Crônicas Saxônicas Dois escrita por Didi8Dedos


Capítulo 3
PRIMAVERA DE 895 DC - MARSJORDRE TIL LUNDENE




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Alfredo tinha um plano. Depois que lhe contei o que acontecera no acampamento dos pagãos, ele resolveu que iria persuadir Kaet Ranrikesson a vir para nosso lado. Claro que não seria tarefa fácil, porque os pagãos trabalhavam para o bem próprio, o que equivalia a lutar e pilhar pelas riquezas. No entanto, Alfredo tinha certeza de que Kaet trocaria qualquer riqueza pelo irmão, assim, resolveu encontrá-lo sozinho debaixo do grande olmo, logo acima da colina. Quando eu disse sozinho, referi-me a Alfredo e eu, porque, na verdade, eu não era ninguém a não ser um senhor de uma terra usurpada, que lutava por um rei que eu não gostava e por terras que não eram minhas.

Kaet apareceu com roupas simples, sem cota de malha ou couraça, mas tinha sobre a cabeça um capuz que lhe escondia parte do rosto. Talvez ele não quisesse mostrar alguma cicatriz arrepiante, ou talvez tivesse as mesmas dores de cabeça dum homem que conheci em Lundene, que dizia nem poder sair durante o dia porque o sol o cegava. Percebi que Kaet era tão magro quanto Alfredo, só que era uma cabeça mais alto. Fiquei imaginando se ele também sofria de alguma doença que o impedia de cometer violência, mas pelo que os saxões contavam, não era a covardia, porque ele lutava uma batalha como qualquer outro homem.

Olhando sem muita atenção os dois pareciam irmãos, ambos eram magros, contemplativos e eruditos. Disso fiquei sabendo meses depois, quando um dos homens de confiança de Kaet me confessou, depois de beber até quase cair, que Kaet sabia ler e escrever, o que era uma coisa estranha para um bárbaro, fosse ele dinamarquês ou norueguês. A verdade é muito surpreendente, mas fica para mais adiante nesta história.

Por ora resta dizer que Alfredo conseguiu seu intento. Propôs riquezas e a vida de Haakon se Kaet e seus homens se juntassem aos saxões, e para sua surpresa, o norueguês aceitou sem retrucar. Com os homens de Kaet, que chegavam a quase cem, tínhamos um montante de 189, sem contar as mulheres e as crianças, as quais nós tentaríamos deixar no pântano. O problema era atravessar o território, porque era certo que algum dinamarquês nos viria. Mas então entrava Kaet e seus homens, que haviam recebido a permissão de Svein Cavalo Branco para irem à Mércia ter com Athelstan, se é que ele ainda estivesse vivo.

Os noruegueses iam adiante, como se fossem os reis de toda região. Mas Alfredo estava alheio, achava melhor que guerreiros liderassem. Não sei se ele se preocupava com uma emboscada por parte dos noruegueses, mas eu me preocupava. Era estranho pedirem auxílio. Então permaneci ao lado de Alfredo. Cobrimos uma boa extensão de terras porque íamos a uma velocidade constante, e conseguimos acampar na clareira de um bosque, a três dias de viagem de Lundene. Sentinelas foram para as margens de onde podiam ver qualquer invasor se aproximando. Mas não apareceu ninguém. Bem se viam as diferenças entre cristãos e pagãos... Os noruegueses se sentaram a um lado e nós, saxões, a outro, redor. Enquanto os primeiros sentavam-se aos cantos, cobriam-se ou rezavam, os pagãos rodeavam a fogueira e bebiam, e rosnavam uns com os outros, e se divertiam com a batalha que estava por vir.

Mal amanheceu e partimos. No caminho encontramos um agrupamento de dinamarqueses, que nos cumprimentou e talvez tivessem feito perguntas, se não tivessem visto earl Ragnar, mas nos deixaram passar depois de falarmos que estávamos sob a bandeira de Svein Cavalo Branco.

— É um homem inteligente, esse norueguês, mas é tão insensato quanto os outros - Alfredo sussurrou para o meu lado.

— Insensato por não ser devoto ao seu Deus, senhor? - perguntei com ironia. Alfredo apenas me fitou. - Os nórdicos são assim mesmo: festeiros, alegres, esperançosos.

— Você poderia fingir que não gosta deles na minha presença.

— O senhor saberia que estaria mentindo.

— Mas os outros não - e apontou os padres e demais nobres com a cabeça. Eu me calei, fitei Kaet logo à frente, o elmo reluzente mostrava sua posição. Então, a mão dele se ergueu, seu cavalo deu uma guinada para o lado e seus olhos se encontraram com os de Alfredo. O norueguês se aproximou devagar, enquanto a comitiva ainda estava parando atrás dos homens da guarda doméstica de Alfredo.

Encarei aqueles olhos escuros e percebi que eram fortes e comandantes. Eram também olhos incrivelmente bonitos, olhos como eu jamais vi novamente, de um castanho indescritível com a borda negra, tão negra quanto seu centro. Fitavam-me com confiança, passando-me uma calmaria que pensei não poder receber de tal pessoa. Hoje em dia me lembro deles quando vejo um raro dia de céu azul, sem nuvens, onde o sol reina absoluto, porque um dia assim acalma a qualquer homem.

Peça aos seus para esconderem os símbolos do cristianismo.

  Traduzi para Alfredo, que se negou a satisfazer o pedido do pagão.

— Ou pede a eles que escondam tudo ou ficamos por aqui mesmo. - Ele fez uma breve pausa, depois apontou com a cabeça. - ­Sobre as colinas há batedores, eles irão ver suas cruzes, e não seremos bem recebidos, senhor.

Alfredo me olhou quando traduzi, depois fechou os olhos, colocando os pensamentos em ordem, por um instante, e ao tornar a abri-los, pediu que todos os cristãos escondessem seus símbolos de redenção. Kaet escoiceou o cavalo e seguiu caminho, mandando um de seus homens até a colina para encontrarem com os batedores. Eram homens de Guthrum.

Ficaremos sob seus cuidados até chegarmos à Lundene - disse Kaet a Alfredo, já no aconchego de uma pequena construção, que servia bem ao rei e sua guarda. - Guthrum não fez muitas perguntas, somente quis saber se viemos para se juntar a ele. Falei que Svein queria noticiais e armas. Ele apenas nos observou, depois assentiu. Então teremos de deixar um pouco de dinheiro aqui. - Kaet apontou para os padres e eu ri da cara de Asser, que se empertigou todo, abraçando seu grande crucifixo de ouro que estava debaixo da batina escondida por uma larga túnica acinzentada. - E vamos ter que levar as armas junto conosco a Lundene, por isso, trate de descarregar seus padres dos cavalos bons. Pode deixá-los aqui mesmo... Talvez tenham algum proveito para os dinamarqueses.

Kaet viu que a pilhéria tinha me divertido e piscou para mim, depois se afastou, seguido por seu comandante, um homem alto e forte de olhos claros e cabelos escuros.

— Se ele estivesse em minha posição não estaria fazendo gracejos! - Alfredo estava zangado, mas não acreditei que fosse por conta das pilhérias de Kaet e, sim, porque ele fizera um acordo com o comandante de Guthrum sobre as armas sem consultá-lo.

— Senhor, acredito que ele não tenha tido outra escapatória senão a idéia das armas - disse, tentando defender Kaet, mas Alfredo deu de ombros e mandou que eu saísse da casa. Com isso, Asser se sentiu exultante.

Deixei a presença de gente que eu não gostava para ficar com aqueles com quem eu me identificava. Estávamos num vilarejo que eu mal conseguia pronunciar o nome, possivelmente nem mesmo os que moravam ali conseguissem, mas o que importava era que estávamos alcançando nosso intento. Sem que os pagãos soubessem, Alfredo liberava um a um seus padres pelo caminho, para que espalhassem a nova: Wessex estava reunindo o maior exército de que se ouvira falar, seis mil homens se encontrariam em Wintaceaster na próxima primavera, e ele se reergueria contra todo e qualquer pagão. Pelas idas e vindas dos padres, e pela aparência de Alfredo, eu acreditava que a tarefa estava sendo cumprida. Mas Kaet não era nenhum tolo.

Estávamos eu e Ragnar sentados diante da fogueira do lado de fora do vilarejo, onde alguns homens montaram tendas, quando Kaet, sozinho, se sentou à nossa frente, tomou um caneco de cerveja e fitou o fogo, antes de me encarar com aqueles escuros e inteligentes olhos.

— Seu rei é sério demais - disse Kaet. Bebeu da cerveja azeda, fez uma careta e colocou a caneca de volta no lugar. - Ele também acha que sou tolo. Mas não sou não. Eu sei que ele está mentindo para conseguir que seu povo lute em favor dele.

— Por que você não diz isso a ele ao invés de dizer a mim? - perguntei olhando para o fogo.

— Porque não quero - respondeu chamando a minha atenção. - Estou aqui sentado como um igual, pensando em falar com gente como eu. Querendo saber por que um homem como você, senhor Uhtred, se juntaria a um homem como ele.

Ragnar soltou uma gargalhada e me acertou com o cotovelo.

— É Uhtred, explique isso para nós - Ragnar atiçou ainda mais.

Kaet também riu, mas sem o alarde de Ragnar, e fitou o dinamarquês com interesse, depois lhe fez perguntas sobre quem era e porque estava comigo. Ragnar respondeu prontamente e contou a história da morte trágica de seu pai. Contou que iria se vingar do bastardo que assassinara e que tomaria tudo o que ele possuía, porque era seu por direito. Kaet ouviu quieto, consentindo vez ou outra, mas sem tirar os olhos de Ragnar.

Eu fiquei perdido entre a primeira pergunta do norueguês e o último olhar de Ragnar a ele. Havia algum entendimento entre eles e me senti traído por Ragnar. Mas estive o dia todo ao lado dele, e não havia como não saber de algum pacto ou aliança dele para com Kaet.

Na manhã seguinte, Ragnar me chamou a um canto, antes de partirmos para mais um dia exaustivo de caminhada, para me dizer o que inconscientemente eu já sabia.

— Assim que isso tudo terminar, vou partir com Kaet. Ele irá me ajudar com a vingança a Kjartan. Vou acabar com o desgraçado assassino de uma vez por todas.

Senti uma pitada de inveja.

— Você vem também, não é?

— Não posso. Jurei estar com Alfredo por um ano.

— Esqueça esse juramento. Você não gosta dele e ele não gosta de você. Venha comigo, Uhtred!

Balancei a cabeça e caminhei para longe dele.


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Notas finais do capítulo

Título original: Marcha a Londres.



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