Sexo, Escola e Rock And Roll escrita por Fernanda Lima


Capítulo 26
Nebulosidades


Notas iniciais do capítulo

* Versão de Isabel Rigardi *



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Ah, que doce era o aroma invernal na praia.

– Aaaatchim!

– Saúde, Allen.

– Sai daí, você também vai se resfriar. - Enrolado num cobertor em cima da cama, o pequeno garoto espirrava, fungava e falava com uma voz engraçada. Bom, pelo menos desse modo a casa ficaria bem mais silenciosa.

– Eu estou muito bem acostumada com o frio, obrigada.

– Mas nem é tão frio na Itália. Nem deve nevar direito no inverno, né?

– É, não neva muito. A temperatura raramente cai abaixo de zero por aquelas paragens. Só perto de Milão, Florença e no Rio Pó. Mas não estou falando da Itália. Eu costumava viajar bastante para a República Tcheca, Polônia e Alemanha no final do ano. Em Nápoles não neva no inverno, só chove...

– Como você se lembra de tudo isso? Era tão nova.

– Eu tenho memória de velho. Lembro de coisas que aconteceram há anos, mas não do que comi do almoço de ontem.

– Há, só a memória de velho? Você pensa, age e fala como velha...

Lancei-lhe um olhar cínico, embora não discordasse do que dissera.

– Se ter mente jovem é agir como um delinquente, eu prefiro pensar como a antiga geração... - Ao falar isso, lembrei-me da noite em que Allen fizera uma das maiores besteiras de sua vida. E ele também, pelo visto, já que nessa hora olhou para baixo, de um modo triste, e deu um sorriso de lado.

– Às vezes, agimos como delinquentes porque pensamos que não temos nada mais a perder...

Um turbilhão de pensamentos já estava vindo à minha mente, quando foi interrompido por uma gritaria confusa do lado de fora do quarto. Eu e Allen, assustados, corremos para fora - afinal, com o mar bravio daquele modo, algo poderia ter acontecido.

Felizmente, esse não foi o caso.

Ao sairmos, encontramos apenas uma pequena japonesinha e uma loira com cara de sueca discutindo e apontando para o velho sofá azul da sala.

– Eu já disse pra você que tem alguma coisa ali! Eu senti se mexendo embaixo do estofamento!

– Não tem nada lá, eu acabei de tirar as almofadas na sua frente pra mostrar. Esse seu medo de aranhas já está saindo do controle.

– Ah, claro, agora eu sou a culpada por uma aranha ter quase me matado quando eu era mais nova! Claro que eu iria ficar com medo, caramba!

– Uma coisa é ser precavida e saber evitar o perigo, outra é ser neurótica. Você fez a mesma coisa quando fomos arrumar o meu apartamento, e não tinha nada.

– Ok, se estou te irritando com a minha psicose, então arranja outra idiota pra você!

Como se assistíssemos a um drama mexicano, eu e Allen nos sentamos nas cadeiras da sala de jantar, e ficamos assistindo à briga. Jack, como sempre, estava muito ocupado arrumando a nossa bagunça.

– Maria, é sério, você não pode ficar com medo de entrar em cada lugar novo que vai pela possibilidade de uma aranha aparecer. E se aparecer, você pode cuidar dela. Não é mais uma criança indefesa, como era quando houve o incidente.

– Você fala de mim, mas eu duvido que não tenha medo de nada também. Pode posar de poderosa, de madura, mas eu sei que no fundo você é mais frágil do que todos nós aqui.

Eu não havia conseguido digerir direito o que ela dissera. Mesmo depois de sabermos todo o trauma que Sabrina tivera, Maria ainda tinha coragem de jogar na cara dela? Imaginei, na hora, o que a loira deveria estar sentindo. E estava certa, pois esta se calou, e subiu correndo para o quarto.

– Está vendo, você é frágil! - Maria ainda gritou. Resmungando, sentou-se ao nosso lado. - Eu não acredito nela! Detesto hipocrisia. Quando é comigo, não é nada, mas quando é com ela, fica toda ofendida. Eu que não vou lá consolar a pobre menina sofredora.

Eu e Allen nos entreolhamos.

– Maria, melhor você ir lá. Se você sabe como é ter um trauma e não ser compreendida, e se você realmente ama Sabrina, deve fazer com ela o mesmo que gostaria que ela fizesse contigo.

– Virou Cristo agora, é? Se ela se posa de madura, sabe muito bem resolver os próprios problemas. Eu não quero mais saber desse tipo de infantilidade. - Ela estava mentindo. Tinha ficado triste com a briga. Eu via em seus olhos, que se enchiam de água.

Por que é tão difícil para um ser humano abandonar o orgulho e fazer aquilo que sabe ser o certo?

– Bom, vamos combinar o seguinte então. Te dou vinte minutos para se acalmar, e depois que isso acontecer, você vai falar com ela.

Sem responder, ela sentou-se à mesa, mexendo em alguns papéis que estavam jogados em cima dela. Allen estava encostado na porta do quarto, com uma expressão estranha.

– O que foi? Ficou chateado também?

– Um pouco... – Seu olhar estava meio perdido. – Não gosto quando Maria fica triste. Aliás, não gosto de brigas. Mas parece que sempre estou no lugar errado, e na hora errada...

Pensando no que dizia, realmente ele costumava estar por perto quando coisas desagradáveis aconteciam entre nós.

– Não entendi essa discussão. Isso tudo aconteceu mesmo por causa de uma maldita e inexistente aranha? - Irritado, entrou no quarto e se jogou em cima da minha cama.

– Allen, você é uma pessoa sensível. Pode não parecer, mas também sou assim. Maria reclama que Sabrina posa de madura, mas acho que eu sou mestra em fazer isso. E não é bom, porque às vezes nos impede de expressar os nossos verdadeiros sentimentos por puro orgulho, e afastamos as pessoas. – “De onde veio isso?”, pensei.

– Eu sei que você é sensível. – Ele se sentou, encostando em meu ombro. – Sensibilidade não é sair chorando pelas criancinhas famintas da África, nem fazer funeral de barata, é só se importar com o que acontece. Tenho raiva de pessoas dramáticas, lamentam demais e fazem de menos.

– É, sei de alguém que é assim. – Baguncei seu cabelo, enquanto ele mordia minha mão.

– Bel, cadê o Jack?

– Arrumando a cozinha, não? - No momento em que ele disse isso, percebi que já havia tempo demais que ele estava lá, e até agora nenhuma ofensa pela nossa “atitude decadente” e “falta de modos”.

Fomos até a cozinha, pretendendo dar um susto em Jack. Maria não estava mais na sala – o que era bom.

Mas então, entendi a demora e a falta de reclamações. Jack falava ao telefone, num tom de voz baixo e impaciente.

– Eu já te avisei que não posso. Não, estou ocupado. Por que eu te diria onde estou? Eu não tenho mais nada a ver com você. Não precisa de mim. Nós dois temos motivos para querer ficar o mais longe possível um do outro, só parece que você ainda não percebeu isso. Então, já esperava essa atitude da sua parte, mas não posso fazer nada por você, sinto muito. Não sei o que fizeram com você aí, mas não parece que tenha melhorado. Angeline, eu disse que não dá. 

Não consegui entrar naquele lugar. O meu sentimento, naquela hora, não era de ciúmes, raiva ou qualquer coisa no gênero. Era tristeza, pura e simples.

– Bel, é mesmo com aquela Angeline que ele está falando...

– É. – Minha voz quase não saiu, pois um choro ridículo veio automaticamente para estragar mais ainda o meu dia.

– Então ela ainda não desistiu, hein. – Allen me abraçou, puxando-me até o quarto novamente. Ainda sem conseguir falar, só pensei no inferno pelo qual teríamos que passar novamente.



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