Capítulo 53 - Processo de criação

 Reunidos mais uma vez na nossa base externa do colégio, ou seja, na casa de Wilson, separamos nossa tarde de sábado para tentar bolar a nossa tira de teste para o blog da escola. Sim, uma tira, aqueles três ou quatro quadrinhos que todo mundo gosta. Como o responsável por essa seção do site estava se afastando, o colégio estava selecionando novos talentos e, obviamente, Wilson Abadias estava disposto a participar desse concurso com tudo que tinha: ou seja, nosso grupo. No fundo, mesmo alguém chato ao extremo como eu (e eu tenho consciência disso, você não precisa me falar) estava achando interessante a ideia de criar suas próprias histórias em quadrinhos, mas meu lado racional ainda falava mais alto, afinal, conhecendo aquele cara...já podia prever que tipo de ideia ele teria para nossas tirinhas.

- Muito bem! A pauta da reunião de hoje é nosso projeto entitulado: "Criando uma história em quadrinhos para o blog do Colégio Megatec que seja divertida, popular e famosa" - disse Wilson, colocando esse enorme título no quadro branco da sala. Jorjão ainda servia de secretário anotando todas as ideias num laptop. Realmente, éramos um grupo bem organizado com nossos projetos, embora eu continue achando isso tudo um exagero. Por outro lado, Demi estava empolgada e ela ficava ainda mais bonitinha com os olhinhos brilhando com alguma coisa interessante. 

- Sobre o que vamos discutir primeiro? - perguntou Jorjão, enquanto tomava um gole de refrigerante. A garrafa de dois litros de Coca ia quase toda para o copo dele.

- Bem, acho que podemos assinar as histórias como a NERD mesmo...isso vai dar notoriedade para todo mundo do grupo - disse Wilson, com a mão no queixo, pensativo - Quer dizer que todos nós teremos participação no grupo..mesmo que só um de nós desenhe

- Esse é o ponto - falou Demi - Quem de nós sabe desenhar?

- Ah! Não é muito difícil! - respondeu Wilson, com uma expressão confiante até demais para o meu gosto - Diz alguma coisa para eu desenhar

- Hmmm...um garoto de cabelos curtos e jeans - sugeriu Demi, sem pensar muito. Imediatamente, Wilson pegou lápis e papel e, após um árduo trabalho de cinco segundos, mostrou uma das coisas mais horrorosas que já vi (embora eu não tenho dito exatamente isso na hora).

- Err...parece diferente, né? - falei.

- Original, não acha? - ele se gabava, mas era evidente que não estava nada bom.

- Err...não parece muito com o que queremos no blog - Demi comentou, tomando cuidado para não magoar o pobre e sonhador desenhista Wilson.

- Ah, é que precisa fazer a arte final no Photoshop

 Naquela situação nao acha que tinha algum Photoshop na face da terra que disfarçasse. A nossa sorte é que Wilson era bastante democrático, pelo menos com a gente.

- Mais algum de vocês sabe desenhar? - perguntou nosso líder, olhando primeiramente para mim.

- Ah, não. Não rola - falei - Não desenho nada.

 Jorjão também não quis arriscar e Demi também balançou a cabeça. Restou apenas...

- Karina? - chamou Wilson - Você arrisca?

Ela apenas acena com a cabeça, pega um pedaço de papel e faz o mesmo personagem que Wilson, no entanto, saiu bem melhor. Muito melhor. Parecia mesmo profissional.

- Uau! Você desenha muito bem! - se impressionou Demi, até arregalando os olhos com aquilo. E, de fato, era muito bem desenhado.

- Você fez algum curso? - perguntei.

- Não. Só desenhei porque vocês pediram - disse a mocinha, ajeitando os óculos. Então era um talento nato..ou ela era mesmo uma garota robô com algum software de desenho instalado. É. Até hoje me pergunto se Karina é mesmo humana ou andróide.

- Perfeito! - gritou Wilson, praticamente arrancando o desenho da mão da menina - Temos uma desenhista! Você desenha melhor que cartunistas profissionais!

- Bom, isso é um desenho em traço cartoon, próprio para tiras - explicou Karina - Mas se precisar de desenhos com traços realistas ou em estilo mangá...acho que dá pra enganar também

 Enganar? Ela queria enganar quem? A menina desenhava muito! Até mesmo um pessimista como eu estava achando que tinhamos chance de ser escolhidos com uma desenhista como ela. O problema...é que o conteúdo das tiras também precisava ser bom. E conteúdo, vindo do nosso grupo, nem sempre é aquela maravilha. Ou fazemos uma versão de Saltimbancos totalmente descoordenada ou criamos um conto de fadas do nada. Sempre assim. E daquela vez, duvido que fosse diferente.

- Bem, bem...todos a favor de Karina ser a desenhista do grupo? - perguntou Wilson. Todos levantam a mão, inclusive Jorjão, que se apressa em colocar tudo na ata de reunião. Depois disso, vem a próxima pauta.

- Próximo assunto - continuou Wilson, pigarreando um pouco e falando logo em seguida - Sobre o que será nossa tira?

 Esse era o problema. Criar um personagem não era algo tão simples assim. Quando participamos do grupo de literatura, Karina criou um conto de fadas, mas o que nos fez ganhar pontos foi a análise crítica que ela fez do próprio texto, o que impressionou os professores. Agora, precisávamos impressionar os alunos e, conhecendo bem a cultura do povo daquela escola, nenhum deles estava interessado em análises psicológicas dos nossos personagens.

- Seja lá o que for... - murmurou Jorjão, entre um gole de Coca e outro - ...deve ficar legal se colocarmos alguma viagem no tempo

- De novo isso? - critiquei - Podemos até colocar algo sobre isso depois, mas primeiro precisamos de um personagem interessante. Pensem...no que vocês gostam nos quadrinhos?

- Gosto de tirinhas que me fazem rir - falou Demi - Não ligo muito para quadrinhos, mas se ler um, prefiro que seja engraçado

- O que pode ser engraçado? - Wilson pensou alto, com a mão no queixo e aquele jeito pensativo dele - Aceito sugestões

 Eu também gosto de histórias engraçadas, mas naquele momento eu não tinha ideia nenhuma do que sugerir. Um personagem engraçado? Normalmente acho engraçado personagens que sempre se dão mal, mas que se deem mal de forma engraçada. Ah, mas como é se dar mal de forma engraçada? Talvez alguém como eu, um personagem forçado a conviver com um bando de malucos , seja se dar mal de forma engraçada, mas a própria definição de engraçado era difícil.

- Normalmente o engraçado vem do inesperado - falou Karina, com o jeito sério de sempre - A quebra de lógica é o que costuma dar graça a uma piada. Quando te perguntam porque uma galinha atravessa a rua, o inesperado é que respondam para chegar do outro lado

 A velha piada da galinha. Mas de qualquer forma o inesperado costumava mesmo ser engraçado. E também me perguntava se Karina, mesmo entendendo o conceito de graça, riu alguma vez na vida. Melhor deixar esse pensamento para depois, já que Wilson pareceu ter tido um daqueles insights.

- Isso! Boa ideia! - falou o garoto, pegando uma folha de papel e fazendo um rascunho da tirinha. Em poucos segundos, tinhamos um roteiro de quadrinho único pronto, podíamos dizer que era uma charge. Ele nos mostrou o desenho. Era uma galinha tentando atravessar uma rua extremamente movimentada e pensando "Eu só queria chegar do outro lado"

- Para quem conhece a piada...até que ficou legal - comentou Demi, dando um sorrisinho.

- Vocês não parecem muito confiantes - percebeu Wilson - Alguma sugestão Daniel?

- Talvez...precisemos de mais carisma - falei.

- Carisma...é isso

- Se bem que uma galinha já é bem carismática - falei, tentando parecer menos antipático (às vezes eu me esforço, tá?)

- Tudo bem. Vou fazer o esboço do personagem e a Karina faz a arte final - Wilson pegou mais um pedaço de papel e desenhou algo que parecia uma galinha - Nosso personagem será uma galinha! Agora...desenvolva mais essa galinha

- O que galinhas fazem? - perguntou Demi.

- Botam ovos - falou Karina.

- E são gostosas quando assadas - comentou Jorjão. Claro, tinha que aparecer o tema comida.

- Tá legal...estou unindo as ideias - continuou Wilson - ...galinha bota ovo, é gostosa assada...o que mais?

- Err...não voam muito alto - comentei.

- Isso! - gritou Wilson - Normalmente galinhas não voam! Assim como pinguins...isso...vou anotar aqui..galinhas não voam, pinguins também não.

 Estava com medo do que ele estava bolando, mas o brainstorming continuava. Demi citou galinhas dÁngola que cacarejam como se dissessem "tô fraco", Karina falou sobre granjas, Jorjão falou sobre ovos fritos e mais um monte de coisas que galinhas lembravam. Os olhos de Wilson estavam em um modo criativo e isso, falando por experiência própria, sempre gerava alguma coisa...err...estranha. E logo eu saberia...

- É isso aí, gente! - diz ele por fim, rabiscando freneticamente e jogando o lápis no canto da mesa - Acho que imaginei um personagem legal!

 Fiquei imaginando que tipo de personagem seria...tá, era uma galinha, com certeza, mas que tipo de galinha? Lá vem...é o que posso dizer...lá vem!