baixou a fronte e recriminou-se novamente por estar sentindo o coração palpitar por alguém como ele, totalmente fora de suas possibilidades.

-Bom... Você é de Madri, não? Por que esta morando na Índia?

-Vim para cá em busca de sossego.

A resposta foi simples sem nenhuma palavra obscurecida por segundas intenções. Ele não a estava criticando por estar lhe importunando.

-Você não tem família?

-Sim, tenho.

-E eles não sentem sua falta?

-Devem sentir. Mas eu ligo para eles com freqüência e eles compreendem que eu preciso estar sozinho para criar.

-Certo.

De repente Live sentiu o ar carregado. Com um aceno, despediu-se e já ia saindo.

-Você chama-se Live, não?

Virando-se novamente em direção a ele, ela se surpreendeu por não ter se apresentado ainda.

-Como você sabe?

-Seu avô falava muito de você. Disse que era bonita como uma flor, mas tinha a personalidade forte dele.

-É mesmo? –ela se orgulhou.

-Mas ele não gostava muito disso. Falava que gostaria que você fosse doce como sua mãe.

Ela riu. Eram bem as palavras que seu avô diria.

-Ele te amava. Era o assunto favorito dele.

Lágrimas vieram aos olhos de Live mas ela as afastou.

-Fui embora para estudar... –ela disse pausadamente,

-Eu sei. Ele me contou.

Então houve um momento de mútua simpatia entre eles. O primeiro desde que eles haviam se conhecido no dia anterior.

-Eu preciso ir...- ela falou – ainda tenho algumas coisas para fazer...

-Por que voltou a Índia? –ele perguntou de repente.

-A muito a ser feito no meu país natal. Quero ajudar as crianças.

Ele sorriu com o canto da boca.

-Você é fantástica.

Surpresa pelo galanteio, Live abriu a boca para agradecer. Mas ao invés disso, somente sorriu, mostrando a ele os dentes brancos.

-Posso pintar no seu lugar secreto?

Ela começou a rir. Era bem provável que ele a havia elogiado para conseguir uma autorização pacifica para permanecer no lugar.

-Deve me achar uma infantil...

-Bom, você deve ter lá uns vinte anos...

-Vinte e três!

-É mesmo? Não parece. Mas enfim, achei apenas que quisesse proteger seu território. Mas eu prometo que cuidarei bem dele, afinal meu intuito é apenas imortaliza-lo numa tela.

Ela gostou daquelas palavras.

-Qual sua idade?

-Vinte e oito.

-Certo, Sr. Velaz, pintor, vinte e oito anos, pessoa que busca sossego na Índia! –ela recitou tudo que havia aprendido sobre ele – espero que goste daqui e pinte com realismo meu pedaço do paraiso.

-Farei isso!

-Com licença.

Desta vez ele não a impediu.

Live parecia flutuar nas nuvens. Nunca, em toda a sua vida havia sentido aquilo. Seu corpo e seu coração finalmente reagiam a alguém. Dane-se se ele jamais olhasse para ela com alguma intenção romântica, ela estava satisfeita demais em saber que não era alguém insensível.

Durante muitos anos perguntou-se se era normal. Uma moça jovem que nunca se encantou por algum homem de carne e osso não era natural. Com o tempo, aceitou seu estado de frigidez, mas nunca parou de pensar na possibilidade de ser como as outras mulheres. Agora sabia que era! As mãos tremiam próximas a Nicolas, o coração batia forte e ela ficava zangada sem motivos, mas fascinada pela fala macia dele.

Quando alcançou a casa, abriu a porta como se fosse perseguida por demônios. Mal chegou ao telefone e começou a discar os números tão conhecidos de Maire.

-Alô. – a voz do outro lado da linha era suave e angelical.

-Sou eu!

-Live! Meu amor, esperei você me ligar ontem a noite. Como está?

Live sorriu.

-Estou bem, “Maa” ! –ela a chamou em hindi pelo nome que sempre dizia ao coração: “mãe” - A viagem foi tranqüila. Mas não foi para isso que eu liguei.

-Não? O que houve?

Live puxou as pernas para cima do sofá e ficou em uma posição de Lótus.

-Conheci uma pessoa...- a voz deixava claras as intenções.

Ouviu-se então um grito do outro lado da linha.

-Está apaixonada!

-Conheci uma pessoa ontem, Maire. Não me apaixono em um dia apenas.

-Amei Mic na primeira vez em que a vi. Por que você também não pode se apaixonar a primeira vista?

-Isso não importa! Estou ligando apenas para falar que pela primeira vez na minha vida, algo aconteceu dentro do meu coração. Não sei definir bem o que sinto, mas é um conforto na alma. Sinto-me aquecida...

-Que lindo, filha! Eu sabia que um dia você iria conhecer alguém especial. Ele é hindu? Como o conheceu?

Live iria responder, mas ao fundo ouviu a voz de Micaela.

-Quem é hindu? Live conheceu um garoto?

-Não é bem um garoto –ela corrigiu, mas notou que Maire nem percebeu.

-Ela sai de casa e menos de quarenta e oito horas depois já esta envolvida com alguém? – a voz de Mic era claramente zangada. – Isso é culpa da criação liberal que você deu a ela!

Live quase riu ao perceber que as duas iriam começar a discutir. Mic e Maire tinham personalidades opostas e muitas vezes se confrontavam apesar de se amarem tanto. Maire era a mãe compreensiva e amorosa. Micaela era a mãe super protetora, que falava grosso, mas demonstrava o amor na primeira dificuldade que surgia.

A aquariana não pode reprimir o sorriso ao notar que a voz que falava do outro lado da linha mudou de Maire para Mic.

-Live, volte para casa! Pode ser perigoso você morar sozinha no meio do nada!

-Tenho vinte e três anos...

-Mas com a mentalidade de doze! E quem é esse hindu? Não quero vê-la sofrer novamente por algum imbecil que não a respeita!

-Maa, eu cresci, sou socióloga! E não estou gostando de nenhum hindu!

-Quem é este homem que Maire estava falando?

-Um rapaz de Madri alugou uma casa de meu avô...

-De Madri? Um espanhol? Eles são os piores! Tem uma lábia terrível e...

Um barulho se ouviu e quem agora falava com ela pelo telefone era Maire.

-Não se importe com Mic, querida! O que o rapaz faz da vida?

-É pintor.

-Um artista... – Maire disse emocionada

-Um artista! – Mic gritou desesperada.

-Ele veio morar aqui nas montanhas em busca de paz e inspiração para as suas obras.- Live contou sorrindo.

-Como ele se chama?

-Velaz. Nicolas Velaz.

-Velaz? – Maire parecia impressionada – a família Velaz é conhecida por sua arte. O rapaz deve ser o filho único do pintor Marco Velaz! Eu soube que a universidade o aclamava mais talentoso que o pai, mas ele deixou tudo e sumiu da Espanha. São muito famosos em Madri.

-Eu nunca ouvi falar deles...

-Você se importa mais com esportes violentos do que com exposições de museus!- explicou Maire.

-O que tem de mal eu gostar de boxe?

A ruiva suspirou do outro lado da linha.

-Nada de mal. Esqueça o que eu disse. Amo você do jeitinho que é!

-Também lhe amo, Maa. Mas agora preciso ir. Mande um beijo para Mic.

-Vou entregar. Cuide-se e me ligue.

Ao colocar o telefone do gancho, Live meditou sobre o que acabara de descobrir. Então Nick era famoso em Madri! Isso estava cada vez mais confuso! Um homem bonito como os deuses, rico, famoso, escondendo-se numa montanha? Por quê? O que existia na vida de Nick que o deixava tão afastado as demais pessoas? Ela podia até vê-lo cercado de beldades em Madri, dirigindo um carro de luxo, esnobando a imprensa. Isso combinava com ele! Mas a solidão de uma montanha era muito diferente da imagem que Nick representava.

Nick?

Contatou que em seus pensamentos já o estava chamando de maneira informal. Estava ficando louca, literalmente! Viu aquele homem arrogante apenas duas vezes na vida!

Saindo do sofá, ela foi tomar um banho.

Continua...


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