A Senhora da Montanha escrita por Josiane Veiga


Capítulo 1
Capítulo 1




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A Senhora das Montanhas

Capítulo I

Por Josiane Veiga

O relógio badalava seu enorme pêndulo, fazendo um barulho audível tão forte que mesmo ao longe se ouvia o “tic tac” seco e triste. E aquele era o único som. Nenhum riso, nenhuma voz. Apenas o isolamento.

Nada mudara!

As paredes continuavam com aquela cor indefinida, entre o branco e o bege. Os móveis, velhos e antiquados, estavam tapados por um lençol grosso de linho e o ar, estagnado pelas janelas fechadas, era insuportável.

Foi isso que ela encontrou quando entrou na casa. O ambiente era tão triste que mesmo Live, uma pessoa racional, sentiu aversão pelos fantasmas imaginários que povoavam a solidão daquelas paredes. Por alguns segundos, ainda observou o lugar, pousando a mala no chão.

O avô, que a criara, morrera de infarto um ano antes, quando ela estava na Europa, morando com a mãe adotiva, Maire. Quando finalizou os estudos, percebeu que já estava na hora de voltar a Índia. Precisava estar em casa! Uma necessidade única de pertencer a algum lugar, mesmo que esse lugar fosse uma casa melancólica.

Sentiu-se culpada pelos sentimentos. Maire e Micaela a acolheram com um amor incondicional, dando-lhe toda a atenção que dariam aos filhos que não teriam e ela retribuiu com a devoção que teria pela mãe, se esta fosse viva. No começo, a estranha relação a surpreendeu. Duas lindas mulheres assumirem uma paixão mexia com a libido masculina e com a antipatia feminina. Não foram poucas às vezes em que ela se irritou com os comentários preconceituosos dos amigos. Mas com o tempo, as pessoas mais próximas aceitaram a fato de que a família que acolheu a menina indiana mestiça não era uma família comum. O caráter do casal de homossexuais conquistou o respeito dos mais duros e Live pode enfim parar de sentir-se ameaçada pelo fato de não haver um homem em sua casa.

Casa...

Não! Live não era nenhuma menina para se enganar. O apartamento enorme em que vivia com as duas mulheres nunca fora seu lar. Era neste lugar em que ela se encontrava agora, gelado e úmido, seu ninho.

Correu até as janelas e as abriu. O ar entrou na residência, substituindo o cheio de mofo pelo das flores do jardim. Há quanto tempo o ar puro não fazia parte da sua vida? Pareciam décadas, mas na verdade, foram apenas alguns anos que se passaram.

Sentando-se no sofá, ela sorriu ao se lembrar dos motivos que a tiraram da Índia. O selamento do portal, onde os doze guardiões se reuniram para fechar o túnel que unia o mundo dos homens ao mundo dos Youkais. Na época, ela era a menor entre eles, e a mais fraca.

-Nada como o passar dos anos – murmurou.

Os anos realmente passaram e com eles, vieram treinamentos e uma maturidade surpreendente! Live hoje era uma mulher de 23 anos, adulta, linda e independente. Mas sozinha! Havia um vácuo dentro de si, um vazio que não foi substituído nem pelo amor dos amigos, nem pela afetividade dos ex-namorados.

Faltava algo...

Durante toda a sua vida, imaginou que o vazio era a irresponsabilidade do pai, que não lhe deu o direito de um convívio familiar normal ou a ausência da mãe, que não pode vê-la crescer. Sendo o que for, ter uma família junto com Maire e Mic não supriu sua maior necessidade. E era uma necessidade desconhecida, uma busca que até agora se mostrava em vão.

-Dane-se... –ela murmurou zangada consigo mesmo.

Live sempre foi uma pessoa naturalmente irritada. Mas nada a tirava mais do sério do que a autopiedade. Pessoas que viviam eternamente com pena de si mesmas a angustiava. E não iria se tornar exatamente como aqueles que ela tanto desprezava.

Levantando-se do sofá ela foi até a mala, a pegou e subiu ao quarto. Meia hora demais voltava a sala pronta para tornar aquele lugar num local habitável.

ººººººººººººº

A noite chegara nas montanhas indianas com a calma de sempre. Lá fora, os únicos sons que Live ouvia era os da floresta que cercavam a mansão. Seu avô foi um homem um tanto reservado, para não dizer isolado, mas Live sempre amou aquele lugar mesmo não tendo a companhia de outras crianças.

Adulta ela notava uma magia lá, que antes passava despercebido. O ar puro da mata, a segurança de um local entre as montanhas, os alimentos limpos que o pomar dava... tudo, era reconfortante. Claro que modernidades como a luz elétrica e a água encanada ajudavam. Sabia que por mais lindo que fosse o lugar, não conseguiria dispensar um banho quente. O telefone era outro luxo que o avô se permitira. E ela dava graças por ele, pois não seriam poucas as noites que ligaria para os amigos, buscando conforto e calor.

Segurando uma xícara de café nas mãos, ela aproximou-se de uma das enormes janelas de vidro. Estava escuro lá fora, portanto não havia muito a que se admirar. Suspirou, mas animou-se ao pensar que ao amanhecer, teria um local inteiro para explorar. Ao virar-se de costas para a janela foi surpreendida por um som na porta. Alguém batera!

O coração tremeu no peito. Sua casa era muito afastada para receber visitas noturnas. Quem poderia ser? Baixou a xícara em uma mesa e foi até a porta dizendo a si mesma que, fosse quem fosse, ela era uma Guardiã treinada e nada temia.

Quando abriu a porta surpreendeu-se com a figura parada do lado de fora. Um rapaz, que aparentava uns vinte e cinco anos, cabelos escuros e olhos verdes se postava numa postura ereta, a encarando.

-Namastê... –ele balbuciou com sotaque.

-Boa noite – ela respondeu em espanhol.

-Fala a minha língua?

-Vivi muitos anos na Espanha. Percebi pelo seu sotaque que você era de lá.

Ele arqueou as sobrancelhas.

-Só pela maneira de eu falar?

-Os espanhóis têm uma forma meio arrastada de pronunciar as palavras.

-Ah – ele surpreendeu-se – você é muito observadora.

Ela sorriu. O rapaz a sua frente realmente era muito bonito. Magro, mas com músculos nos braços e o pescoço firme. Um típico exemplo de macho predador que ela achava incrivelmente atraente. Ele vestia uma calça Jeans, camisa e um casaco aberto no peito. Jovial e descontraído parecia ser o estilo dele. Mas de alguma forma, as roupas não refletiam o rosto sério, que não se permitia demonstrar nenhum tipo de reação ou sentimento.

-O que deseja? – ela perguntou, de repente incomodada pelo fato de ter um homem na sua porta, à noite, estando ela completamente sozinha.

-Vim porque vi a fumaça saindo da chaminé e também luzes na casa. Ninguém aparece por aqui desde que o Sr. Kabir Kamadeva faleceu.

A resposta a tranqüilizou. Ele mantinha as mãos nos bolsos da calça e pareceu estar apenas defendendo uma propriedade privada.

-O Sr. Kamadeva era meu avô. –ela pronunciou num sorriso triste.

-É mesmo? Não a vi no enterro. – a voz ficou carregada de sarcasmo.

-Não pude vir. Estava chovendo muito em Madri e os Aeroportos foram fechados para vôos. Depois... Já era tarde demais...

Live então se irritou. Quem era aquele rapaz para ficar a recriminando por não ter estado no enterro do avô? Ele não a conhecia para a olhar daquele jeito arrogante. Sentiu vontade de bater a porta na cara dele, mas se conteve.

-Afinal de contas, quem é você?

-Me chamo Nicolas Velaz. Seu avô alugou uma casa ao leste daqui para mim.

-Você está morando na choupana? –ela se surpreendeu.

O casebre feito de madeira era grande e confortável. O avô de Live, um homem rico, sempre amara coisas simples. Construíra a casa para servir-lhe de abrigo, para escondê-lo do mundo que ele considerava um tanto hipócrita. Live nunca pensou que ele permitisse que outra pessoa ocupasse um local tão especial.

-Muito estranho... –as palavras saíram sem ela perceber.

-O quê?

Os pensamentos da guardiã de Aquário mudaram de sentido ao vê-lo reagir tão assustado ao comentário casual dela.

-O que um homem jovem faz isolado nas montanhas indianas?

-O que uma mulher jovem faz isolada nas montanhas indianas?

Live enrubesceu de raiva. Ponto pra ele!

-Sr. Nicolas, sou a única herdeira destas terras e acredito que tenho o direito de viver onde eu bem entendo.

Ele não pareceu se ofender, ao contrário, pela primeira vez sorriu. E que sorriso! Os lábios eram finos, mas os dentes eram brancos e ao sorrir, duas covinhas apareciam em suas bochechas.

-E eu tenho um contrato de aluguel assinado por seu avô. Como pago em dia, acredito ter o direito de também manter a minha privacidade.

As palavras dele eram felinas.

-Concordo e boa noite! –ela quase gritou – espero que saiba se manter do lado de lá da choupana!

-Eu saberei. Boa noite!

Ele virou-se e ela bateu a porta. Que homem atrevido! Como se acha no direito de vir agredi-la com palavras sem nem ao menos a conhecer? Agredi-la com palavras? Na verdade ele não dissera nada de mais, e no fundo ela deveria agradece-lo por ser tão cuidadoso com os bens do seu avô. Kabir Kamadeva era um homem muito sensato e perspicaz. Se permitiu que aquele idiota de olhos verdes e bonito de tirar o fôlego morasse em suas terras, Nicolas não devia ser má pessoa.

-Isso não importa! –ela gritou zangada.

Em Madri namorara dois rapazes. Um deles acabou com ela alegando falta de amor, frieza excessiva de Live e o outro a traiu. O que foi infiel disse o mesmo que o primeiro namorado: “Você não sabe amar”. Que culpa tinha de não ser lá muito romântica e odiar sentimentalismos? Preferia ler, assistir a uma boa peça de teatro, do que ficar bancando a tola apaixonada.

No final das contas, os dois ex-namorados tornaram-se amigos, porque se ela não sabia amar como mulher, amava como amiga. Amizade era aliais, o sentimento mais forte da vida de Live.

E exatamente agora, que ela tomara a decisão de nunca mais se envolver sentimentalmente com ninguém, ficava atraída por um homem mal educado que nem ao menos conhecia. Estava ficando louca, realmente!

Subindo as escadas em direção ao quarto, desculpou-se a si mesmas pelos sentimentos conflitantes. Desde a morte do avô, acabara a faculdade de sociologia e decidira viver na Índia, onde poderia ajudar as pessoas pobres. Todas as decisões, tão importantes para seu futuro, foram tomadas num impulso. Ela ainda estava confusa com os próprios sentimentos e era provável que o tremor nas pernas ao conhecer Nicolas fosse apenas reflexo do turbilhão que sua vida se tornara no último ano...

É... Era isso! Pelo menos ela esperava...

Continua...


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