Capítulo 103 - No fio da navalha

  Olha, eu sei que o Jorjão é o Jorjão, mas acredito que nem ele engordaria 7 kg em apenas dois dias. Aquela história estava muito mal contada e estávamos esperando uma explicação de nosso amigo. Mesmo assim ele parecia nervoso. Não estava gostando daquela cara...se ele tiver engordado até 4 quilos e pouquinho ainda dá pra enganar, mas 7?! Nem ele conseguiria!

- Calma, Jorjão, calma! - Demi tentou acalmar os ânimos - Como assim engordou?

- Engordei - confirmou ele - Pedi para a minha mãe passar na farmácia antes de vir para escola e verifiquei meu peso. Não tive nem coragem de contar pra ela.

- Mas você emagreceu 7 kg - lembrou Karina - Impossível ter engordado tudo isso de novo em dois dias.

- S-Sim. É verdade que não engordei 7 kg, mas...

- Então tá beleza! - disse Wilson - Ainda vamos ganhar a aposta!

- Mas engordei 2 kg.

- O QUÊ?! - agora todos gritamos. Como assim 2 kg? Isso quer dizer que ele tinha exatamente o peso combinado. Uma grama a mais e tudo estaria perdido.

- Como assim 2?! Assim? Redondinho mesmo? - questionou Wilson.

- Eu juro que tentei me segurar, mas...foi mais forte do que eu! - disse nosso fofinho amigo, já quase chorando de culpa.

- A sua mãe não disse que iria tomar conta de você? - perguntei - Como ela deixou você chegar a esse ponto?

- Minha mãe sim, mas meu pai - disse ele - Meu pai acabou me ferrando mesmo com boa intenção.

- Como assim? - perguntei.

- Bem, foi logo no dia que perdi os 7 kg.

* Flashback do Jorjão *

- Fala, filhão! - disse o pai dele, chegando todo animado e sorridente - Ouvi dizer que você perdeu mais do que o necessário para a aposta, né?

- Verdade, pai - confirmou Jorjão, enquanto lia algumas histórias em quadrinhos - Foi duro, mas finalmente consegui. Posso ficar em paz agora!

- Beleza, então já podemos comemorar - disse ele.

- Comemorar? Como assim?

- Bem, a sua mãe guardou todos os doces e salgadinhos no cofre, mas...eu tenho uma reserva de guloseimas secreta.

- Uma...reserva secreta? - a boca de Jorjão já começou a encher de água.

- É..lá no escritório - disse ele - Mantenho a reserva sempre cheia para situações de sufoco.

- E...tem muitos doces lá?

- Não só doces...mas salgadinhos de pururuca, batatas fritas e ainda dá pra arranjar um refri no frigobar da empresa.

- Mas...se a mamãe souber que saí da dieta antes do combinado..

- Ela não precisa saber - disse o pai dele - Além disso, é só comer com moderação. Você já cumpriu o combinado mesmo.

- Mesmo assim...pode ser perigoso..

- Tem aquelas trufas que você adora...

- A-Aquela com recheio de cereja também?

- Sim

- Pensando bem...é verdade,né? Só um pouquinho não vai matar ninguém - concordou Jorjão, pensando que poderia se presentear, já que cumpriu a perda de peso combinada.

* Fim do flashback *

- E não deu outra - disse Jorjão - Eu maneirei, maneirei, mas acabei engordando 2 kg...

- Isso foi muito arriscado, Jorjão - falou Demi, toda apreensiva - Faria todo o nosso esforço ser em vão..ou melhor, o seu esforço. Não foi duro passar todas aquelas horas na academia?

- Eu sei, mas quando cheguei no escritório do meu pai no dia seguinte e vi aquele tesouro guardado...não resisti. Tive que devorar alguma coisa.

- Foi muito vacilo - comentei - Mas conhecendo você...acho que se controlou o máximo para não comer mais do que podia, não se controlou?

- S-Sim - gaguejou ele - Eu me controlei bastante. Mesmo assim, engordei 2 kg. Desculpem...eu sei que tudo dependia de mim, mas...

 Era evidente que ele estava chateado. Sua gula era grande, mas bem ou mal ele colocava a amizade acima da comida. Jorjão poderia ter exagerado bem mais se quisesse. É difícil resistir às tentações, mas isso não muda o fato de que estávamos bem apertados.

- T-Tudo bem - gaguejou Wilson - Não temos com o que nos preocupar...você emagreceu 7 kg e engordou 2 kg. Dois menos sete ainda dá menos cinco. Para todos os efeitos você venceu a aposta.

- M-Mas...a balança da farmácia era daquelas de ponteiro - falou Jorjão - E não sei dizer se estou com mais ou com menos do peso combinado.

- Não se preocupe, não se preocupe - disse Wilson - Nenhuma medida é precisa. O importante é que você esteja com 110 kg, não é?

- S-Sim - Jorjão concordou, mas era óbvio que os dois estavam nervosos. Podia ver isso na fala. E eu estava nervoso em dobro, porque não só iria ficar para recuperação de Educação Física como teria que limpar o quarto da minha irmã mesmo tendo perdido a aposta. Eu estava com o coração a mil e isso só piorou quando finalmente a hora da verdade chegou. Todos aguardavam a pesagem de Jorjão e Jubal parecia o mais ansioso para isso.

- Bem, chegou a hora - disse ele - Vamos para o ginásio medir essas gordurinhas?

- E-Eu posso ir ao banheiro antes? - perguntou Jorjão.

- Vá depois da medida - disse Jubal.

- Mas professor...sempre que eu fico nervoso...começa a me dar gases e...

- Deixa ele ir, professor! - gritou Dimas - Por tudo que há de mais sagrado, deixa ele ir!

- Tá bom, pode ir. Mas não adianta fugir. Se não medir o peso hoje, vou considerar que venci a aposta por W.O.

- E-Eu volto. Não vou andar pra trás - disse Jorjão, em uma frase claramente corajosa.

- Jorjão...realmente é um grande homem - comentei com Wilson - Mas pelo nervosismo dele...será que vai estar tudo bem?

- Claro que sim - disse Wilson, sempre otimista - Além disso, Jorjão foi muito honesto em nos confessar que ganhou um pouquinho a mais..é mesmo um amigo de verdade.

- Eu concordo, mas se ele tiver um grama a mais do que o combinado...estaremos perdidos.

- Relaxe - falou Wilson - Só precisamos pedir que Jorjão meça o peso sem sapatos.

- Sem sapatos?

- Sim. Isso vai garantir a diferença que está nos preocupando - disse Wilson com toda a confiança do mundo. Após ouvir isso e ponderar por alguns segundos, concluí que fazia sentido. Afinal de contas, os tênis pesavam um pouco. Após alguns instantes, nosso herói finalmente volta do banheiro.

- Finalmente, heim? - reclamou Dimas.

- F-Foi mal - gaguejou ele - Mas agora estou pronto!

- Lembre-se de tirar os sapatos para se pesar, Jorjão - avisou Wilson - Afinal, não queremos nenhuma injustiça aqui!

- Frescuras, frescuras - reclamou Jubal - Que seja, faça isso.

- Oh, sim, claro. Como eu fiz hoje de manhã.

- Então já mediu o peso? - perguntou Jubal - Deve estar confiante, heim?

- H-Hoje de manhã? - repetiu Wilson - Então...você mediu aquele peso...já sem sapatos?

- Sim - respondeu Jorjão - Foi a medida exata.

- Oh, tá...tá legal - Wilson estava ficando mais pálido.

- Você tá bem, Wilson? - perguntou um cara aleatório da sala - Tá ficando meio branco.

- Eu tô bem...eu tô bem - respondeu ele.

- Mas tem razão em ficar nervoso - adiantou Jubal - Não vou dar moleza nas aulas de recuperação..ah, vocês três vão suar tudo que não suaram em uma vida inteira.

 Tanto eu, como Jorjão, como Wilson engolimos seco. Mesmo assim, não havia com o que se preocupar, certo? Afinal, Jorjão, mesmo tendo comido o que não devia, ainda manteve o peso combinado. A menos que ele tivesse errado algumas casas decimais estaríamos a salvo, ainda mais com aquela balança digital velha.

- Então...vamos nessa! - disse Jorjão, tirando seus tênis e afastando toda a sala um passo para trás.

- Pô, cara, precisa mesmo tirar o tênis? - perguntou Dimas.

- Eles pesam alguns gramas a mais...mas posso ficar só de cuecas

- Não, não, não precisa! A gente dá uma tolerância, não é, professor? - disse o folgado do Dimas, olhando para Jubal que tinha uma cara de "quero acabar logo com isso" .

- Vamos ver - disse ele - Dependendo do que sair na balança..

- Relaxe - Wilson falou baixinho para mim, embora estivesse claramente nervoso - Vamos sair dessa.

- Eu espero muito que sim - respondi.

- A propósito - falou Jubal - O colégio comprou uma balança nova para a Educação Física. Agora ela é bem mais precisa.

- P-Precisa? - gaguejou Wilson. Agora ele estava suando de verdade (assim como eu).

- Sim - disse Jubal - Ela tem até duas casas decimais.

- Duas? Puxa..que demais...hehe - riu ele, afrouxando a gola da camiseta com um nervosismo fora do comum. Eu já estava sentindo até minhas mãos suarem. Jorjão, por sua vez, mantinha a coragem.

- E então? Vai subir ou não?

- Espere! - gritou Wilson - Talvez...seja melhor ele tirar a camiseta e a calça. Se é tão precisa, não vai dar problema.

- Está com medo do quê, Wilson? - perguntou Jubal - Parece até que ele só emagreceu o valor exato do combinado. Se é assim, tudo bem...vamos aceitar até 110,1 kg.

- 110,1? - repetiu Wilson, sentindo um pouco de esperança.

- Sim. Mas um casa a mais do que isso...e é game over para vocês. E então, Jorjão? O peso das roupas sozinhas não deve dar mais do que 100 gramas, não acha?

- Não, claro que não - concordou ele.

- Então...suba aí. Hora de estrear a balança nova.

 Jorjão respirou fundo e subiu na balança. Eu não queria nem olhar. Virei meu rosto com os olhos fechados e deixei que nosso destino fluísse. E, por incrível que pareça, a sorte estava do nosso lado.

- 110... - balbuciou Jubal.

- Exatamente 110! - completou Jorjão - Nem precisei de suas malditas casas decimais!

- Tá legal, tá legal! O Jorjão não conseguiu emagrecer, mas por favor, nos dê mais uma chance! - gritou Wilson (que também não aguentou olhar).

- O que está dizendo, idiota? - reclamou Dimas - O gorducho conseguiu chegar no peso combinado.

- C-Conseguiu? - estranhou Wilson, só depois vendo a marcação da balança - Ah, claro...claro, ele conseguiu!

- Isso! - comemorou Jorjão - Ganhamos! A aprovação em Educação Física está garantida!

- I-Inacreditável - gaguejou Jubal - Como conseguiu emagrecer tanto?

- O senhor sabe...dieta, exercícios, força de vontade - explicou Jorjão - Um pouco de sacrifício não faz mal a ninguém.

 A reação de Wilson foi correr e abraçar nosso amigo. Enquanto os dois pulavam e comemoravam, eu só pude suspirar aliviado. A felicidade não era exatamente a aprovação garantida, mas o não ficar de recuperação. Livres. Livres da humilhação.

- Tsc. Eu jurava que vocês iam se dar mal nessa - reclamou Dimas - Mas o que adiantou? Ele vai voltar  a se empanturrar de novo. O esforço do balofo foi só fachada.

- Isso é o que você pensa, Dimas - disse Jorjão - Essa semana de torturas e sacrifícios me fez perceber que exercícios são importantes e nossa alimentação deve ser balanceada. Prometo que de hoje em diante, vou diminuir minha gula e me esforçar mais nas aulas de Educação Física.

- Sério? - perguntou Jubal, com os olhos quase em lágrimas - Isso seria..seria o máximo! Eu só quero que meus alunos se esforcem!

- Sim..e farei isso a partir de...a partir de..ei, esse cheiro...Putz, o pessoal da cantina começou a preparar os salgados. Beleza, a partir do mês que vem eu começo uma nova dieta! Mas esse mês...vou tirar a barriga da miséria!

- Você só ficou uma semana de dieta, seu.. - Dimas reclamou, mas eu sabia que a promessa do Jorjão era furada. Só uma coisa ainda estava me incomodando.

- Ei, Jorjão, chega aí - chamei ele.

- O que foi?

- Por que estava tão preocupado? Pelo valor da balança de precisão iríamos ganhar com certeza.

- Na verdade - ele falou baixinho - Isso só aconteceu porque fui ao banheiro antes de medir.

- Hã?

- Sim. O que eu descarreguei agora pouco daria muitas gramas a mais - falou ele - Ainda bem que meu intestino me ajudou.

- Err...não precisamos entrar em detalhes - falei, conformado com a resposta. Seja como for, mais uma aposta absurda superada.

- É isso aí! Agora eu quero meu termo assinado, professor! - disse Wilson - Assine esse contrato garantindo nossa aprovação em Educação Física.

- Tá bom, tá bom, eu sou um homem de palavra - disse Jubal.

- Você já tinha um contrato pronto? - perguntei.

- Desde o dia da aposta - falou Wilson - Acha que iria deixar isso para depois?

 É. Só espero não me envolver em mais apostas com risco tão alto. Já vi que esse ano vai ser bem cansativo.