Incursão no inferno (livro 2) escrita por Natália Alonso


Capítulo 4
Capítulo 3 – Traições




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“Fiquei magoado, não por me teres mentido, mas por não poder voltar a acreditar-te.” - Friedrich Nietzsche

 

 

 

Limbo

 

Lilith está abraçada a Belial, consolando seu querido amigo.

— Mefisto disse que não o encontrou, fazem semanas já que não nos vemos, ele desapareceu desde aquela maldita reunião!

— Calma, Bel, ele deve ter se escondido junto dos orobas.

— Você ficaria calma se Azazel simplesmente sumisse por tanto tempo? Como me fala isso?

— Oh, querido, não estou diminuindo sua dor, eu só quero que fique bem. Ele já lutou em tantas guerras, ele não seria exatamente fácil de pegar.

Baphomet carregava uma pilha de livros nas mãos quando os posiciona na mesa, ela estuda pacientemente os signos de possessões e feitiços quando lê atentamente um trecho e pergunta:

— Mefisto falou sobre Abigor?

— Só disse que ele olhava para ele e Lucy de uma forma estranha. — responde Belial tentando se acalmar.

— Mas não falou com ele?

— Não, creio que não.

Ela resmunga algo indecifrável enquanto folheava as páginas de ritos místicos. A mão peluda dela pousa sobre uma página com ritos de invocação e de transmutação, então ela levanta os olhos de cabra para falar.

— Ele nunca desprezou os orobas, pelo contrário, na reunião ele demonstrou consternação com a decisão de Astaroh.

— Acha que então ele pode estar ajudando Baal?

— Isso... não tenho como garantir. — Ela perde a concentração na leitura quando suas orelhas pontudas de cabra que saem da cabeleira trançada e penteada em um moicano se movimentam rapidamente.

Baphomet se levanta, seus cascos fendidos se afastam sentindo o chão, seus pelos longos das costelas e seios expostos se arrepiam.

— Baph? — indaga Lilith. — O que foi?

— Estamos sendo cercados.

Assim que ela fala, Belial se levanta rapidamente pegando os mapas que Lilith trouxera e os coloca em sua bolsa. Baphomet entrega a ele também o livro com feitiços que tinha acabado de encontrar. O som de um dos portões sendo derrubado ao longe reverbera, a vibração no chão agora é perceptível a todos, o marchar de uma tropa está se aproximando do rico castelo. Belial invoca uma cimitarra, ele puxa Lilith para trás de si mesmo se posicionando de frente a porta do salão. Baphomet invoca seu pique, uma lança de três metros, longa o suficiente para ser pouco maior do que a alta demônia que também tensiona o pescoço estralando os ossos a muito tempo usados em batalha. Ela vai à frente de Belial, seus cornos redondos parecem crescer com a ansiedade da luta eminente. Os três observam as portas se abrirem rapidamente, o rosto de Belzebu é o primeiro a aparecer.

O senhor das moscas sorri com seus dentes podres e faltantes, abre espaço para a entrada do rei Astaroth em suas vestes vermelhas que se fundem aos cabelos na mesma tonalidade. Logo após o rei de pele cálida e longos chifres branco leitoso curvados para trás, a figura de um comandante em uma rica armadura negra, Vlad Tepes, o primeiro Drácula. Ele sorri exibindo suas presas enquanto é seguido por dois soldados vampiros.

— Por que tenho a impressão que essa visita não será cordial, querido primo? — Baphomet posiciona-se à frente, a cabeça de Astaroth chega até a altura do ombro dela, assim, mesmo que sempre serena e moderada, ela é uma figura imponente.

— Entregue Lilith, e eu serei brando em seu julgamento de traição, junto de Belial.

Ela vira-se para Belial, que mantém firme a cimitarra na mão e arqueia o peito. A comunicação entre os amigos de longa data é somente pela troca de olhares e já deixa claro que ninguém irá recuar. Baphomet, pausa serenamente antes de retornar a face ao rei.

— Que generoso. Posso saber do que estamos sendo acusados, mais especificamente?

— Ela roubou documentos importantes de meus aposentos, e provavelmente entregou para o anjinho que tanto gosta.

— Imagino que tenha provas disso, meu rei.

— Tenho o suficiente.

Baphomet bali, ela sabe o quanto qualquer ato animalesco irrita profundamente Astaroth. Então ela observa Vlad sorrindo perversamente atrás do rei.

— Eu não sabia que tinha mudado sua tratativa quanto a perdão de condenados. Vlad estava condenado à eternidade no círculo da traição, um abusador, herege, roubou almas e tantos outros crimes que eu nem saberia de cor. Estou curiosa do motivo dele estar agora aqui, te acompanhando.

Astaroth meneia por um instante antes de falar.

— Temos muito em comum. Ele agora é o primeiro comandante.

Belial franze o cenho estranhando a informação.

— Achei que Sabnock era seu primeiro comandante, inclusive ele quem gerencia o nono círculo, da traição onde Vlad era condenado.

Belzebu olha para Vlad, o vampiro sorri mostrando as presas tingidas de vermelho.

— Ele não está mais no cargo. — responde Belzebu em sua boca trágica.

Baphomet funga entre as narinas, o gesto arranca um olhar irritado do monarca. Ela decide provocar.

— E você, Belzebu, quanto tempo você acha que irá durar nesse ritmo?

— O que?

Baphomet sorri, o avalia de baixo para cima e depois encara Astaroth.

— Nós sabemos que nosso rei está fazendo uma limpeza étnica, eu sei bem que você não pretende me levar prisioneira. Não admirava Paimom, Sabnock, e deixou isso bem claro na reunião de anúncio de guerra. “Que orobas fiquem escondidos”, nós com traços bestiais não agradamos aos olhos do rei.

Astaroth levanta a face para ela ao mesmo tempo que torce o nariz.

— Eu não tenho culpa que o mal cheiro me atordoe. Sim, não é por que somos demônios que não podemos seguir certos padrões.

— Você também tem chifres, priminho. Também tem vergonha deles?

— Um par são toleráveis, mais do que isso, pelos e cascos, já nem tanto.

Baphomet volta a olhar para Belzebu.

— Foi por isso que arrancou suas presas de javali, Belze? Escolheu ficar com a boca desdentada para agradar seu amado rei? — Ela se aproxima e sussurra provocativa ao ouvido dele. — Será que é o suficiente ou terá que arrancar o rabo que todos sabemos que esconde em suas calças?

Belzebu grita em fúria levantando sua espada contra Baphomet, ela desvia do golpe com facilidade girando o corpo em um dos cascos e depois dá uma balida desdenhosa ao dar um coice jogando-o do outro lado do salão. Astaroth meneia com a cabeça para Vlad, o vampiro vai junto dos soldados contra Belial que invoca uma adaga entregando para Lilith. Os soldados se posicionam junto de Vlad fazendo um triângulo entorno de Belial e Lilith.

— Assim que conseguir, você foge daqui! — Ele sussurra para ela. — Vá pelo corredor da álgebra, na sala final tem um portal fixo, basta ajustar o destino. A condenada apenas concorda, apavorada.

Belial defende os golpes dos soldados que avançam em conjunto sincronizado. Em um gesto, ele invoca uma cópia de si mesmo que passa a lutar com os soldados enquanto impede que Vlad pegasse a mulher.

— Não pense que vai levá-la daqui!

— O que foi, está com sede também? Eu posso dividir.

O vampiro luta com Belial com suas espadas longas e tão negras quanto sua armadura. O demônio ataca fazendo a espada curva sibilar no ar. Baphomet volta sua ponta de lança contra o peito do rei que desvia do golpe rugindo em ira.

— Ousa me trair, e agora levanta sua arma para seu rei! Eu deveria ter imaginado isso, cabrita!

— Eu não me curvo a ninguém, devia já saber disso. Ainda mais a alguém que facilmente eu derrubaria.

Astaroth fica confuso e então sente dor em seu peito, ele nem notara quando a lâmina cortara sua veste elegante ferindo seu dorso. O sangue vermelho aparece em destaque na pele branca e mancha sua vestimenta, um pouco atordoado ele fica aliviado quando o grito de Belzebu interrompe a aproximação dela.

Belzebu salta no ar, agora com duas espadas, Baphomet defende o golpe com a lança e desvia do segundo. O demônio, irado com a humilhação, faz diversos golpes em sequência tentando atingi-la, ela apesar de grande, é bastante ágil até chegar na parede. Lá ela se abaixa escapando do golpe com ambas as lâminas que atingem o pilar, uma das espadas fica encrustada na pedra. Ela o contorna, ele precisa girar para defender-se com a espada que sobrara. O golpe dela é tão forte com a lança que o joga contra a parede, suas costas batem na própria espada, ele perde o ar quando cai junto da arma e pedaços da parede no chão.

Ela percebe que a cópia de Belial está com dificuldades com os soldados vampiros, quando ele faz suas sombras precisa se concentrar em dois atos ao mesmo tempo. Ela estranha quando percebe que ele está no chão, uma de suas mãos está tremendo com um corte superficial no braço, linhas brancas crescem em sua pele entorno do corte, o desenho tem forte contraste com sua cútis obscura. Ela gira a lança no ar decepando ambos os soldados ao mesmo tempo. Suas cabeças se desprendem dos corpos inertes antes de ir ao chão. Belial agora pode lutar ambas as cópias contra Vlad, vampiro habilidoso com a espada. Distraída com o auxílio, Baphomet não percebeu quando Belzebu pegara sua espada e fincara em seu joelho. Ele segura um tufo de pelos de suas costelas e arranca pouco antes de puxar a espada. Ela hurra de dor e bate com a lança contra ele que cruza as espadas cortando a pique dela.

Ela pega ainda a haste quebrada da lança e usa para surrá-lo, ele tenta se defender contra os repetitivos golpes com a espada, mas ao ser açoitado na mão e nos braços acaba perdendo as próprias armas. Belzebu vira de costas tentando se curvar, escondendo-se das batidas metálicas.

— Você sempre foi um pirralho teimoso! Deu trabalho desde criança e continua assim mesmo depois de adulto! — Ela vocifera com seus orbes de cabra já vermelhos de ira.

A sequência de golpes é interrompida quando Astaroth finca uma adaga na lateral peluda de Baphomet, ela inspira e assiste a lâmina sair rapidamente e penetrar novamente em outro ponto entre costelas. Ela responde com um golpe de cotovelo certeiro no rosto do rei maldito, ele leva a mão no rosto cambaleando para trás. Ela vira-se ainda com a adaga fincada para ir a ele quando Belzebu salta agarrando-se às costas dela, derrubando-a no chão. Ele usa sua lança partida entorno de seu pescoço para estrangulá-la por trás, pisando em sua coluna. Ela curva-se para trás, Astaroth retorna segurando os longos e redondos cornos dela empurrando-a para baixo. Ela sente a barra da lança cortar parte de sua pele do pescoço, sua traqueia sendo esmagada, o rei usa o próprio peso contra ela empurrando os cornos para fora, como se tentasse arrancá-los. Ela estremece apoiando as mãos no piso, vira sua cabeça de lado para proteger a garganta. O movimento faz com que Astaroth que estava apoiado se desequilibre e fique mais próximo, ela finca suas garras na lateral do rosto dele e puxa arrancando um filete branco de carne. Ele rosna, mas permanece, então ela repete o movimento e alcança o chifre pálido de Astaroth.

— NÃO! — O demônio branco ruge em protesto com o chifre sendo puxado pela mão dela, os estalos são audíveis. — Vagabunda!

O chifre se quebra como um galho grosso, ela ainda o usa para bater no rosto do rei por duas vezes, perfurando seu olho vermelho e talhando-lhe a face. Isso o força a se afastar gritando de dor e ego ferido. Belzebu berra trazendo com mais força a lança quebrada, ele move as pernas para frente em busca de apoio. Ela percebe, crava o chifre partido em seu pé e finca suas garras no tornozelo dele lançando-o para frente. As calças rasgadas revelam a perna lacerada e a ponta balançante de sua cauda de asno que estava escondida sob o tecido. Baphomet acaba sorrindo com os dentes coloridos de sangue e tossindo um pouco no chão.

Ela ri ainda rouca no chão, a voz rouca aos poucos vai se ajustando a traqueia parcialmente esmagada.

— Patético, Belzebu, eu disse só de piada, mas ver que é verdade fica ainda pior...

Nesse momento eles escutam o tintilar de espadas e a cimitarra de Belial ser lançada para longe, Vlad consegue decapitar o sósia do demônio. Com sua cópia sendo atingida com essa estranha arma, o demônio cambaleia fraco lateralmente pouco antes do vampiro fincar sua espada longa no ventre dele, olhando nos olhos dele antes de finalizar seu empalamento.

— Não! Belial!

Baphomet grita se levantando e correndo até o amigo. O vampiro ainda está junto do demônio quando Lilith vai até as costas dele fincando a adaga em seu pescoço. Ele vira-se para ela com a ponta da adaga atravessando sua carne e despontando lateralmente, ela vê que pouquíssimo sangue escorreu e parou de verter, mesmo com a lâmina ainda fincada. O vampiro a fita gentilmente alcançando seu ventre com as garras, aprofundando-se em sua carne. Sorrindo ele tira a adaga do próprio pescoço e joga-a longe, admirando o rosto de horror da condenada, apoia sua mão na nuca dela, para encostar testa com testa, farejando-a. Ele vira-se para o rei como que pedindo autorização. Ela foi concedida. Vlad então arranca uma quantidade de vísceras entre seus dedos, deixando-as cair no chão. Ela treme, não grita, não chora. Ele ainda a segura docemente no rosto, agora com as duas mãos, uma delas suja de seu sangue interno, agarra seu pescoço e morde grosseiramente arrancando um naco de sua musculatura.

Baphomet balança a cabeça em negativa, ela sacode Belial para que ele fique novamente consciente. Ele levanta os olhos profundamente vermelhos que ao brilhar cria seis cópias de si mesmo em pé. As cópias empurram o rei e Belzebu para longe rapidamente aproveitando o elemento surpresa e dando tempo o suficiente para que Baphomet o ajude a levantar e carregá-lo pelo corredor.

— Eu achei que você não conseguiria fazer mais cópias agora.

— Não consigo. São ilusões temporárias.

Ambos correm pelo corredor estreito para a sala onde um portal aguarda aberto, Baphomet fecha a porta atrás deles enquanto Belial ajusta as coordenadas para o círculo de Asmodeus. As ilusões só duraram alguns segundos, foi o suficiente para a corrida, ela escuta mais soldados vampiros que foram convocados para dentro se aproximarem. Belial a chama, ambos passam pelo portal que assim que se fecha é destruído por uma chama deixada pelo demônio astuto.

 

 

*******

 

Asmodeus surge no círculo de invocação, os signos foram desenhados rusticamente na areia e as velas posicionadas. Assim que ele aparece ofegante, irritado, ferido pelas queimaduras, levanta os olhos para ver quem teve a péssima ideia de o convocar dessa forma. Seus olhos negros encontram os olhos de cabra, Baphomet, ela está de joelhos no círculo, sua mão trêmula ainda segurava a vela final.

— Irmã? — Ele chama assustado com a imagem dela.

Assim que vê que ele chegara ela apaga a vela de sua própria mão e usa a peça para quebrar o complexo selo, permitindo que o invocado se mova livremente. Ela ainda está com uma adaga afundada em suas costelas, uma perfuração profunda em outro ponto, assim como seu joelho que não consegue apoio e o sangue escorre da base de seus cornos longos e curvos. Ela que sempre usa uma complexa rede de pingentes e correntes no dorso está apenas com os seios nus entre os pelos de tufos arrancados. Asmodeus se arrasta pelas areias avermelhadas para segurá-la antes que ela caia de lado.

— Me desculpe por te invocar, eu sei que é horrível.

— Tudo bem, eu estou aqui com você agora, irmãzinha.

— A sua rede de signos era a mais simples de desenhar, e não era seguro chamar Mefisto... — Baphomet murmura entre os dentes ensanguentados no colo do irmão.

— Espera, calma, vai ficar tudo bem, eu posso cuidar de você.

Nesse momento ele percebe que Belial está atrás, caído de lado, a ponta de uma espada negra sai por suas costas.

— O que aconteceu com vocês?

— Astaroth veio para o Limbo, Mefisto ficará louco quando souber quem ele colocou como comandante.

Londres

Uma fenda se abre em uma remota rua de Londres, por ela passam Lucy, Manson e Mefisto logo atrás, fechando o portal dimensional. O policial acende um cigarro imediatamente, ele anda pela rua observando a paisagem urbana. O demônio esconde os cornos em uma ilusão na cabeleira e coloca um par de óculos escuros de lentes redondas. Ele dá dois passos e logo percebe que os pés descalços e as calças surradas podem não ser bem vistos no ambiente urbano. Elegantes calças pretas de alfaiataria surgem junto dos sapatos com solas vermelhas. O demônio olha para si mesmo como se conferisse o visual antes de notar estar sendo observado pela mulher.

— Acho que nunca te vi de sapatos antes.

Ele ri com a constatação.

— Realmente, eu prefiro meus pés livres.

— Não seria mais fácil fazer uma ilusão para seus olhos?

— Seria. Mas não se pinta as listras de um tigre, não é mesmo? Tudo tem limites, já estou me moldando bastante para essa visita se torne suportável.

Ele não esconde os trejeitos de incômodo em estar nas ruas londrinas.

— Estranho, sempre achei você tão à vontade entre nós.

O demônio observa as pessoas andando distraidamente ao longe na rua lateral.

— Eu me sinto à vontade com pessoas específicas. Já andei nas ruas, me expus a algum tempo atrás, não foi muito divertido.

Lucy observa que Manson parece distraído, apenas olhando a ponte ao longe e os carros passando.

— Já tinha vindo para Londres antes?

— Hum?! Não. Quando viajo prefiro ir para algum lugar mais verde, menos urbano e cinza. Já sou cinza o suficiente.

Ela parece concordar. Ele tosse forte, pega um lenço no bolso interno do casaco e o leva a boca.

— Tudo bem?

— Sim, acho que estou um pouco gripado. Justo agora que posso fazer essa pequena viagem com você. Tenho que agradecer ao... diabo? — Manson fala olhando para Mefisto que lhe responde com um sorriso torto. — Enfim, vamos ver seu amigo?

— Eu mandei uma mensagem para ele, espero que ele esteja receptivo.

— Você não me parece otimista. Quem é esse cara, afinal?

Ela suspira olhando para o policial.

— Já ouviu o conto de “o médico e o monstro”?

Ele pensa brevemente, assente confirmando e por um instante leva a mão na cintura conferindo a presença da arma no coldre. Londres ainda tem o mesmo glamour urbano e cinza de antigamente, claro que muito mais cosmopolita agora, o turismo transformou esse lugar com uma agitação estranha para um londrino. Na Regent Street, 45 há um estabelecimento de armarinhos e lembranças para turistas. A loja de teto elevado tem as duas paredes cobertas de estantes com bangalôs, estátuas de resina com o busto da rainha, bandeirinhas, pequenos Big Bens e parlamentos.

Entre todas as inúmeras tranqueiras feitas na China, está sentado no balcão um menino de no máximo doze anos. Lucy olha para ele tentando acreditar no que vê, seu rosto, a delicadeza de suas feições e movimentos. Mefisto percebe o estranhamento dela então também para e observa o garoto antes de seguir pela loja, Manson está completamente entretido com as miniaturas. Ela finalmente se movimenta e vira para o garoto.

— Com licença, você deve ser Thomas, não é mesmo?

— Você é a Lucy?

— Sim. Bom, se você sabe de mim, então acho que ele está me esperando, não é.

— Sim, ele te aguarda lá encima, se quiser subir. — fala apontando para a escadaria. Seu movimento é um pouco travado.

— Obrigada, Thomas.

Eles sobem as escadas do fundo da loja, chegando à saleta de frente à cozinha o cheiro de chá preto, tipicamente inglês os recepciona. Um pequeno sofá de madeira e almofadas combinando ao lado de lindas poltronas amarelo pastel.

— Jekyll? Está aí?

— Pode sentar, Lucy, estou fazendo o chá. 

Lucy e Manson sentam-se no sofá, deixam livre uma poltrona à frente, Mefisto permanece em pé, levemente atrás do policial.  Eles veem entrar a figura do idoso carregando a bandeja com dificuldades. A bengala está pendurada no braço e balança levemente com o movimento. Ela se levanta, coloca a bandeja na mesinha, o homem se apoia na bengala e eles se cumprimentam. Seus chinelos de tecido e casaco de lã deixam claro que ele já está em seus últimos anos de vida.

— Que saudades. — Ela o abraça com delicadeza. Ele, a aperta um pouco demais.

— Pensei que só viria aqui novamente em meu enterro, ou talvez nem isso. — Ele deixa escapar um toque de rancor em suas palavras, ela ri um pouco antes de estender a mão apresentando os dois.

— Jekyll, esse é Manson, de New Orleans.

— Oh sim, o policial, muito prazer, sortudo. — Cumprimentando Manson, o mais formal que um inglês consegue ser.

— E este é Mefisto.

— Oh. Eu deveria acender uma vela?

O demônio sorri amistosamente.

— Só se você desejar.

O idoso olha para Lucy sorrindo com uma das sobrancelhas levantadas.

— Certo, agora eu entendi.

Ela vai devagar para seu lugar no sofá.

— Nós precisamos de sua ajuda, Jekyll. — A mulher fala enquanto o chá é servido formalmente nas xícaras.

— Isso você me disse no telefone, ou então, para que se daria o trabalho de vir. A questão é, o que vai me dar em troca?

Ela suspira.

— Acredito que podemos chegar a um acordo sobre isso também. Eu sei que você ficou chateado comigo, só não pode ser agora.

— Chateado? — Ele estreita os olhos em desacordo.

Ela gagueja na tentativa falha de resposta quando ele retoma.

— Quando então? — inquere o idoso impaciente.

— Primeiro vamos impedir que a terra seja destruída pelo inferno, depois podemos impedir que Dorian continue suas festas. — Mefisto interveem.

— Podemos? Está me oferecendo ajuda também para matar esse maldito? Eu devo assinar algum contrato?

O demônio responde com um bufar nos lábios.

— Considere uma gentileza.

Jekyll move a colher duas vezes na xícara antes de apoiar a peça e tomar um gole do líquido fumegante. Ele se apoia confortavelmente na poltrona.

— Mas, me explique por favor, o que te fez mudar de ideia repentinamente, Lucy?

— Dorian está me cercando aos poucos, ele mandou um assassino para a minha cidade.

— Hunf, o assassino escolheu ir até você ou foi Dorian que o fez escolher?

— Isso importa?

O velho move devagar as pálpebras dos olhos manchados de catarata.

— É, suponho que realmente não faça diferença. Ele matou alguém próximo seu?

— Por pouco que não, mas fez muitas vítimas.

— Ah, então tudo bem. — O velho responde com certo desdém.

— Tudo bem? — Manson fica pasmo com a fala pouco empática com as vítimas de Clinton, o canibal. — Acha que dezenas de mortos torturados não têm importância apenas por não os conhecer?

A vampira apoia a mão na perna do policial, pedindo calma.

— O que eu creio que meu amigo quis dizer é que como vivemos muito tempo, acaba que nosso sofrimento fica apenas mais direcionado às pessoas próximas. Não é mesmo, Jekyll?

— Claro. Se preferir colocar dessa forma. — responde o homem ainda indiferente colocando um torrão de açúcar na boca. — Você não me ofereceu ajuda só por causa de UMA PESSOA, ainda mais uma QUASE morta e várias vítimas desconhecidas. Vamos lá, Lucy, seja sincera. Isso no máximo seria o suficiente pra você fugir de novo, nova identidade, vida nova. Você costuma fazer isso mesmo.

— Acontece que eu estava auxiliando Manson em uma investigação de um traficante internacional de mulheres. E recentemente descobri que Dorian é seu comprador.

— Isso não estava no caderno que me trouxe, encontrou algo mais? — Manson fala confuso.

— Isso foi eu que dei as informações faltantes. — Mefisto responde atrás dos óculos de sol. — Eu precisava ter algo para oferecer.

— Enfim. — A vampira parece impaciente. — A questão é que ele tem recebido muitas mulheres, pela Albânia, Sérvia e vão para a Romênia.

O velho franze a testa.

— Ele está no castelo de Bran ainda?

— Acredito que sim, e talvez fazendo um exército com Shiva. Isso seria uma possível guerra também se ele decidir colocar em prática os planos que sempre teve de que vampiros deveriam aparecer em sociedade.

Jekyll ri internamente.

— Deixa eu ver se eu entendi a ironia. Então você vem aqui pedir a MINHA ajuda pra impedir uma guerra, e em troca você oferece ajuda para matar Dorian que desconfia que pode fazer uma OUTRA guerra. E o melhor é que se você tivesse me ajudado quando te pedi, não teria esse segundo perigo e também não teria assassino que quase MATOU seu amigo e essas outras vítimas que seu namorado se importa...

— É... Creio que isso seja um resumo. — Ela responde constrangida.

— Isso significa que Dorian só mandou o assassino pra sua cidade por que VOCÊ não quis colocar um fim nisso a décadas atrás. Atacaram seu amigo por culpa sua, afinal ele foi mandado pra lá por sua causa.

Ela fica em silêncio com Jekyll sorrindo sarcasticamente, ela sabia que o velho tinha guardado algum rancor.

— Me culpa por isso, sendo que o louco obsessivo é o Dorian.

O velho balança o dedo em negativa.

— Não. Não é só eu que penso isso, ou então você não estaria aqui bem vestida e gentil para me levar para luta.

— Eu... preciso de sua ajuda, Jekyll.

— Parece que está colhendo o que plantou. Quantas vezes eu disse que tínhamos que acabar com Dorian! Mas não! Você preferiu fugir.

— Quanto falso moralismo!

— Eu achei que vocês eram amigos. — Manson fala questionando a postura dos dois, ele se inclina no encosto como se quisesse ver mais ao longe.

— Sim! Eu também pensei! — vocifera o idoso, olhando fixamente para ela.

— Está bem, se é assim que deseja, vamos colocar tudo na mesa! — desafia a mulher. Mefisto dá dois passos para o lado se afastando.

— Posso mesmo? — questiona Jekyll, querendo uma confirmação.

Ela se levanta, se colocando à prova. Jekyll rapidamente abre sua bengala e atira com sua escopeta improvisada, a mulher chega a ser derrubada contra a parede pelo empurrão da bala fragmentada. No chão ela fica atordoada, quando percebe que Manson está mirando para o rosto de Jekyll, o velho sequer olha para o policial.

— Abaixe a arma. — ordena Manson, mirando para o centro do rosto de Jekyll.

— Você não tem jurisdição aqui filho, está na minha casa, como convidado. E ela mereceu, ela sabe muito bem disso.

— Vou avisar mais uma vez, senhor. Abaixe a arma... — alerta Manson, já destravando sua pistola.

A arma de Manson voa de sua mão e é atraída diretamente para a mão de Mefisto que habilmente deixa o pente cair no chão e em um gesto vira a peça fazendo a bala da agulha saltar.

— Como eu odeio essas porcarias barulhentas, fazem muita bagunça. — O demônio resmunga.

— O que? Está tirando a minha arma, mas não a dele!

— Relaxa! Ela não morreu, já levou muito mais tiros antes, nem é o suficiente pra realmente causar transtorno. Certo, Lucy?

A mulher balança a cabeça concordando enquanto luta pra respirar. Manson olha inconformado para ela, que se levanta já com alguns dos fragmentos caindo do peito. A camisa está destruída de perfurações e sangue.

— Manson, realmente não precisa reagir. — rosna as palavras, irritada. — Até porque, atirar em Jekyll não iria adiantar de nada, não é mesmo, velho?

Jekyll monta de novo a sua bengala, a encosta na poltrona para depois começar a juntar as xícaras de chá na bandeja novamente.

— Qual a razão disso tudo? — Confuso, Manson questiona enquanto a ajuda a levantar finalmente.

— Pois Dorian foi um problema a todos nós e, em outro momento, eu não quis ajudar amável doutor com sua vingança.

Jekyll para ao ouvi-la.

— Dorian me fez perder tudo, Lucy. — fala Jekyll ainda abaixado sobre a louça.

— ELE ME FEZ PERDER TUDO VÁRIAS VEZES! — grita a mulher. — Eu só tentei me esconder dele e ele sempre aparecia! Eu não tenho culpa pelo que te aconteceu, Jekyll!

— Eu pedi a sua ajuda. — fala ele, ainda abaixado para o açucareiro.

— E eu não dei! Pois eu tinha muito a perder e precisava aproveitar que ele não tinha me encontrado ainda!

— Muito a perder? — fala ele ainda abaixado, em tom incisivo.

— Minha dignidade.

Jekyll fica com seus olhos enegrecidos, ele dá apenas dois passos e segura o pescoço dela com as mãos, a ergue na parede completamente irado. Manson ia se aproximar, mas sente a mão de Mefisto o empurrando no ombro para voltar a se sentar no sofá. A mulher se segura nos braços do idoso em fúria, impedindo o estrangulamento.

— Que dignidade, Lucy? Quando eu a encontrei você estava lutando em uma jaula por comida, sangue e vodca em São Petersburgo. Uma puta por comida e sangue? Uma assassina paga pelo governo?

— Eu era livre. E o que eu fazia não te importa em nada, não me leve a mal, mas não é da sua conta. Quem é você para me falar disso? Um viciado que consome até hoje o tônico para se manter vivo...

— Eles estariam vivos se você tivesse me ajudado!

— Esqueceu que eu estava aqui no dia? Não foi ele quem matou sua mulher e seu filho!

— ELE ME MANIPULOU! 

— Sabe muito bem que também fui manip...

— NÃO COMO EU! — vocifera ele enquanto a ergue e bate suas costas na parede. — Ele a manipulou para amá-lo, pra te humilhar e ferir. Ele não te fez matar sua própria família!

A pressão é tão grande que ela sente as pedras sendo esmagadas nas costas, ele berra muito próximo ao rosto dela. Então ela solta as mãos que seguravam os braços dele.

— Não, foi generoso, ele fez com que outros matassem minha família e eu assistisse... quer saber, foda-se. Quer me matar ou me estraçalhar por que fui uma péssima amiga, faça isso! Mas não me venha com esse choro só da sua família, eu fugi sim, pois ele fez a morte de muitas famílias minha.

— Não é a mesma coisa...

— Você só quer colocar a culpa em alguém, eu te avisei para fugir, para deixar isso para trás, não ir lá sozinho. Mas você foi sem nem me esperar chegar aqui.

— Não... Eu queria...

— Eu sei que você se culpa! Acha mesmo que não reconheço um robô quando vejo um, Jekyll? A torradeira moderna atendendo em sua loja, com o rosto de seu filho, aquilo é um masoquismo autoindulgente seu, um lembrete do que você é capaz.

Jekyll paralisa ao ouvir as palavras, ele puxa e bate novamente contra a parede, causando algumas fraturas no ombro. Ele solta para que ela caia novamente no chão. Ele anda com dificuldade e corpo arqueado se acalma, seus olhos voltam a ficar manchados de catarata novamente.

— Nem todos se curam como você, Lucy. — Ele fala um pouco ofegante.

— Eu sei, eu entendo você querer sua vingança, mas na época eu não podia.

— Você não queria! — Ele corrige.

— Tá, eu não queria. Mas você não sabe tudo o que perdi por causa dele. Eu queria que fosse diferente.

Ele vira o rosto e olha para Mefisto, sua mão ainda segurava o ombro de Manson, contendo-o no sofá, volta para ela e responde.

— É, eu pude notar.

Finalmente ele se vira, pega a bandeja de chá e se retira da sala. Da cozinha ele fala em tom mais elevado, irritado, porém calmo.

— Preciso resolver algumas coisas aqui antes de partir, podemos sair amanhã, tudo bem pra vocês?

— Sim. Se não se importar, vamos ao hotel agora.

— Tudo bem, amanhã nos falamos então.

Ela bate com as mãos na camisa antigamente azul e calças para tirar o excesso da poeira, Manson se despede meio sem jeito de Jekyll. Mefisto finalmente devolve a arma do policial que confere rapidamente antes de colocar no coldre. Ao descer as escadas o robô imitando o rosto de Thomas os recepciona calorosamente.

— Espero que tenham gostado de nossos produtos, voltem sempre.

Ela passa direto pelo garoto artificial, Manson olha fixamente para os olhos sem vida do boneco.

— É tão realista...

— Sim, é sim. Anda logo, Manson. — A mulher o puxa para fora da loja.

Eles finalmente saem, assim que estão na rua, Mefisto invoca um casaco e entrega para ela cobrir as marcas de sangue e balas da camisa.

— Obrigada.

— Eu só sei que eu preciso beber algo hoje. — Manson murmura enquanto chama o taxi.

O motorista de taxi os leva rapidamente ao hotel, onde os quartos foram liberados e chaves entregues. Mefisto invoca a pouca bagagem que o casal separou e entrega a eles na frente da porta do quarto. Ela nota que o demônio parou em frente à porta olhando para a chave brilhante na própria mão.

— Vai me dizer que nunca fez isso antes? — fala a vampira em deboche o demônio ri um pouco constrangido.

— Jamais dormi em um hotel antes, na verdade, nunca precisei, é estranho não poder descer quando quiser, me sinto preso aqui.

— Ah, não é uma prisão, paguei caro por um quarto que não parecesse uma.

Ele sorri notando que Manson já tinha entrado e deixado a porta aberta para ela. Então ele coloca a chave e gira, quase como se não tivesse certeza do movimento.

— Viu, não é muito difícil, agora você deve puxar de volta esse metalzinho. — Ela zomba.

— Eu juro que se você continuar com isso vou te deixar aqui e você terá que comprar passagens de avião.

Eles riem.

— Me conte depois se gostou do vinho que escolhi, pedi para ambos os quartos. Se precisar de alguma ajuda para ligar a televisão, me avise. Boa noite, Mefisto.

— Boa noite, quer... Lucy.

Ele nota que ela já tinha encostado a porta do quarto, fica aliviado por ela não flagrar seu deslize. Entra no próprio aposento escuro, acende a luz observando a ampla cama com lençóis dobrados como uma flor. Os chocolates na mesa, o vinho branco no balde de gelo. Ele fecha a porta e apaga a luz, seus sapatos, roupas finas e óculos desaparecem enquanto dá poucos passos até a poltrona. Lá ele se senta, pensando no que está por vir, apoia o queixo na mão tentando relaxar.

No quarto ao lado, Manson está no banheiro, tossindo fortemente enquanto a água da torneira corre pela pia. Ele pigarreia e cospe uma massa vermelha na louça côncava, olha para o espelho vendo o sangue que escorre de seu lábio. Seu praguejar interno é interrompido com três batidas na porta.

— Está tudo bem aí?

— Sim, eu só tô com essa tosse maldita. — Ele fala enquanto busca o enxaguante bucal, gargareja e cospe encima da massa coagulada que teima em manchar o branco da pia. Ele usa as mãos para direcionar o fluxo d’água no vermelho, levando-o pelo ralo junto do enxaguante mentolado. Ele abre a porta enxugando o rosto.

— Certeza que está bem? — Ela leva a mão na testa dele.

— Não estou com febre, só é chato por ser nossa primeira viagem e estar assim. Viagem tensa e curta, mas ainda é nossa primeira viagem. Então... Vamos jantar?

— Claro, o que quer pedir?

— Não vamos pedir, vamos jantar. Eu encontrei pela internet um lugar aqui perto que você vai gostar e eu consigo pagar.

— Ah, querido, não precisa se preocupar com...

A fala dela é interrompida por um beijo apaixonado.

— Eu até trouxe um terno limpo pra isso. Escolhi o cinza que tem menos rasgos.

Ela levanta o rosto espantada por sua dedicação.

— Tudo bem então, como preferir. Só vou lavar o rosto e vamos.

Ele fica feliz com o aceite, sai do banheiro direto para a mala. Ela fecha a porta do banheiro apreensiva, olha diretamente para a pia branca. Os olhos verdes ficam fendidos por um instante quando ela se aproxima olhando para o ralo, se abaixa e inala o aroma que sai suavemente dele.

 

 

*******

 

No dia seguinte, Lucy, Manson e Mefisto vão para a loja de lembranças de Jekyll, a recepção do menino robô é ignorada pelos três que sobem as escadas.

— Jekyll, você está pronto? — chama a vampira enquanto olha pela sala vazia.

— A bagagem aparentemente está. — avisa Manson apontando para duas malas pequenas na poltrona.

Eles olham em volta na busca do idoso quando escutam batidas leves na parte superior da sala. Lucy xinga enquanto sobe as escadas rapidamente, vai direto para o sótão que está trancado. Uma neblina amarela escapa pelo vão da porta.

— Jekyll?

A resposta é de batidas baixas e um murmuro. A vampira recua e em um impulso arromba a porta com o ombro, o cheiro tóxico no ar vai pelo corredor estreito.

— Merda! Jekyll!!

Ela anda pelo laboratório e se abaixa ao encontrar o cientista no chão, caído com o rosto na madeira envolto de uma máscara improvisada de tecido. Ela nota um grande frasco quebrado no chão à frente, provavelmente aquele que continha o que está intoxicando o local. Mefisto a auxilia em carregar o pesado homem atordoado, eles descem as escadas indo para a sala onde Manson já abriu espaço e deitar o ofegante no sofá e logo em seguida foi abrir as janelas para auxiliar na ventilação.

— Jekyll, acorda! — A mulher apoia o rosto dele em sua mão.

O homem balbuciava confuso e ela abre sua camisa vendo que o peito dele estava cheio de cicatrizes.

— Jekyll, anda, não apaga agora! Me fala o que você precisa tomar?

— Um verde... — ele murmura com a voz trêmula e aponta para a poltrona. — 22, 10, 19, 79. — sussurra para ela.

Ela olha para seu rosto inconsolado, então o demônio se abaixa ao lado e segura o idoso para que ela possa levantar rapidamente. Atrás da poltrona, ela encontra o cofre, abre conforme as instruções. No contêiner haviam um revólver calibre 44, balas, frascos de três tipos de sedativos, seringas e um frasco de tônico azul e dois frascos esverdeados. Mefisto segura as mãos do idoso confuso enquanto ela volta até eles, abrindo a tampa de borracha, inclina a abertura em sua boca fazendo-o beber. Fora dois goles e de repente, o idoso solta agressivamente sua mão da contenção do demônio, agarra o pulso dela muita força.

— Chega! — fala com o rosto levemente irado. Sua feição mudara instantaneamente, seu peito já não tinha cicatrizes.

— Então agora pode me soltar, certo?

Ele percebe que estava segurando mais forte do que deveria, solta enquanto sua feição aos poucos vai voltando a um estado de maior consciência. Então se vira de lado, voltado para a parede. A vampira questiona:

— O que aconteceu?

— Eu fiz os tônicos para a viagem, no final acabei me atrapalhando e derrubei um dos compostos. Foi um acidente.

— Imaginei. — Ela meneia o rosto entristecida. — Sério, Jekyll. Você colocou como senha 22 de Outubro de 79?

— O que foi, esperava outra? — fala ele fechando os olhos devagar.

— Eu sinto muito, Jekyll.

Ainda de lado, ele respira fundo antes de responder:

— Eu sei.

Ela se senta no chão ao lado do sofá quando escuta ele retomar.

— Lucy, dessa vez, eu posso contar com você?

— Sim, eu prometo.

 

 

 

Londres, 22 de outubro, 1979

 

— Me explique de novo, Jekyll te procurou na Rússia?

A mulher de cabelos castanhos fala, enquanto coloca dois torrões de açúcar no chá para Lucy. Apesar da vampira dizer que não era preciso a insistência a fez ceder ao melado que ela oferece. O brilho da tarde entrando pelas janelas é muito bonito, seu filho Thomas cuida da loja no andar inferior.

O bonito e delicado vestido florido contrasta um pouco com as roupas da vampira um tanto masculinas. O terno preto tem uma aparência tão sóbria quanto realmente precisou fazer. Uma das condições para trabalhar na KGB era de parar de beber, mesmo que ela não tenha muita ressaca, ainda assim, poderia distraí-la. De fato, ela bebeu bastante para se distrair da última esposa morta, mais uma para a coleção. Mas agora ela era Vanessa Korolenko, talvez uma das versões mais sujas dela mesma, era assim que se sentia.

— Sim, ele me pediu auxílio para uma questão a alguns meses atrás, mas eu não podia viajar com ele. Então, para tranquilizá-lo, eu garanti que ficaria aqui, lhe fazendo companhia e cuidando que... tenha tudo o que precisar.

— É casada, senhora Vanessa?

— Sou viúva.

— Ah, eu sinto muito.

— Tudo bem. — Fica um silêncio constrangedor que a vampira rompe tentando acalmar a aflita mulher. — Ele disse que horas chegava?

— As duas da tarde, deve estar chegando a qualquer momento, está um pouco atrasado.

— Se não estivesse, não seria o Jekyll.

Ela ri um pouco, nervosa, sua mão aperta uma parte de sua saia, amassando o tecido. Faz três semanas que ele finalmente convenceu a vampira a apenas garantir que eles não recebam visitas indesejadas. Enquanto ele iria sozinho, a maldita cuidaria da família dele, caso mandassem alguém para atacá-los. Finalmente, após algumas horas a mais, ouve-se o garoto gritar pelo pai no andar de baixo, na loja.

— Ele chegou! Ele chegou!

É possível ouvir os rápidos passos do garoto e depois um riso do pai para seu amado filho. Ele sobe as escadas agarrado a Thomas, Anne vai em direção ao marido e o abraça com saudade e ternura.

— Eu fiquei preocupada, sua voz no telefone era um pouco fria, distante.

— Só estou cansado, meu amor. — Eles se beijam.

A vampira permanece sentada na poltrona e derrama o resto do chá muito doce no vaso de plantas ao lado, devolve a xícara na mesinha central e fica ouvindo Jekyll contar sobre sua viajem “de negócios” para sua esposa. Enquanto isso, ela pega os biscoitos amanteigados do pote, eles são igualmente doces demais. Mastiga um até o fim e engole o torrão de gordura e açúcar devagar, devolvendo os outros no pote.

O garoto flagra o movimento enquanto ela fecha a tampa, ele sorri para ela como que entendendo a situação. Ela levanta o indicador a frente dos lábios pedindo que não conte nada para os pais. Ele sorri e balança a cabeça confirmando o trato silencioso.

— Vanessa, posso falar com você? — fala Jekyll da cozinha.

— Sim, é claro.

Anne e Thomas ficam na sala, ela passa pela porta de ir e vir da cozinha, a madeira elevada deixava o vão superior e inferior que permitia olhar tanto a cozinha, como a sala. Jekyll está sentado na cadeira, um pouco cansado e curvado com sua camisa entreaberta já sem a gravata. Sua testa suada a surpreende, ele está ofegante.

— Está tudo bem?

— Não é nada, estou um pouco enjoado, acho que foi a viajem de avião. Aqui aconteceu alguma coisa?

— Eu te disse no telefone. Aqui não teve nada, ninguém apareceu. Quero saber como foi...

— Ele está morto.

— Tem certeza? Como você conseguiu?

— Isso foi estranho.

— Como assim?

— Quando cheguei, Shiva tinha saído com a maioria dos vampiros para algum lugar. Quase ninguém estava lá, eu tomei duas doses inteiras para me prevenir, peguei alguns vampiros no corredor, fui o mais silencioso possível. E quando cheguei, Dorian dormia tranquilamente agarrado a lança de Longinos.

— Ele acordou?

— Não esperei isso. Logo que vi a Sedenta presa na parede, em cima da lareira, a peguei e cortei a cabeça dele. Instantes antes de eu o atingir ele abriu os olhos e me viu, mas nem um segundo depois eu o decapitei.

— Você tem certeza disso?

— Lucy, eu vi seu rosto e dorso se transformando em areia, se desmanchando na cama. Ele praticamente desapareceu, não sobrou nada daquele desgraçado.

Ela ouve atentamente, pensativa com o fato que sempre teve tanto medo de se aproximar de Dorian e agora, tudo parecia estar resolvido. Fácil demais até. Ela se encosta na pia suspirando aliviada, Jekyll se curva para frente atordoado, ele começa a estender a mão na mesa de forma estranha.

— Você está bem, Jekyll?

Ele começa a respirar profundamente, arqueia as costas para trás de olhos fechados, sua expressão é de dor e algum desconforto. Ele não responde ao chamado, balança a cabeça lateralmente como se tentasse evitar um cheiro ruim na frente de rosto. Sua mão segura forte a mesa, ele estende o outro braço batendo na parede à suas costas, um azulejo racha.

— Jekyll!

Ela se aproxima tocando em seu ombro, ele abre os olhos completamente enegrecidos, encara com expressão de fúria. Antes que ela possa falar qualquer coisa ele a atinge o rosto com um soco poderoso. Ela voa para o outro lado da cozinha, cai sobre a pia de granito branco, tenta que se segurar para não ir ao chão. Sua sombra cada vez maior surge cobrindo a mulher, seu dorso fica gigantesco e brutal como ela nunca tinha visto antes. Ele tomou quantas doses? Isso foi um efeito secundário? Ela se pergunta como isso ocorrera já que ele sempre foi tão cuidadoso nesse aspecto.

Ela vira-se devagar para ele, tentando reconhecer o seu retraído amigo na figura monstruosa à frente. Ele caminha, para respirando devagar e ruidosamente.

— O que é isso, Jek...

Ele segura a cabeça dela com sua mão, a bate contra a pia de pedra quebrando-a no meio. Puxa para ele e bate novamente para o azulejo, o cano da torneira quebrada espirra água para o ambiente. A mulher segura sua mão com as garras atravessando seu pulso, ele fica irritado e finalmente a puxa próximo de seu rosto.

— EU NÃO SEI O QUE ESTÁ FAZENDO AQUI, SHIVA! MAS VAI SE ARREPENDER DE TER VINDO! — vociferou.

Ela chuta seu joelho, o pé dela se quebra como se tentasse fazer isso em uma muralha. Com ele, nenhum estalo, nenhum movimento, a não ser dele a lançando para a parede novamente e depois ao chão. Ela rola para o lado tentando escapar de seu pé que atinge o piso, destruindo a superfície. Ela se levanta rapidamente, para socá-lo nas costelas e depois une os punhos para acertar a sua coluna. Ele se arqueia, ela não tem muitos dedos depois disso.

Ela consegue desviar do braço que iria atingi-la, mas então ele se posiciona e a atropela com seu dorso curvado, a prende na parede do outro lado da cozinha. Ela consegue ver a porta se abrir devagar e o rosto de Anne aparecer assustado na fresta, ela leva a mão na boca horrorizada com a visão e sai da porta imediatamente.

A vampira apoia as costas na parede, usando as pernas para afastá-lo, ele recua um pouco, mas logo a segura no pescoço. Ela anda com os pés na parede de que apoiavam as costas dando um giro sobre ele para escapar de suas mãos. Assim que cai do outro lado, pega a pia de pedra no chão e atinge sua cabeça com toda a força que possui. A pedra se despedaça e ele finalmente apaga no chão.

A vampira sai da cozinha e vê Anne colocando balas no tambor de um revólver muito grande. Thomas está ao seu lado, chorando ajoelhado no chão ao lado da caixa de balas.

— Não! Não tente lutar! Só fuja, vocês precis...

Ela é violentamente puxada por seu braço, ele a vira, antes de arrancá-lo do corpo. Ela urra de dor e escuta os gritos de Thomas atrás dela.

— COMO ME ENCONTRARAM! EU MATEI VOCÊS! — berrava Mr. Hyde.

Ela tenta atingir a sua garganta com as garras restantes. Os dedos quebram contra sua dura pele. Ele olha, segura o dorso com uma mão e o punho com a outra.

— Depois de você, Shiva, cuidarei de seus outros monstros.

Anne atira atingindo o seu ombro, dorso e cabeça. Mas as balas mal atravessam superficialmente a pele, ele olha para o rosto pálido de hemorragia de Lucy enquanto torce o seu punho devagar. O som provocado é de couro sendo enviesado, estalos fortes anunciam os ossos esmagados e quebrados dentro de sua grande mão.

Anne recarrega o revólver, Jekyll lentamente termina o movimento de torção, rasgando os músculos do ombro, arrancando o outro braço grotescamente. Lucy abre a boca para gritar, mas o som não sai, está fraca demais para isso, a visão turva não permite sequer pensar. Ele a segura como uma boneca quebrada e a lança de volta a cozinha, seu corpo bate na porta de ir e vir, os ossos que tinham restado se quebram na parede de azulejo antes de cair no chão.

 

 

Anne atira novamente, a vampira vê o brilho através da porta em movimento, o monstro se vira para ela.

 

 

A porta volta, bloqueando a visão, mais dois tiros. A vampira está deitada, se esvaindo no sangue que restava.

 

 

A porta vem, Mr. Hyde aparece andando para Anne em pé, com a arma na mão. O brilho da arma disparando destaca a cena, ela atira outra vez.

 

 

A porta volta, bloqueando a visão.

 

 

Ela se abre mais uma vez. Anne está encostada na parede, Mr. Hyde anda para ela.

 

 

A porta vem e bloqueia a visão.

 

 

A vampira acorda depois de muito tempo, os braços finos demais se apoiam no chão para a auxiliar a ficar em pé, assim que consegue vira o rosto e olha a porta de madeira. Uma quietude macabra anuncia a cena triste, então o silêncio é quebrado por um murmuro baixo, um ruído do outro lado. Ela empurra a porta devagar revelando a imagem de Jekyll ajoelhado, de costas, as pernas de Anne estão esticadas ao lado. A casa toda está destruída, há um buraco na parede de madeira revelando o encanamento de calefação.

O cheiro de pólvora e sangue permeia o lugar, muitas balas amassadas e cápsulas estão espalhadas no chão, os móveis quebrados mostram que Anne lutou algum tempo. A vampira dá um passo e o sapato faz aquele som ao pisar no molhado, no chão uma poça de sangue conduz seu olhar até o corpo do menino no corredor, o que restara de sua metade superior.

Ela volta seu olhar para Jekyll de joelhos no chão, ele chora com Anne em seus braços, Lucy se aproxima e percebe que o amigo carrega o corpo decapitado da esposa. A vampira desvia o olhar e deixa Jekyll chorar, ele soluça baixo com suas mãos segurando o corpo rígido. Então a vampira olha para o ombro do amigo e vê uma lasca sendo expulsa de sua pele em regeneração. O pequeno metal cai no chão provocando um som na madeira, ela se abaixa e pega. A ponta dourada de metal tem um brilho que reluz do verde e azul, é fácil de reconhecer, é uma lasca da Lança de Longinos. Mais uma vez, Dorian consegue exatamente o que deseja.

 

 

 

New Orleans, um mês a frente

 

Lucy fecha a porta da casa, estava exausta, tanto pela guerra toda que havia acontecido, como pelas mortes. Ela ainda não queria pensar em todas elas, era demais, mas ela sabia o que desejava, vingança, compensação, sangue. Ela olha para as facas na cozinha, vai até lá e pega uma delas do faqueiro, longa, estreita e afiada. Não. Não agora. Isso pode esperar mais um pouco. Recoloca a peça no suporte de madeira e deixa a cozinha para a sala imunda. Pensa que deveria limpar essa casa, ainda que seja a provisória, não tem as coisas que realmente queria. O quadro que comprara a anos atrás não está aqui, foi destruído, o único lenço que tinha de Mirian também se fora, ela tem medo de esquecer do que já vivera. Afinal, já foi tanto, agora mais do que nunca.

Nesse último mês uma centena de anos se passou por apenas minutos. É claro, que pra a vampira, cada dia doloroso foi sentido. Cada fome, cada osso quebrado ela sentira por dias, meses. O tempo para ela foi sentido por completo, ela se sentia mais velha, mais destruída, com mais fome. Ela reviu cada momento de horror, e muitos foram criados apenas para seu tormento. As imagens ainda vinham sem controle, por mais que a terapia de hipnose tenha ajudado a controlar, a ver apenas o que era real, ainda assim, a imagem dele a assustava.

Ela olha a sala vazia de móveis e sua própria personalidade, e cheia de lixo de comida delivery, bebidas, drogas. Era difícil conviver consigo mesma, mas ela vai suportar, ela sempre aguenta. Ou pelo menos ela acha que sim, afinal, as consequências sempre vêm, mesmo que através de seus pesadelos. Agora provavelmente ela teria muito mais deles, afinal sua mente tem uma maior variedade de lembranças. Um som abafado vem do porão, ela sabe que ele deve estar pensando em alguma maneira de escapar. Ela olha novamente para a faca no suporte. Não. Ainda não.

A mulher decide descer, pega o pacote da cozinha e passa rapidamente pelas escadas, percebe que ele está tremendo fixo na cadeira de lado no chão. Seria esperto derrubar a cadeira e tentar sair, isso se ele não fosse tão estúpido. Ele não escapou de muitas torturas como ela, não saberia como fazer isso. Ela sairia dali com certa facilidade, ou simplesmente deixaria morrer. Tinha perdido a conta de quantas vezes fizera isso, as pessoas apenas jogam fora os cadáveres. A vantagem é que ela nunca é um cadáver por muito tempo. Ela coloca o pacote sobre a mesa e se aproxima da visão do cativo.

Assim que ele vê sua chegada seus olhos arregalam, sabe que agora é mais do que sério, que ela não será gentil com ele. Mas o idiota ainda tenta barganhar.

— Lucy, por favor.

Ela se aproxima e levanta a cadeira com seu prisioneiro. Ela confere as algemas e correntes, não que achasse que ele realmente conseguisse sair dali. A cadeira estava rodeada por signos desenhados no chão, isso o tornava invisível a outras forças sobrenaturais, não seria rastreado, nem tomado dela. Ninguém vai interferir no que ela quer agora, sem interrupções. Era só por prevenção, era algo que ela queria fazer sozinha.

— Eu juro que não fiz nada. Se você me soltar agora eu não direi a ninguém disso, eu posso... poss... eu vou sumir se você quiser, não precisa nunca mais me olhar, nem falar comigo. Eu desapareço e não vou ir atrás de você.

Ela olha para seu rosto inchado pela queda, ela não quer danos na cabeça, ainda não terminaram as perguntas. Então ela o alinha novamente no círculo de proteção e se levanta até o freezer. A única unidade de sangue de doação ainda está lá, ela acabou não usando, ela não quer sangue velho. Ela pega um gelo térmico do freezer, o usa quando vai buscar unidades de sangue colocando na caixa de transporte. Vai até seu prisioneiro e encosta delicadamente a peça fria na têmpora inchada dele. Os olhos estão vidrados, as pupilas estreitas, ele hiperventila e fede a medo. Ela mantém sua face neutra, calma, fria, isso o apavora, talvez por ele nunca a ter visto assim, talvez por ele saber que isso não é um bom sinal.

— Diga a verdade. — Ela fala, ainda mantendo o gelo em sua face. — Onde você estava.

— Eu disse onde estava quando começou!

Ela franze as sobrancelhas, os batimentos cardíacos dele aceleram.

— Eu posso continuar com isso por quanto tempo eu quiser, você sabe disso. Diga a verdade e podemos chegar a um acordo.

— Lucy, eu juro que não sei o que voc...

Ela tira o gelo e o joga no chão. O prisioneiro se desespera suplicando que ela pare, que ela pense, que o solte. Ela vai até uma lixeira e vira as latas de bebidas e papeis no chão, tira o saco plástico rapidamente.

— Não, Lucy, o que você vai faz... Lucy, por favor!

Ela se aproxima com o saco plástico e vai até atrás dele, enfia sua cabeça no invólucro e pressiona levemente em volta de seu pescoço. Ela não quer deixar marcas, não por enquanto, não ainda. Ele puxa o ar do saco fazendo com que o plástico fino se molde ao seu rosto com a boca aberta. Ela observa seus braços se debatendo nas algemas, merda, ela precisa acrescentar mais tecidos nos pulsos para evitar as marcas. Ela quer que isso dure, que ele fale, mas realmente espera que ele demore para fazer isso. A verdade é que de alguma maneira isso estava trazendo satisfação. Pelos mortos, por ela mesma, por mais uma vez saber que foi enganada, por mais que ele negasse.

Ele se debate e ela vê seu pulsar acelerado até o limite, então remove novamente o plástico de sua cabeça e deixa-o puxar o ar em um som patético. Ele tosse um pouco entre soluços, sua garganta está seca novamente, ela vai até a pia e pega o copo com água e o canudo e oferece a ele. Com a cabeça trêmula ele olha para ela enquanto bebe dois goles de água. As lágrimas pintaram seu rosto sujo, os lábios azulados estão voltando a cor aos poucos. Ela se afasta observando-o por inteiro, faz uma feição decepcionada quando nota o filete amarelo escorrendo da cadeira se espalhando pelo chão. Ele ficou de rosto baixo, ela suspira e vai até a mesa pegando o pano de chão já sujo de sangue e saliva.

— Abra. — Ela avisa.

Ele abre a boca trêmula.

— As pernas! Eu não quero tocar você.

Ele fecha a boca enquanto afasta os joelhos, permitindo que ela seque o assento e as coxas. Ele chora silencioso com a situação degradante, a vê se abaixar e secar o chão para impedir que a urina chegasse até os signos místicos. Ela se levanta, joga o pano na pia e lava as mãos até os cotovelos com abundante sabão.

— Eu... Lucy, você sabe que eu sempre adorei você. Eu não te faria mal.

Ela fecha a torneira olhando para a pia e pano repugnante. Então ela vai com a mão e abre a torneira somente um pouco, para que ela passe a pingar. As gotas caem devagar fazendo um eco na superfície metálica. Ela sorri com o som, talvez isso passe a ser agradável a ela, passe a ser uma doce lembrança.

Um pingo cai, batendo na pia metálica.

A vampira se vira para a mesa e abre a sacola que havia trazido, pega uma ameixa, a cor púrpura profunda se destaca em sua mão.

A gota cai, e ressoa no ambiente silencioso.

— Você deve estar com fome.

Ela pensa na própria sede novamente, beber o sangue de seu prisioneiro seria agradável, de várias maneiras.

A gota cai. O som da goteira de sua prisão anterior invade sua mente.

— Você não me respondeu ainda. — Dá uma mordida na carne suculenta e doce, lambe os lábios para capturar o sumo que escorria para o queixo, então exibe a fruta para seu prisioneiro. — Eu posso lhe dar um pedaço.

Ele engole seco com o gesto.


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Notas finais do capítulo

Particularmente eu gosto muito desse capítulo, e vocês, o que acharam?



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