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Kiron Zen
ID: 398914
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  • 03/12/2013


  • "O ser humano encontra-se em amarras auto-infligidas por toda a parte. Tal é a fraqueza humana: temos frequentemente de nos curvar perante a força, somos obrigados a contemporizar, não podemos ser sempre os mais fortes. Não nos espantamos nem lamentamos, mas com paciência esperamos que o futuro traga dias mais felizes.

    É justo amarmos a virtude, estimarmos as boas ações, ficarmos gratos aos que fazem o bem. Entretanto, é estranho que dois, três ou quatro se deixem esmagar por um só, mas é possível; poderão dar a desculpa de lhes ter faltado o ânimo. Mas quando vemos cem ou mil submissos a um só, não podemos dizer que não querem ou que não se atrevem a desafiá-lo.

    Ora todos os vícios têm naturalmente um limite além do qual não podem passar. Dois podem ter medo de um, ou até mesmo dez; mas se mil homens, se um milhão deles, se mil cidades não se defendem de um só, não pode ser por covardia. Que vício monstruoso então é este que sequer merece o nome vil de covardia?

    Quantos prodígios temos ouvido contar sobre a valentia que a liberdade põe no coração dos que a defendem! Ora o mais espantoso é sabermos que nem sequer é preciso combater esses tiranos, não é preciso defendermos-nos deles. Ele será destruído no dia em que se recuse a servi-lo. Não é necessário tirar-lhe nada, basta que ninguém lhe dê coisa alguma.

    Não é preciso que o ser humano faça coisa alguma em favor de si próprio, basta que não faça nada contra si próprio. São, pois, os povos que se deixam oprimir, que tudo fazem para serem esmagados, pois deixariam de ser no dia em que deixassem de servir. É o povo que se escraviza, que se decapita, que, podendo escolher entre ser livre e ser escravo, se decide pela falta de liberdade e prefere o jugo, é ele que aceita o seu mal, que o procura por todos os meios.

    Que mais é preciso para possuir a liberdade do que simplesmente desejá-la? Como pode alguém, por falta de querer, perder um bem que deveria ser resgatado a preço de sangue? Um bem que, uma vez perdido, torna, para as pessoas honradas, a vida aborrecida e a morte salutar? Veja-se como, ateado por pequena fagulha, acende-se o fogo, que cresce cada vez mais e, quanto mais lenha encontra, tanta mais consome; e como, sem se lhe despejar água, deixando apenas de lhe fornecer lenha a consumir, a si próprio se consome, perde a forma e deixa de ser fogo.

    Assim são os tiranos: quanto mais eles roubam, saqueiam, exigem, quanto mais arruínam e destroem, quanto mais se lhes der e mais serviços se lhes prestarem, mais eles se fortalecem e se robustecem até aniquilarem e destruírem tudo. Se nada se lhes der, se não se lhe obedecer, eles, sem ser preciso luta ou combate, acabarão por ficar nus, pobres e sem nada; da mesma forma que a raiz, sem umidade e alimento, se torna ramo seco e morto.

    Então, esse desejo, essa vontade, são comuns aos sábios e aos indiscretos, aos corajosos e aos covardes; todos eles, ao atingirem o desejado, ficam felizes e contentes.

    Esses que tanto vos humilha tem só dois olhos e duas mãos, tem um só corpo e nada possui que o mais ínfimo entre os ínfimos habitantes do mundo não possua também; uma só coisa ele tem mais do que vós e é o poder de vos destruir, poder que vós lhe concedestes.

    Onde iria a tirania buscar os olhos com que vos espia se vós não lhos désseis? Onde teria mãos para vos bater se não tivesse as vossas? Os pés com que esmaga as vossas moradias de quem são senão vossos? Que poder tem sobre vós que de vós não venha? Como ousaria perseguir-vos sem a vossa própria conivência? Que poderia fazer se vós não fôsseis encobridores daquele que vos rouba, cúmplices do assassino que vos mata e traidores de vós mesmos?

    Matai-vos a trabalhar para que a tirania possa regalar-se e refestelar-se em prazeres vis e imundos. Enquanto vós definhais, ele vai ficando mais forte, para mais facilmente poder refrear-vos. E de todas as ditas indignidades que os próprios brutos, se as sentissem, não suportariam, de todas podeis libertar-vos, se tentardes não digo libertar-vos, mas apenas querer fazê-lo.

    Tomai a resolução de não mais servirdes e sereis livres. Não vos peço que o empurreis ou o derrubeis, mas somente que o não apoieis: não tardareis a ver como, qual Colosso descomunal, a que se tire a base, cairá por terra e se quebrará."

    Em: Discurso Sobre a Servidão Voluntária, Étienne de La Boétie, 1549.






    Kuroneko Zen mudou seu nome para Kiron Zen19/04/2016