O Escritor: Wizard Ressignificação escrita por Luah Nova, Ewalin, Phoenix M Marques W MWU 27


Capítulo 2
Capítulo 2


Notas iniciais do capítulo

Bem-vindos. Este é o capítulo inicial de fato da história.

Luah Nova
Ewalin
Phoenix M Marques W MWU 27



Arte feita no canva

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Enquanto caminho para a parada de ônibus próximo da faculdade, minha mente imagina e constrói os diversos diálogos que posso ter com minha mãe de criação a respeito do assunto ligado ao meu processo de adoção. Fico temeroso apenas em não ser tão insistente, invasivo ou magoá-la de alguma forma, mesmo que não seja minha intenção.
       É bom ter um lar, uma família que nos acolhe, alguém que se importa, se preocupa. Confesso que conforme o ônibus se aproxima do condomínio onde moramos, minha ansiedade vai aumentando, o aperto no meu peito se torna mais forte, minha respiração fica mais ofegante.
       Confiro o horário em meu relógio de pulso, faltam exatamente três horas e dezessete minutos para o jantar. Passo pela portaria do condomínio, aguardo o elevador, primeiro, segundo, terceiro, quarto, quinto, sexto, sétimo andar, chegamos. Ao abrir a porta sou recebido pelo Café, um salchilata pretinho, uma mistura engraçada de um basset daushshund, o famoso cachorro salsicha; não vamos usar esse nome complicado, até porque salsicha é como sua raça é popularmente conhecida. Sendo assim, o peludo quatro patas de corpo alongado é o resultado da cruza entre um salsicha, com uma outra raça qualquer. Café abana o rabo tão rápido e caminha tão desconcertado na minha frente, que acho melhor ficar parado aguardando o momento de extrema euforia se acalmar.
      Minha mãe surge, deixando a cozinha, secando as mãos em um dos panos de prato, e arrumando o óculos em seu rosto, enquanto fala em alta voz: “Acalme-se Café!”. Como se o doguinho fosse atender o pedido solicitado por ela. Eu fico em silêncio, aguardando os dois se entenderem.
— Como foi a aula, meu filho?
— Muita leitura, muitos estudos. Normal, posso dizer. Teremos seleção para um estágio em assistência médica.
     Dona Cristina, minha mãe, arregala os olhos quando eu informo sobre a seleção, não conseguindo esconder o sorriso bobo que surge em seu rosto.
— Tome seu banho e se apronte para o jantar. Daqui a pouco seu pai chega com sua irmã.
     Café se agitou tanto que seu último movimento foi chegar até a vasilha de água, onde permaneceu por longo tempo. Minha mãe é uma mulher incrível, possui uma rotina organizada desde o café da manhã até a ultima louça limpa do jantar. Todos os dias, durante todos esses anos, ela se dedicou aos cuidados com a família.
  Sigo até meu quarto, um universo infinito e particular preparado e organizado por mim que sempre fui amante das histórias de super-heróis e outros estilos de literatura. Não sei se pela conexão em ser órfão, mas os personagens nas mesmas condições que eu sempre foram minhas fontes de inspiração: Superman, Batman, Flash, os lendários Cavaleiros do Zodíaco, Naruto, até mesmo Harry Potter. Cada qual com suas particularidades, sentimentos, missões, visões de mundo, vida, escolhas.
     Minha velha estante abarrotada de HQs, Mangás, livros e Dvds. Durante um bom tempo na minha não distante adolescência, meus pais se preocuparam por eu viver em meu universo particular, escrevendo história, criando mundos e universos paralelos. Eu me imaginava em cada situação, batalhando, desvendando mistérios, combatendo o crime, salvando a humanidade de uma ameaça superior. Eu fui tantos, vários, diversos, que meus pais acreditavam que eu precisaria do apoio de algum profissional da área da saúde mental. Sim, era exatamente assim, a preocupação dos meus pais chegou em um nível tão elevado que durante algum tempo nós realizamos algumas sessões de terapia. Eu sempre achei que estava me comportando como um simples adolescente sonhador, que só queria usar a criatividade. Isso não é loucura, correto?
      Não tão distante também nesse mesmo período, admito que ver os fios de cabelos brancos surgirem, juntamente com as primeiras rugas e o cansaço da idade nas expressões e força física dos meus pais me trouxeram para a realidade. O tempo passou tão rápido entre nós, ontem eu era um moleque que corria na rua com meu pai, hoje sou um homem que em alguns momentos precisa diminuir a velocidade dos passos para que ele consiga me acompanhar e não se canse tão rápido.
— Oi! Bati na porta e você não atendeu, então resolvi entrar.
— Mãe, a senhora não precisa se explicar.
— Perdido nesses gibis antigos?
— Gibis?
— Bem, eu sempre chamei de gibis. Hoje vocês dão nomes diferentes para falar das mesmas coisas. – Cristina sorriu tão animada.
— Mãe, eu queria saber mais um pouco do meu processo de adoção, é possível?
     Percebi que assim que conclui a pergunta, o semblante da minha mãe se fechou um pouco, uma leve expressão de desconforto surgiu enquanto ela se sentava na minha cama.
— Claro que podemos sempre falar desse e de outros assuntos, referentes a você, meu querido. Eu sei apenas de algumas informações que a madre do convento conversou comigo e com seu pai na época.
— Que minha mãe era mulher aparentemente muito jovem?
— Sim. Você já nos escutou falar essa parte inúmeras vezes. No entanto, a madre nos revelou algumas informações que na época eu e seu pai achamos que fosse um delírio dela, devido a idade já avançada.
— Quais informações?
— Bom, você já é um homem feito e não vejo motivos para não falar. Quando você foi entregue no orfanato São Miguel, você estava enrolado em uma fina manta azul que estava levemente úmida. Sua mãe usava uma capa de chuva amarela, seus cabelos estavam molhados e os sapatos encharcados.
— A manta é a mesma que a senhora guarda até hoje.
— Sim. O interessante, meu filho, é que na noite que você chegou no orfanato, não choveu. Era a época do ano em que praticamente não chove na nossa região.
— Por isso o suposto delírio por parte da madre?
— Sim. Ela contou que minutos depois de você ser levado até a diretoria do orfanato, ela apressou os passos até a entrada principal do convento, mas não avistou a moça em nenhum lugar.
— Será que ela não sonhou?
— Acredito que não, pois outras duas freiras confirmaram a mesma cena e o capacho que ficava na entrada do convento estava molhado. Elas perguntaram para algumas pessoas que passavam pela rua, se alguém havia visto a moça que usava uma capa de chuva amarela em pleno verão paulista, mas infelizmente ninguém havia visto nada.
— Isso torna minha história ainda mais complicada e confusa.
— O que trouxemos com você do orfanato foram apenas algumas mudinhas de roupas, a manta azul e uma caneta, a qual a madre fez questão de enfatizar que a jovem implorou para não perderem ou retirarem do bebê.
— Uma caneta? O que um bebê faria com uma caneta?
— Vamos imaginar meu querido que essa caneta fosse a única memória ou lembrança que sua mãe biológica deixou para você. Não sabemos o que realmente a motivou em tomar tal atitude.
— Realmente.
— É preciso ser muito forte para abrir mão de um filho. Não sabemos as reais circunstâncias e motivações.
— A senhora tem ainda essa caneta? Não me recordo da senhora ou meu pai comentar a respeito desse objeto.
— Sim, seu pai guardou junto dos nossos documentos que estão no cofre. Houve um período o qual nós realmente pensamos em lhe entregar a caneta, mas você era mais jovem e poderia danificar, quebrar, querer levar para os lugares e por algum descuido acabar perdendo.
— Não sou descuidado, sou?
— Acidentes acontecem. Por ser a única lembrança que você possui da sua mãe, eu sempre imaginei que deveria ser bem cuidada.
— Entendo. A senhora sempre sendo zelosa.
— Quer que eu a pegue agora ou pode ser após o jantar?
— Por mim, tanto faz!
— Vamos jantar. Seu pai e Marcela já estão nos esperando.
— Tudo bem.
— Não me deixe esquecer.
      Pude perceber claramente que essa conversa deixou minha mãe um pouco agitada. Não seria pra menos, são exatos vinte e três anos de carinho e atenção dedicados desde a minha adoção. Enquanto conversávamos notei que seus cabelos anteriormente castanhos, estão se tornando cada vez mais brancos, sua voz está nitidamente mais cansada. Espero não estar sendo curioso demais, espero que ela não pense que depois de tantos anos, eu sinta o desejo de procurar ou investigar sobre minha verdadeira origem.
    Uma caneta! Quem imaginaria que eu herdaria uma caneta como lembrança da minha mãe biológica. Isso me deixa ainda mais intrigado. Será que esse pequeno objeto era algo ligado a profissão dela? Será que ela era escritora? Uma pessoa importante? Pode ser que minha vocação para escritor tenha sido herdado por influência dela. Quantas perguntas, quantas possíveis brechas para pensamentos e imaginações.
...
    Durante o jantar, nós não fazemos uso dos aparelhos celulares, uma exigência feita por nosso pai desde que o excesso de redes sociais começaram a surgir. Na visão dele, um desperdício de tempo, futilidades e uma avalanche de conteúdos que não oferecem nenhum tipo de utilidade sendo apresentados por diversos influenciadores. Para o senhor Carlos meu pai, os jovens de hoje querem causar na internet; não digo que ele esteja de todo errado, e compreendo que por ele ser professor universitário, tenha o pensamento voltado para a educação como base de uma sociedade rica em aprendizado, cultura, entre outros valores.
    Na verdade, nosso momento em família é praticamente um plantão jornalístico. Realmente não precisamos de distrações da internet, uma vez que as novidades internas se espalham na velocidade 15G. Sem que eu tivesse a oportunidade de iniciar um diálogo, meu pai rapidamente comenta para que eu me esforçasse na conquista de uma das bolsas do estágio em assistência médica. Diante das palavras ditas por meu pai, os olhos da minha mãe se fecharam, um suspiro longo foi percebido, expandindo o tórax da matriarca da família, que apenas mastigava sua refeição. Marcela, minha irmã, apressou-se em disfarçar o sorriso debochado, levando o copo com suco de acerola até sua boca, balançando a cabeça positivamente buscando demonstrar em meio a gestos que o suco estava saboroso.
     Meu pai percebendo a postura rígida da minha mãe, repousa o talher sobre o prato, alisa o queixo, enquanto corre lentamente seus olhos em nós três. Cada um com uma expressão diferente, minha mãe congelada, Marcela segurando o riso e eu encarando o olhar do meu pai que estava visivelmente sem graça.
— Não era para comentar?
— Carlos, você sempre se adianta.
— Não posso orientar meu filho?
— Pode pai, sempre. O senhor só poderia ser mais sútil na sua forma de falar.
— Eu não fui sútil, Marcela?. Como eu deveria ter falado?.
— Não muito. O senhor poderia perguntar como foi o dia na faculdade do Henry e jogar uma letra a respeito dos estágios.
— Jogar uma letra ou indireta?
    Marcela revira os olhos, seria complicado fazê-lo entender que a forma como nos comunicamos pode desencadear a paz ou a iniciar uma guerra. Nosso pai não é um homem de indiretas ou joguinhos nas palavras, ele é direto, sem filtro, exigente e motivador de toda e qualquer decisão que venha a ser benéfica na minha e na vida da minha irmã. Logo, não vi outra alternativa a não ser, ser mediador dessa pequena confusão formada durante nosso momento de paz e harmonia.
— Tudo bem, tudo bem. Eu entendo que nossa mãe possa ter ficado empolgada com a notícia e resolveu antecipar a novidade para o senhor.
— Eu só desejo o seu melhor, meu filho.
— Eu sei, meu pai. Não precisamos tornar nosso momento em família numa discussão.
— Eu realmente fiquei animada com a possibilidade de você conquistar uma bolsa de estágio. Comentei com seu pai, mas não tive a intenção de criar um clima chato entre nós.
— Eu sei, mãe. Enfim, sobre esse assunto só saberei os detalhes na próxima semana, quando o departamento do curso finalmente irá liberar as regras de participação para os futuros candidatos.
    Marcela torceu o nariz, erguendo suas sobrancelhas, juntando os olhos na direção do nariz. Meu pai achou melhor apenas sinalizar positivamente com sua cabeça, enquanto ajeita os legumes da salada em seu garfo. Minha mãe olha profundamente nos meus olhos, esboçando um leve e pequeno sorriso ladino.
    Um momento de silêncio fúnebre envolve os membros da família Medeiros por um breve instante, até o som do interfone ecoar pela casa, indicando que alguém estava na portaria do condomínio. Minha mãe se apressa para atender; nosso tio Alberto, irmão mais novo do meu pai, estava solicitando autorização para nos visitar.
   O horário um tanto avançado, e sua visita inesperada fizeram com que nossos corações ficassem apreensivos. Melhor não pensarmos no pior, não temos nenhum familiar doente ou com a saúde debilitada. Após alguns minutos o som da campainha informa que tio Alberto aguarda com que um de nós abrisse a porta.
     Meu pai dessa vez faz as honras para recebê-lo. Tio Alberto que é sempre falante e brincalhão, apresenta no momento um semblante entristecido, não tardando para nos informar que sua nora Isadora havia falecido durante uma tentativa de assalto ocorrido no ônibus no qual ela retornava para casa, depois de um dia de trabalho na prefeitura da cidade. O serviço de socorro realizou os primeiros atendimentos, mas infelizmente Isadora faleceu a caminho do hospital.
    A notícia pegou todos nós de surpresa, meu pensamento imediatamente se voltou para o pequeno Yuri, filho da Isadora com meu primo Paulo, de apenas seis anos. Um menino esperto e inteligente que assim como eu foi apresentado cedo demais para a dor de perder alguém importante nas nossas vidas. Yuri carregará apenas as lembranças e as imaginações de como seria sua vida se a mãe estivesse mais próxima por mais tempo, ainda que por mais um curto período de tempo. Essa dor eu conheço bem, e confesso que não desejo que nenhuma criança conheça ou passe por essa dura situação.
      Yuri guardará as lembranças da pequena infância, os carinhos, as broncas, os domingos de dia das mães, as apresentações na escola, o olhar carinhoso e por vezes repreensivo, os traços do rosto e os toque amorosos de sua mãe. Parte das lembranças que eu também queria lembrar. Sinto um vazio em meu peito, deve ser alguma memória afetiva querendo me visitar.
    Após uma breve conversa, abraços e palavras de conforto, meu pai se manifesta para levar nosso tio até a casa do meu primo, para que pudesse também conforta-lo de alguma forma. Eu escondi a emoção por um breve instante, aproveitei que todos levaram tio Alberto até o elevador e segui rapidamente para o banheiro, carregando comigo meu aparelho celular, onde aproveitei para enviar uma pequena mensagem de condolências para o meu primo Paulo.
    Enquanto retirava minhas roupas, permiti que as lágrimas rolassem em meu rosto. No espelho vejo meu reflexo, minha mente me questiona: com quem eu devo parecer? Esses cabelos ondulados castanhos escuros, essa pele parda, o formato e a cor dos olhos castanhos, o sorriso, a estatura beirando um metro e setenta e oito de altura, o tipo físico um tanto atlético devido às aulas de natação e handebol. Meus traços será que são mais voltados para minha mãe ou meu pai? Por um rápido instante, enquanto apoiei minha mão no espelho, eu desejei que ele fosse mágico e que no lugar de mostrar o meu reflexo, ele me trouxesse respostas, visões, mensagens. Imaginei o espelho sendo uma espécie de portal onde pudesse me levar até o meu lugar de origem.
      Disfarço o choro durante o banho, como se a água e o sabonete pudessem levar todos os meus anseios. Não sei se você tem o mesmo pensamento que eu, mas notícias ligadas a morte sempre deixam um clima estranho no ar. Uma sensação de que não somos tão fortes como pensamos, não sabemos o que nos aguarda no próximo minuto, no próximo instante. Tudo é tão breve, frágil, sensível.
     O volume baixo do som da televisão vindo do quarto dos meus pais, não me deixa a vontade o suficiente para lembrar minha mãe a respeito da caneta. Na minha mente, esse assunto poderia esperar, diante da atual situação que estamos passando, nunca estamos preparados para lidar com a morte.
    Marcela em seu quarto, organiza suas roupas. Café dorme despreocupado em seu tapete favorito onde desfruta do sono dos justos. Um sono tão profundo capaz que fazê-lo roncar e estremecer seu pequeno corpinho, deve estar no tal do “rem” dos cachorros. Em meu quarto, organizo os livros, verifico minha caixa de e-mails, as mensagens do grupo da faculdade no Whatsapp, onde alguns professores enviam mensagens importantes. A garrafa personalizada com o símbolo do curso de medicina USP é uma realidade boa da escolha que fiz. Vida e morte, o profissional de medicina vive sempre a beira da linha entre a vida e a morte. Não temos o controle de absolutamente nada, mas podemos evitar que a morte chegue tão rápida na vida de algumas pessoas.
— Posso entrar?
— Claro mãe.
— Trouxe a caneta, assim como havíamos combinado.
— Não precisava se incomodar agora.
— Eu precisei abrir o cofre para pegar algumas informações do plano funerário que seu pai me pediu.
— Já resolveram algo a respeito do sepultamento da Isadora?
— Seu pai está se informando para saber se podemos enterra-la no nosso jazigo. O valor do translado do corpo para a cidade natal dela é muito elevado.
— Entendo. Será mais fácil os parentes dela se deslocarem até a capital.
— Sabemos quem nem todos poderão comparecer no velório e seria muito doloroso para o Paulo. A dor será a mesma se o sepultamento for realizado aqui ou na cidade de origem dela.
     Origem, essa palavra infelizmente é um gatilho na minha cabeça. Minha mãe prossegue com mais algumas informações, enquanto segura minha velha manta e uma caixa de mdf, onde provavelmente a caneta que pertenceu a minha mãe biológica estava guardada. Preciso admitir que boa parte das palavras ditas por ela, eu não escutei a metade. Apenas concordava indiretamente, ansiando por ver o tal objetivo que seria parte da minha história.
— Aqui está a caneta. Trouxe dentro dessa caixinha na esperança de que você cuide da sua herança, assim como eu guardei durante todos esses anos.
   Tomei em minhas mãos a velha e surrada manta azul, acomodando sobre ela a caixa de mdf que tinha um pequeno texto gravado numa espécie de gravação a laser: “Pois, onde estiver o seu tesouro, ali também estará o seu coração”, essa frase cortou meu peito como uma espada afiada, uma referência bíblica do livro de Mateus. Depois de alguns passos, arrumei os itens sobre a mesa onde organizo meu computador, impressora, outros aparelhos eletrônicos e diversos materiais de estudo.
— Vamos! Abra a caixa.
    Minhas mãos tremiam enquanto minha mãe tentava me abraçar em uma posição um tanto esquisita. Meus olhos marejaram, eu não conseguia falar. Eu olhei para minha mãe que me encarava com um sorriso encantador. Retirando a tampa da caixa, me deparei com uma belíssima caneta de ponta finíssima em tom dourado. O corpo da caneta na cor ouro rose, em seu clipe havia gravado as iniciais EAW.
    Meu peito se apertou; segurar a caneta em minhas mãos, fez com que diversas imaginações, perguntas, curiosidades, brotassem em meus pensamentos. EAW, seria a abreviação do nome daquela que me deu a vida? A delicadeza das cores e o refinamento da ponta fina me fizeram pensar em quantos papéis ela havia assinado seu nome.
— Entendeu o motivo pelo qual eu e seu pai demoramos para lhe entregar essa lembrança?
    Não consegui responder de cara a pergunta feita por minha mãe. Era como se existisse um nó na minha garganta.
— Vejo que está emocionado. Não reprima seus sentimentos, meu querido.
     Aquela senhora é realmente um canceriana legítima; com lágrimas nos olhos, ela se deixa levar facilmente pelas emoções. Eu por minha vez, apenas escutei a voz tímida da minha criança interior e abracei minha mãe de uma forma como nunca havíamos nos abraçado antes. Marcela nos vigiava encostada na porta do quarto, limpando as lágrimas que rolavam em seu rosto. Se juntando a nós em seguida para formarmos um incrível abraço triplo.
— Será que ainda escreve?
— Não sei, minha irmã. Podemos testar, o que acha?
— Cuidado para não quebrar a ponta. Não coloque muita força na hora de escrever ou apoiar no papel.
— Vejo que alguém ficou com ciúmes dessa caneta, depois de tantos anos. Nossa mãe irá esconder no cofre novamente quando menos esperarmos.
— Engraçadinha minha filha!
— Rápido Henry. Pegue um pedaço de papel para testar.
   Jamais imaginei que minha mãe e Marcela ficariam tão envolvidas e animadas por compartilhar comigo esse momento. Rapidamente rasgo um pedaço de papel que estava na impressora. Me certifico de como seria possível fazer a ponta da caneta aparecer. Todo cuidado era pouco, era o meu primeiro contato com uma belíssima caneta. Descubro que é necessário torcer o corpo para que a ponta apareça.
    O aparelho celular toca; Mônica uma amiga da universidade me ligando, e não posso deixar de atendê-la. Mônica é uma mulher maravilhosa, estudante do curso de psicologia, nos conhecemos no período no qual cursamos uma disciplina em comum das nossas áreas. Desde esse encontro nossa amizade se tornou cada vez mais próxima.
   Observo minha mãe e Marcela deixarem meu quarto para que eu tivesse mais privacidade para falar com Mônica. Boa ouvinte, espírito livre, tatuada, possui uma sensualidade e beleza marcante. Mônica é simplesmente aquele tipo de mulher que vive intensamente, se entrega, uma pessoa sincera até demais. Curiosa para saber as novidades da minha vida, ela me questiona sobre a conversa que prometi que teria com minha mãe, eu explico resumidamente toda situação, aproveitando para descrever alguns detalhes interessantes. Ela é tão intensa que consigo sentir a alegria em suas palavras, enquanto me pede para não dizer tudo, pois gostaria de ouvir pessoalmente no dia seguinte quando nos encontrássemos na universidade. Nos despedimos num clima tão contagiante e amigável; é bom ter pessoas que se alegram com nossas conquistas.
      Eu e Mônica não nos falamos por muito tempo, mas esse pequeno ou médio tempo de conversa foi o suficiente para que Marcela adormecesse em sua cama. Escuto meus pais conversando no quarto, a porta fechada não me dava o direito de cortar a conversa entre eles. Retorno para o meu quarto, pelo que posso notar, esse momento de teste será apenas meu. Acomodo a folha branca sobre a mesa, realizo uma leve torção no corpo da caneta, sinto uma brisa estranha tocar meu rosto e corpo. Observo as janelas, todas estão fechadas, talvez seja meu nervosismo me fazendo sentir coisas.
     Na folha branca desenho um leve zig zag; a cor azul da carga, revelado no branco do papel é extremamente linda. A escrita suave me fez sentir um desejo infantil de escrever na palma da minha mão. Resolvo então fazer um leve rabisco, posiciono a caneta e a percorro por toda extensão. Sinto como se algo tivesse me cortado. Será que existe alguma rebarba, alguma rachadura na ponta da caneta? Uma leve dor, seguida de pequenas gotículas de sangue. Provavelmente deve haver alguma pequena rebarba que acabou me cortando.
Levo minha mão até minha boca, o sangue insiste em escorrer, ainda que em uma quantidade bem pequena. A dor do leve corte é bem incômoda. Resolvo ir ao banheiro para lavar.

...

Em algum ponto do universo, o som delicado produzido no momento no qual Henry torceu o corpo da caneta... uma mulher sorriu, enquanto observa pela janela a imensidão dos céus. Ao mesmo tempo, em outro ponto do universo, alguns semblantes se fecharam, enquanto farejam o delicado cheiro de tinta, e posteriormente o cheiro de sangue e tinta despertou a ira.
    O torcer do corpo da caneta e o rabisco no papel foram as chaves necessárias para que Henry movimentasse os universos, despertando a atenção de Lia. O cheiro da tinta liberada pela carga aguçou o olfato dos seres que desejam o controle dos universos, a mistura de tinta e sangue é a certeza de que ainda existe um Agostini vivo em algum lugar.

....

— Será ele mesmo?
— Não tenho dúvidas. A caneta reconheceria facilmente um verdadeiro Agostini.
— O que a senhora pretende fazer?
— Seguir o rastro da Emilinhas e visitar nosso Henry.
— Não será arriscado, senhora?
— Se nós escutamos o som do torcer da caneta, é bem provável que os Encantadores conseguiram sentir o cheiro da tinta. Vamos percorrer os corredores da biblioteca e encontrarmos o livro mais apropriado para visitarmos o pequeno Agostini.


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