Incursão no inferno (livro 2) escrita por Natália Alonso
“Se você conhece o inimigo e conhece a si mesmo, não precisa temer o resultado de cem batalhas. Se você se conhece mas não conhece o inimigo, para cada vitória ganha sofrerá também uma derrota. Se você não conhece nem o inimigo nem a si mesmo, perderá todas as batalhas.” - Sun Tzu
New Orleans
Assim que o demônio e amigo de milênios voltara para buscar Azazel ele encontrou seu corpo abandonado no chão, ainda estava quente, o sangue ainda se espalhava no asfalto. Os gritos foram ouvidos através do portal aberto, os dois foram carregados pela fenda dimensional. Um em silêncio vazio, o outro em agonia visceral.
Horas depois, a grande mesa da sala era usada para o funeral de Azazel, seu corpo foi limpo e estava agora embrulhado em tecido de linho branco, as amarrações foram feitas de forma respeitosa para enaltecer o guerreiro que fora. O cordão dourado com pingente turquesa fora colocado sobre o tecido, algumas manchas de sangue teimaram a permanecer na peça que é observada por Mefisto, ainda paralisado de horror na parede.
Lucy, Hidekki, Jekyll e Baphomet falam em outro canto.
— Então a linha foi quebrada e um dos desenhos apagados, e o que aconteceu? — indaga Jekyll.
— Quando eu estava comendo vi que ele simplesmente passou, ele me puxou e me bateu contra a parede! Eu achava que ele não pudesse sair! — fala Hidekki com um saco de gelo no rosto inchado e algumas marcas de arranhões no braço.
— Não faz sentido, eu tenho certeza que quando joguei a comida não tocou nos signos do chão. — Baphomet esclarece, ainda transtornada.
— Ele deve ter escondido isso para que você não percebesse. — fala Jekyll tentando tranquilizá-la.
— Ele pode até ter feito isso antes, afinal ele esperou que fosse Hidekki na vigilância, o único que não conseguiria lutar.
— Apesar dessa fala ser uma atestado de minha fraqueza, tendo a concordar, vocês são os sobrenaturais aqui. — rebate Hidekki enquanto massageia o gelo na têmpora.
— E por que ele não te matou? — questiona Lúcifer, se aproximando.
Hidekki olha confuso.
— Eu sei lá, pressa?
Lúcifer estreita os olhos, Lucy recua um passo observando o asiático.
— Que foi? — indagou Hidekki.
— Nada, que bom que não foi mais grave para você, mas isso... é horrível, Azazel não merecia isso. — Lucy fala enquanto o observa.
Todos na sala estão atormentados, a vampira mal tinha parado de chorar com a morte de Manson quando isso aconteceu. Não parecia haver paz possível para o grupo que já estava tão desestruturado desde a última batalha onde os ataques foram cruéis e ao mesmo tempo. Ela vê Mefistófeles se levantar, ele se apoia nos móveis e nas paredes antes de conseguir estabelecer a força na bengala para andar e se afastar, seu rosto era uma mistura de nojo e raiva perturbadora. Ele é seguido por Baphomet até um dos quartos criados por Metatron onde se isolou, enquanto murmurava algo.
— Mefisto. — Baphomet chama ao entrar.
Ele vira-se com os olhos arregalados, cruza os braços para conter o tremor das mãos.
— Isso não está certo, Baph. Por que ele escolheu atacar justamente Azazel?
— Ele estava ferido e estava isolado, deve ter pensado que teria mais chances.
— E como ele saberia disso?
— O que?
— Foi só meia hora, e-eu o deixei lá e...
— Mefisto, você não tinha como saber. — Ela se aproxima.
— Como ele sabia onde o encontrar, ou que ele estaria ferido? Isso não faz sentido.
— Talvez não soubesse. — Baphomet vira-se para o lado.
— Mas ele sabia de mim, que eu estava, estou ainda, me recuperando.
— Mefisto, não...
— Ele me seguiu, rastreou meu portal e acabou encontrando Az. — Os olhos amarelos do demônio voltam a verter lágrimas na face já inchada e marcada.
— Você só fez o que ele pediu.
— Belzebu o matou apenas por oportunidade, ele tinha ido atrás de mim e encontrou Az sozinho e ferido. — O rosto dele se torce em uma carranca de desespero. — O ALVO ERA EU! O desgraçado queria me matar e acabou matando Azazel!
Ele bate de costas na parede se abaixando em um pranto de soluços, ela se abaixa apoiando seus braços para tentar o consolar. Sentado no chão ele se despedaça em dor e a irmã afaga sua cabeça.
— Mefisto, eu sei que você tinha me dito que pretendia prendê-los, tal como fizemos com Lúcifer. Mas eles não estão lutando como nós, eles não têm os mesmos princípios...
— Eles são nossos irmãos, Baph.
— Paimon também era. Sabnock também era. Mefisto, eles quase mataram Bel e você.
O demônio levanta o rosto para a irmã e fita os olhos de cabra dela.
— Eu não queria chegar a esse ponto.
— Não estaremos seguros se ficarmos tentando apenas contê-los.
— Não. — Ele confirma inconsolável.
— Eu quero saber se posso lutar do jeito que precisamos.
Os olhos amarelos de Mefisto piscam lentamente aceitando a condição.
— Eles estão contando com os nossos limites, estão saboreando isso. Baal só está vivo por Abigor, o que fizeram com Lilith, Az, até Lucy eles usaram para nos atingir.
— Para te atingir. — Baphomet o corrige, gentilmente. — Você sabe que é pessoal, Mefisto. Astaroth sempre odiou você, eu e todos que não apoiamos o golpe dele, que não pensamos como ele.
— Você tem razão, precisamos lutar da mesma forma que eles, ou vamos ser engolidos.
Mefisto tinha se acalmado, mas ainda estava no chão, apoiado na parede quando Lucy aparece na porta. Baphomet nota a presença dela e se levanta.
— Eu vou fazer os preparativos para o ritual de Az.
A demônia caminha em suas patas peludas de cabra abrindo espaço para que a vampira pudesse se aproximar. Ela vai até perto dele, quer o tocar, ainda que tenha diversos sentimentos confusos em sua mente traumatizada.
— Mefisto, não se culpe pelo que aconteceu.
Ele sorri debochado para ela.
— Fácil para você dizer isso, Lucy. Já está acostumada, quantas pessoas próximas a você que já encontraram a morte apenas por estarem ao seu lado.
Assim as palavras saem de sua boca trêmula ele percebe como a fala soou mais venenosa do que era sua intenção. Ele olha para a mulher que também está em sofrimento pela morte do amigo.
— Me desculpe, eu não disse como se isso fosse sua culpa ou...
— Eu sei. Mas é verdade. Eu meio que me acostumei com isso.
Ela fica ainda mais perto e afaga seu rosto úmido, ele segura sua mão e a puxa para a abraçar na altura do ventre. Os dois permanecem assim por longos minutos enquanto ele se acalma, a mão dela hesita antes de ir até os curtos e encaracolados cabelos dele. Os dedos levam mechas para trás de seus cornos pequenos curvados para trás.
Ela fecha os olhos e sua mente a trai, fazendo-a lembrar de um momento dela rastejando tentando escapar na masmorra daquele que se passava por Mefistófeles durante sua tortura. Agarrada pelas pernas, por mais que ela tentasse se segurar nas pedras, ela foi arrastada de volta, suas unhas marcaram o chão pela força do impulso. Ela lutou tentando chutar, mas ele empurrou suas pernas e quebrou suas costelas em um golpe que lhe tirou o ar. As mãos dele percorreram seu dorso e param no pescoço, esganando-a, ela olha para o agressor que por um instante tem os cabelos rubros que cobre parte de seu rosto, mas logo em seguia é a imagem de Mefistófeles que toma seu lugar.
— Lucy?
A voz suave do demônio em lamúria aos seus pés interrompe as imagens de terror de sua mente, ela nota que segurava os cabelos dele com mais força do que deveria para um afago. Mas não foi isso que o incomodou, ele tinha notado que ela suava frio e tinha a respiração ofegante.
— Sim, Mefisto.
— De repente você ficou quieta, ainda estava aqui ou estava na penitência?
Ela balbucia e respira profundamente antes de conseguir organizar sua própria fala.
— Eu... não se preocupe, já estou de volta.
— Me desculpa, eu não devia ter te tocado assim.
As mãos dele que seguravam sua cintura começam a se afastar lentamente, ela impede que ele desate o abraço.
— Não. Fica.
— Certeza?
— Sim, querido. — Ela fala enquanto acaricia seus cabelos, ele fecha os olhos no conforto.
*********
A vampira pega a única unidade de sangue de doação que tinha na geladeira, é antiga e, portanto, pouco eficaz. Ela olha para o pacote preocupada quando percebe que Hidekki está saindo do banheiro. Ela se aproxima para falar com ele.
— Posso falar com você um momento?
Os olhos estreitos dele a avaliam por um instante antes de responder:
— Claro.
Ela o conduz para o quarto e tranca a porta, ele por um momento fica em dúvida se deveria se preocupar.
— Eu quero que me conte o que realmente aconteceu.
— Eu disse tudo, Lucy.
— Hidekki, pare. Diga a verdade.
O olhar dela inquisidor o assusta por um instante, então ele começa a chorar e senta-se na sua cama.
— Foi minha culpa! Eu joguei o lanche pelo chão, as linhas apagaram e ele correu na mesma hora, me jogou na parede e bateu em mim!
A mulher fica olhando seus batimentos cardíacos, analisando sua respiração. Não está mentindo agora.
— Por que não disse isso antes?
— Como eu iria dizer isso? Que eu fui idiota e causei a morte de um dos seus amigos! Porra, Lucy, eu não sou nada perto deles!
— Não diga isso, querido. Você sabe o quanto eu quero o seu bem.
Lucy se aproxima e abraça o jovem que continua chorando.
— Eu te dei trabalho, primeiro foi Clinton, agora esse anjo.
— Não tinha como você se defender, foi um erro você ser colocado para vigília, em primeiro lugar.
Ele balança a cabeça, concordando.
— Eu preciso contar a verdade para eles, precisam saber que eu fui o culpado.
Ele se levanta indo para a porta, mas é impedido pela vampira.
— Não.
— O que?
— Eles não precisam saber disso agora, isso poderia gerar conflitos. Fora que eu não quero você exposto.
— Do que está falando, Lucy?
— Estamos esperando um novo ataque, dessa vez pode ser maior, eu quero que você fique com sua família, não aqui, não exposto de forma que possa se ferir.
— Lucy eu posso ajudar.
— Nessa casa eu não tenho aquele sistema de câmeras de segurança, nem os mesmos materiais e eu não me perdoaria se acontecesse algo contigo. Já foi demais terem incendiado minha casa com você dentro.
— Eu agradeço que esteja preocupada comigo, mas...
— Mas nada. Enquanto não posso garantir sua segurança eu não quero você perto daqui. Por favor, fique com sua família.
— Está bem, Lucy. Mas por favor, se você precisar de mim sabe que pode me chamar.
— É claro, querido. Muito obrigada.
Milênios atrás
— O inferno ainda estava sendo criado -
O pequeno demônio de pele esverdeada corre ofegante pelas dunas de areia. Os gritos dos irmãos maiores o seguem, assim como as pedras que são lançadas contra sua cabeça. O jovem escala como pode e acaba se desequilibrando no alto da colina, ele rola com suas vestes nobres no meio da areia quente até chegar na porta de um dos castelos que estava ainda em construção. Seus perseguidores ainda escalam a colina arenosa enquanto o pequeno corre para dentro para se esconder. Ele vai pelo corredor e se abaixa atrás de uma das paredes quando escuta que o maior descera a colina com facilidade e estava já pisando no chão construído.
— Anda logo, Belze, ele tem que estar aqui! — gritou o mais alto com cabelos rubros e pele branca leitosa.
— Aposto que está chorando, Mefisto! — Abadon diz com seis cornos já despontando em sua cabeça, porém, por ser tão jovem, não passavam de pequenos montes.
Belzebu chega balançando sua cauda animado enquanto carrega um porrete sujo de sangue. Astaroth sorri e os três passam a circular o castelo até que Abadon segura o ombro de Belzebu segurando sua corrida.
— Que foi?
— Esse não é o castelo do tio?
— Vai ser, Abadon, ainda nem terminaram de fazer, não tá vendo? — Belzebu fala com certa dificuldade na dicção, suas pequenas presas de javali cresceram saindo dos lábios.
— É, mas o pai disse que ele e os orobas já estavam vindo pra cá.
— Os primos feios? — diz Astaroth quando para de andar.
Belzebu ri esganiçado e fica constrangido quando os outros dois lançam olhares debochados para ele.
— Tá rindo de quê? — indaga Astaroth.
— Eu sai da casa dele por que não sou como meus irmãos. — responde Belzebu irritado.
— Tem certeza, primo? — O desdém de Abadon é visível no destaque da palavra final.
— Vai se foder! Eu tenho pés e mãos!
— E rabo! — Abadon segura a cauda de asno alongada de Belzebu puxando-a de forma dolorida, Belzebu responde batendo com o porrete na perna do esquelético, derrubando-o no chão arenoso.
— Vão se foder, vocês dois! — Belzebu fica de olhos vermelhos de raiva, ele se vira para ir embora.
— Ah, qual é, Belze volta aqui! — Astaroth grita se aproximando enquanto levanta Abadon que passa a mancar.
— Porra, quase quebrou minha perna. — reclamava o magro caveira.
Os três se afastam e estavam indo para longe quando o demônio mais baixo se esgueirava no canto da janela recém-construída. Ele finalmente respira aliviado e se apoia na parede olhando o cômodo vazio e escuro. Ele se levanta devagar e decide olhar a construção, seus olhos fendidos amarelos como de um réptil se adaptam facilmente na pouca luminosidade. Não há móveis, somente paredes ainda com muita poeira e areia, ele se apoia em um pilar e um arrepio de dor percorre seu corpo quando o braço resvala na parede. A mão massageia o próprio ombro que fora atingido pelo porrete e sente o sangue que estava no local, ele percorre levemente com os dedos e percebe que seu ombro direito está com um formato estranho e talvez, por isso, não consiga mexer seu braço. Ele andava distraído pela dor quando percebe que está agora em outro cômodo, agora iluminado por uma lareira e alguns móveis requintados. Ele se assusta, e começa a recuar silenciosamente para sair quando bate as costas em um demônio muito alto atrás de si.
— Merda!
Derrubado pelo susto, o pequeno garoto sente dor e mal consegue se conter ao ver que o grande a sua frente tem cascos enormes. Ele levanta os olhos vendo o corpulento que exibe uma cabeça de búfalo com grandes chifres laterais. Apesar da aparência, o grande ser não tem qualquer reação, apenas olha o pequeno rastejando tentando se afastar.
— O que você está fazendo aqui? — A voz grave atrás dele vinha da figura que estava sentada na frente da lareira.
Mefisto vira o rosto devagar e só vê a silhueta de gárgula negra sentada se movendo suavemente, dois pontos brilhantes marcam a altura dos olhos no meio da escuridão. O pequeno decide fugir.
— Foi engano, eu tô indo embora!
— Baal. — A voz grave fala e o jovem demônio agarra a gola da camisa de seda do pequeno impedindo sua fuga.
— Por favor, eu não sabia que estavam morando aqui, eu não queria incomodar!
Ele percebe que o negro se levantou da poltrona e se aproxima, quando está perto, nota que ele mal chega à altura de sua cintura. A fera se abaixa um pouco olhando seu rosto ferido e olhos amarelos assustados.
— Hum, você é um dos mais novos, qual seu nome, principezinho?
O cargo foi dito com tom risonho, o jovem búfalo também sorriu enquanto ainda segurava a gola de tecido finamente bordado. O pequeno treme enquanto olha devagar para os olhos vermelhos brilhantes da gárgula.
— Mefistófeles, Senhor.
— Hum, Mefistófeles... Ah sim, lembro de você, eu o vi quando era ainda menor. Foi pouco antes de eu vir para cá.
A gárgula se afasta observando o infante apavorado, então nota que o demônio com cabeça de bufalina começou a rir enquanto o continha.
— O que foi, Baal?
— Ele tá que só falta se mijar.
O negro ri baixo.
— Sim, está. Isso tudo é medo de quê, Mefistófeles?
— E-eu... você não vai bater em mim, por ter entrado aqui, Senhor? — fala hesitante.
— Bater? Por quê?
— É que... o...
— De onde tirou essa ideia? O pai disse que eu faria isso?
— Não. Foi... — Mefisto na verdade nem lembrava mais quem dissera o que, fora que ficou inseguro caso dissesse que os irmãos pensavam isso se agora sim, seria motivo para uma surra memorável.
— Vem aqui perto da lareira, quero te olhar melhor.
Baal o puxa pela gola da camisa endireitando o pequeno demônio, só então ele notara que o búfalo o tinha segurado apenas com uma das mãos. A gárgula negra senta-se ruidosamente na poltrona a frente da lareira e estica as garras dos pés preguiçosamente enquanto Mefisto é colocado como um boneco diante da luz. Somente agora, olhando diretamente ele percebe que Moloch tem longos cabelos lisos dourados que vão até a cintura e suas garras igualmente douradas despontam de seus dedos. O garoto se alinha à frente e nota que os olhos vermelhos o analisam profundamente.
— Por que estava se escondendo aqui?
— Meus irmãos estavam atrás de mim.
— Quais deles? Já são tantos, Astaroth?
— É.
— Quem mais?
— Abadon e... Belzebu.
Mefisto nota que Baal soltou uma bufada pelas narinas, já o gárgula apertou o braço da poltrona, as garras douradas brilhavam com o fogo.
— Oh, Belzebu ficou assim? É uma pena... e por que eles estavam atrás de você?
— Eu estraguei a brincadeira deles, estavam fazendo o jogo de quebra-coco.
— Você não gosta desse jogo?
— Não.
— Como é?
Mefisto levanta os olhos confusos para o grande sentado à frente, depois olha para o demônio que se sentara atrás dele, igualmente iluminado pelo fogo.
— Você sabe esse jogo, Baal?
— Não, pai. Como é?
— Diga, Mefistófeles, como se joga?
— Eles pegam um humano ou uma criatura, as vezes um cachorro. Então amarram pendurado em uma árvore, então você vai vendado com o porrete para bater até quebrar o coco. — descreve o pequeno apontando para a própria cabeça.
Ele fala de forma pausada e com os olhos baixos, não viu a torção de desprezo no rosto de Moloch.
— E como você estragou o jogo?
— Eu cortei a corda e deixei o cachorro ir embora dessa vez, era o Cérberos.
— Entendi. Bem que eu notei que Astaroth não gostou muito do Cérebros quando eu dei a ele. Provavelmente vai implicar com as cabeças, quando eu fiz me pareceu divertido. Você gosta dele?
— Gosto.
— Mesmo ele sendo feio?
Os olhos amarelos de Mefisto arregalam com medo de uma possível reprimenda.
— Eu não o acho feio.
O gárgula ri esganiçado.
— Mentiroso.
— Não sou mentiroso!
A resposta vem confiante com o pequeno levantando o rosto, o negro levanta as sobrancelhas surpreso.
— Interessante, não gosta de sangue, realmente nem todos nós demônios somos agressivos. Mas tenho que dizer que é um mentiroso sim.
— NÃO SOU!
— Por que então esconde como realmente é? Eu o vi quando foi moldado, pequeno Mefistófeles, ainda era apenas barro e penas quando o vi a primeira vez, e você não era apenas verdinho. O pai até disse que te fez parecido comigo.
Mefisto gagueja sem saber o que dizer para o demônio à frente, e repara que Baal estreita os olhos em desaprovação.
— Eu não acho feio, mas da última vez que fiquei inteiro Astaroth furou minhas asas.
— Então talvez você deva usá-las para voar e escapar dele, ao invés de esconder suas asas e garras. Não escute Astaroh, ele sempre foi um mimado do pai, um idiota também.
Mefisto fica pensativo. Moloch observa a forma angulosa do ombro direito de Mefistófeles.
— O que é isso no seu ombro?
— Isso não é nada, foi quando Belzebu usou o porrete.
— Não é nada... — resmunga o gárgula enquanto agarra o braço do garoto puxando rapidamente para se aproximar, ele faz um gesto brusco que coloca o ombro deslocado no lugar arrancando um grito assustado do menino.
No chão, atordoado pela dor, ele finalmente nota que agora consegue mexer o braço novamente e o negro já voltara sua posição na poltrona.
— Agora sim, não é nada. — fala o negro enquanto apoia a cabeça no encosto macio.
— Obrigado, Senhor.
— Senhor... não precisa me chamar assim, não sou o pai com essas falas bestas de submissão. É Moloch, irmão mais velho se preferir chamar.
— Por que te chamam de tio se você é nosso irmão? — questiona timidamente o pequeno ainda testando o movimento do braço.
Moloch suspira profundamente aborrecido.
— Lúcifer te contou como viemos parar aqui?
— Sim. A queda. Ele fez você e Deus não gostou.
— Pois é. Nós éramos anjos, os emplumados são todos irmãos. Então mesmo que ele tenha me feito, ainda sou irmão dele. Isso pouco importa agora.
— É que...
— O que? Por que o interesse nisso, garoto?
— É que falam que um dia, quando o pai ficar cansado você vai virar o próximo rei.
— Talvez, não estou preocupado com isso, nem com pressa. Nem sei se quero.
— Por que não gostam dos seus filhos?
Ele nota que os olhos vermelhos desceram irados para ele, Baal parece incomodado também.
— É, talvez seja por isso também. Bando de hipócritas, fizeram um escândalo quando viram Baphomet, ela é mais esperta que a maioria dos seus irmãos, se juntar todos não dá metade dela.
— Levando em conta Paimon, Senh... Moloch, acho que nem juntado dez dele dá metade. Acho que ele é bem burro mesmo.
Moloch dá uma rizada rouca e retoma o olhar tranquilo para Mefisto que indaga.
— Você ficou triste?
— Pelo que?
— Por Belze ter saído da sua casa? Ele fala que você não é o pai dele.
Moloch olha decepcionado, mas não surpreso, Baal dá uma sonora bufada de descontentamento atrás deles.
— Nós não somos anjos, não temos que ficar embaixo da saia do criador. Se ele quer assim, que seja. — Ele volta a se afundar no acolchoado macio da poltrona. — Tá, enfim. Se quiser ir embora agora, garoto, pode ir.
Mefisto se levanta cambaleante do chão, mas não anda imediatamente, o que faz Moloch levantar um dos olhos novamente a ele.
— Você se importaria se eu viesse aqui outras vezes? Ao invés de ficar lá?
— Por que você quer vir aqui? Para fugir dos seus irmãos ou para ficar na companhia de meus filhos com cascos?
Mefisto dá de ombros.
— Acho que os dois, se não gostarem de brincar de quebra-coco.
Baal balança a cabeça em negativa torcendo a feição.
— Eu prefiro corrida mesmo, pode ser?
— Por mim, está ótimo. — Mefisto sorri para o cabeça de búfalo.
New Orleans, atualmente
A fenda se abre no meio do desfile do último dia de carnaval da cidade. Os festejos de meses normalmente eram marcados pela alegria e agora, este ano, parecia ser um atrativo para o caos, muitos já não queriam participar mais do festival. Hoje a abertura parecia maior e assim que surgira muitos cidadãos reconheceram a imagem que viram nos noticiários. Por isso, antes mesmo que as tropas de demônios e penitentes começassem a sair o caos já estava entre o povo em fuga desordenada.
— Chega de demonstrações, hoje é pra começar a dominar, começando por essa cidade. — avisa Abadon enquanto movimenta a espada abençoada na mão direita.
— Tente não perder as espadas dessa vez, só sobraram essas. — diz Abigor enquanto caminha com as mãos seguras atrás do corpo.
— Foi gentileza sua ceder as suas espadas, irmão. — Belzebu fala enquanto empunha a última.
— Eu não preciso disso. — Assim que fala, Abigor toma a forma de naga com sua longa cauda com a ponta metálica.
Belzebu brinca com Abadon de tentar pisar na cauda negra e amarela de Abigor, o corpo escamoso desvia de sua bota por poucos centímetros e ele vira-se para trás.
— Minha paciência com você está se esgotando, Belze.
— Eu não fiz nada!
Abigor estreita os olhos enquanto as tropas saem e se organizam em ataques aos cidadãos.
Tempos depois, uma esfera de luz surge abrindo uma fenda para a chegada de Metatron que vem acompanhando pelos outros integrantes. Mefisto trata de dividi-los de acordo com a estratégia que havia sido estabelecida.
— Tem certeza que agora está forte o suficiente para lutar, pai? — Mefisto questiona para Lúcifer que empunha a Azul flamejante.
— Se eu não estiver, não serei digno de ser rei. Fora que essa espada custou a vida de Azazel, espero fazer jus a seu sacrifício.
— Ele não se sacrificou por você, mas pela humanidade que ele queria defender. — Mefistófeles leva a mão no ombro de Lúcifer e por um instante arregala os olhos com o arrepio que percorre sua espinha.
— Eu sei. Vamos ver o que é possível. — Lúcifer sorri e nota a expressão de Mefisto. — Algo errado?
O filho trata de rapidamente disfarçar a feição preocupada.
— Não. Eu só estou tenso por isso tudo. — responde o demônio da heresia.
Ele então avisa a todos a fazerem como havia sido combinado. Baphomet termina o círculo de proteção e de amplificação dos poderes de Belial que se senta em seu centro com as pernas cruzadas. Seus olhos vermelhos brilham e ele calmamente fala junto de dezenas de cópias de olho brancos que vão surgindo aos poucos.
— Nós seremos o número que for necessário.
As cópias rapidamente se dispersam indo de encontro com os soldados condenados dos exércitos invasores. Jekyll toma duas ampolas de seu tônico tornando seu corpo muito desenvolvido, ele vai em direção ao demônio naga logo à frente. Yuri já estava coberto por seus pelos e usava as presas para arrancar os nacos de carne dos condenados que ameaçavam a população. Lucy girou a cimitarra na mão antes de sair, mas a mão de Mefisto a segurou.
— Aqui. Não quero que corra riscos. — Ele estende o próprio pulso oferecendo-o.
Ela olha para a pele morena e pode ver o pulsar em sua veia, quase sente o cheiro de alimento, inebriada, ela fecha os olhos verdes e retorna a si.
— Você é louco de me oferecer sangue demoníaco, eu nem sei o efeito que poderia ter.
— Acredite em mim, você estará no controle.
— Já fez isso antes?
Ele sorri lateralmente e levanta mais o pulso.
— Vai querer arriscar descer antes do tempo? Eu preciso de você fortalecida e não vai querer perder o que planejamos.
— Com certeza que não.
Ela pega o pulso dele gentilmente e oscila um instante, farejando-o ao longo de alguns centímetros de pele. Primeiro ela dá um beijo suave de carinho, mas logo em seguida ele percebe que as fendas dos olhos dela estão pronunciadas. Ele sente um arrepio, não de prazer, quando as presas dela raspam na pele antes de afundar e rasgar sua carne macia ainda mantendo o contato visual. O demônio perde o sorriso rapidamente, sente que está sendo sugado com força, como se suas veias do braço estivessem mais estreitas e, por um momento, sente alivio de não ter oferecido o pescoço. Seria muito próximo, muito íntimo e definitivamente mais dolorido. Ele ofega com os goles ruidosos levando a mão nos cabelos dela.
— Certo, isso é o suficiente.
Ela não parece ouvir, seus olhos verdes seguem a mão nos cabelos como se estivesse enraivecida, ele levanta as sobrancelhas, tenso.
— Lucy, querida?
Nesse instante ela solta seu pulso com o rosto trêmulo, então fecha os olhos extasiada em um sorriso beijando a pele infligida dele, vendo-a fechar o ferimento com um tom esverdeado, nota que há outra marca sutil azulada na mesma região.
— Desculpe, foi um pouco, irresistível.
— Claro, eu entendo.
A vampira olha em volta, vira a cabeça sentindo melhor o ar e os diversos aromas que deseja. Mefisto nota que estava segurando a bengala de maneira firme, ainda que por instinto ele cogitou usar a peça contra ela, apenas para se soltar. Ele sente que ela está pronta para a caçada e avisa.
— Por favor, fique longe de Abadon, você seria um banquete para ele.
— Eu lembro do combinado, Mefisto, volto logo.
Ela dispara com a cimitarra em mãos decepando diversos condenados do exército que estava disperso. Com agilidade ela corta as pernas de um enquanto Baphomet girava sua lança atingindo outro, logo em seguida ela empala o condenado virando-o em lançamento contra um grupo que se formava. Os Beliais andavam enfileirados com suas espadas prendendo diversos contra uma parede e Yuri usava as garras esviscerando aqueles que se desfaziam em poeira acinzentada. Metatron estava no ar, ela estava focada em Abadon que ainda tentava a atingir com sua espada abençoada.
Mefisto consegue se aproximar do irmão em forma de naga, eles trocam um olhar que o serpentino responde com o aceno de cabeça. Então todo o seu exército de Mongóis e Persas param instantaneamente de lutar e olham para o naga que vira-se perante Abadon que o acusa.
— O que está fazendo, cobra? Vai desistir agora?
— De forma alguma, meus planos são maiores.
O naga responde enquanto abre um portal. O chão passa a tremer em claro passo de manada em seus cascos pesados, então os orobas saem pela fenda dimensional liderados por Baal brandindo com seu grande machado. Sua face esquerda de búfalo estava pintada com lama acinzentada, cobrindo parte de sua pelagem marrom escura. Os largos chifres laterais estavam adornados com contas que seguiam por sua crina trançada. O grito gutural causou um arrepio em Belzebu que olhava assustado e causou um sorriso em Belial que estava sentado, em seu círculo de proteção, de olhos fechados.
— Meu amor! — Ele solta um suspiro satisfeito enquanto suas cópias continuam em batalha.
Cada oroba ataca o exército de espanhóis, britânicos e tantos outros coloniais que foram levantados das cinzas em suas almas malditas. Alguns orobas tinham cabeça e patas de cavalos, cervos, gnus até bisões, todos com braços fortes em suas armas de clavas e foices.
— Traidor desgraçado! — vocifera Belzebu correndo em direção a Abigor e atingindo-o em cheio com a espada abençoada.
O naga se contorce com a dor e rosna se afastando deslizando com seu corpo serpentino.
— Eu sabia que não devia confiar em você! Que essa maldita espada te envenene que é o que merece!
Então Abigor levanta o rosto em um sorriso sangrento para o irmão com suas presas alongadas se projetando das gengivas superiores.
— Por favor, irmão. Não é possível que você seja tão imbecil de achar que pode me matar envenenado... eu sou um demônio serpente, eu produzo todas as peçonhas.
Belzebu engole seco e dá dois passos recuando, logo quando se vira acaba parando quando a ponta metálica da cauda do naga é fincada em suas costas, o atravessa e sai por seu estômago. Ele é erguido enquanto ele grita de dor e carregado pela cauda que aproxima o demônio empalado até Abigor, desejoso por sua presa que se debate como um rato no espeto.
— Você não tem honra alguma, Belze, nunca teve. Me contive por milênios para não te devorar.
— Vai se foder! — Belzebu se segura no corpo escamoso que atravessa seu ventre e se move devagar alargando ainda mais a carne.
— Que boca suja! Perdi o apetite, deve ter gosto de merda.
Em um movimento rápido, Abigor morde o pescoço de Belzebu e inocula seu veneno maldito no interior, ele desliza levantando a cauda fazendo com que Belzebu escorregue de sua ponta caindo como um saco de batatas podres. No chão, ele rasteja levando a mão no pescoço sentindo o veneno se espalhar por seu peito em ramificações amarelas tal como as escamas da barriga alongada de Abigor. Seus olhos tornam-se rapidamente amarelados, a espuma branca que se forma em sua boca escapa entre as falhas de dentição. Ele se contorce levando a outra mão ao peito como se tentasse segurar seu coração acelerado, o corpo todo tremula no asfalto e seu pé balança em espasmos até finalmente parar inerte.
Abigor recolhe as presas na gengiva e ao fechar a boca contorce o rosto puxando muita saliva para cuspir no chão. Rapidamente ele se aproxima do cadáver fresco onde se inclina verificando seu rosto cheio de espuma viperina. Insatisfeito, pega a adaga da cintura do morto e começa a remover as calças de Belzebu, baixando-as até o meio das coxas.
— Maldito! — Abadon grita ao ver o naga sobre o cadáver amarelado de Belzebu.
O demônio de rosto de caveira voa até Abigor e é impedido por Metatron com um campo de força. Ele tenta diversos golpes com a espada contra o construto enquanto o serpentino termina de cortar a cauda de asno de Belzebu. Ele abre a boca do cadáver até a quebra da mandíbula para inserir o apêndice recém cortado pela garganta fria. O naga ria alucinado com a visão de morte do desprezível à frente, bate com os punhos fechados em seu dorso sentindo as costelas quebrarem como palitos no meio da carne. Ele repete o movimento grotesco e só para de rir quando Baphomet o agarra para tirá-lo dali.
— Eu disse que faria isso, seu animal mentecapto! Eu avisei, Belze! — Abigor ainda gritava enquanto era arrastado por Baphomet para outro lado.
Ela dá um tapa no rosto dele.
— Para com isso, não é hora disso, cobra!
Ele ainda ria um pouco quando ela fazia um rápido ritual para conter o sangramento da espada ainda encrustada em seu corpo.
Mefistófeles observa que a vampira era lançada por Jekyll contra um grupo de demônios, apesar de tudo, ela e o licano Yuri pareciam se divertir com a barbárie. Porém o demônio da heresia avisa para a celestial.
— Meta, talvez nós vamos precisar de tempo!
— Daqui a pouco vai me pedir um milagre também!
— Se for possível... — O demônio vira-se para Baphomet que tratava Abigor. — Isso é o suficiente? — questiona quando ela se afasta.
— Estou bem, vão! — Abigor avisa com sua mão trêmula para o portal que leva diretamente ao reino Satana.
Mefisto, Lucy, Baphomet e Lúcifer passam pelo portal que se fecha imediatamente. Abigor inspira profundamente antes de continuar o comando do próprio exército que lutava contra o exército de Abigor e Belzebu, pelo menos dessa forma não haveriam mais mortos humanos.
*
Nos vestíbulos infernais, Mefisto avisa:
— Pai, você sabe onde encontrar Astaroth?
— Eu criei esse reino, não precisa me dar um mapa.
— Certo. Lucy, você vai com ele, já que Vlad deve o estar protegendo, assim como o exército de vampiros.
— Ela vai lutar contra todos os vampiros? — questiona Baphomet.
— Não mesmo, eles prezam por tradições, não vão atacar a Drácula, pelo contrário, vão querer assistir o embate entre ela e Vlad. Baph, você vai adiantando o rito, eu te encontro lá.
— Onde você vai, Mefisto? — questiona Lúcifer.
— Tenho que fazer uma visita.
Eles se separam, Lúcifer se impressiona quando as centenas de vampiros fortemente armados estão alinhados em frente ao castelo e olham diretamente aos dois caminhando pacificamente.
— Todos esses você quem fez?
— Eu nunca criei um vampiro.
— Então por que te respeitam?
— Tradição. Nem todos concordavam com os métodos de Vlad ou de Shiva.
— Não entendo.
— Vampiros obedecem por dois motivos. Pela linhagem de sangue em quem o criou. Ou pela fome, consideram forte quem passa fome e ainda assim é poderoso.
— Deixa eu adivinhar, você é a faminta.
— Hoje não estou com fome, mas sim, costumo restringir minha alimentação.
Eles caminham sentindo o olhar desconfiado de todos até chegar em uma praça onde Vlad Tepes aguarda com sua frondosa armadura negra. Os dois pontos luminosos vermelhos de seus olhos saem do breu interno do elmo escuro. Ele retira a proteção da cabeça exibindo os longos cabelos negros que vão em ondas até o meio do peito, seu rosto se alegra com a chegada da vampira.
— Meu bem, você chegou. Sabia que não aguentaria a saudade.
A mulher para e acena para Lúcifer.
— Eu fico aqui, você vai até Astaroth.
Os olhos escarlates do comandante vampírico acompanham a caminhada do antigo rei infernal que segue pelo corredor e depois retoma o olhar para ela.
— Veio discutir nossa relação, esposa?
— Não há o que conversar. Eu vim apenas para matá-lo.
Ele leva as mãos em garras até o peito como se estivesse indignado.
— Que horror! Depois de tudo o que vivemos?
— Não me faça vomitar. Você já se divertiu o suficiente enquanto eu estive aqui na penitência.
Vlad meneia com o rosto, agora, visivelmente surpreso.
— Oh, achei que não se lembraria de mim, mas pensando bem, eu gosto da ideia de que você possa rememorar nossa vida de casal.
— Não se preocupe, irei te esquecer em breve.
Ele estreita os olhos julgando as palavras e pulsar dela.
— Isso não é verdade... — Ele alarga o sorriso. — Venha e se entregue, eu posso ser misericordioso, perdoarei sua ganância em roubar o meu poder.
— Eu nunca quis nada de você, nem quando eu acreditei em suas falas de amor quando eu era apenas mortal e tola.
— Nunca quis, mas usufruiu muito bem dos poderes em superfície. Roubou meu cargo, me enganou e foi trapaceira junto de seu demônio até mesmo contra os outros aqui do inferno! — Vlad rosna enquanto a fuzila com os olhos.
Diversos vampiros se aproximam na beirada do andar superior e nos corredores laterais do salão, eles apenas se posicionam, querem testemunhar o que seria a decisão de poderes e cargo que ela despreza.
— Você me dá nojo, Vlad. Sempre tão mesquinho e pequeno, até em seus desejos.
Ele desata a fivela da armadura para se igualar a ela e não ser acusado de uma luta injusta enquanto seu rosto se contorce em desaprovação.
— Mesquinho talvez. Pequeno, você sabe que não.
Ela revira os olhos com a infantilidade do ex-marido.
*
Mefisto caminha batendo a bengala no chão de pedra por entre o estreito corredor escuro das catacumbas infernais, vai até o final, na porta de ferro com uma pequena janela e grades. Ele para por um instante, olha em volta como se verificasse a não movimentação dos guardas. Então cria uma pequena esfera da e iluminação que passa pelas grades indo suavemente até o centro da cela. Ele apoia o queixo na janela tentando ver o prisioneiro e suspira.
— Moloch?
O arfar pesado responde antes no meio da escuridão. Pouco depois, o som do arrastar de pesadas garras avisa que alguém se virou.
— O que você fez, Mefisto?
— Ainda nada. De certa forma, estou é salvando o seu reino.
No canto escuro da cela, o velho e carcomido se aproxima devagar. Mefisto olha com pena de como ele se deteriorou, parecia agora muito mais velho que o próprio Lúcifer, a falta de alimentação e a prisão foram cruéis. Porém, Moloch, sempre será o mais importante de todos os demônios, depois de Lúcifer, é claro. Mais um que fora coroado e agora era prisioneiro em seu próprio reino.
— Ainda vou resolver tudo pra você.
Os olhos vermelhos de Moloch atravessavam a escuridão da cela, o avalia desconfiado.
— E por que faria isso?
Mefisto dá de ombros.
— Por que quero. Vim aqui te...
— Deixa eu adivinhar. — fala de forma grave e pausada. — Veio me fazer uma proposta.
Mefisto sorri discretamente. Moloch continua:
— Me fará um contrato também? Quer que eu diga “aceito” e assine um documento que você já tem pronto?
— Que tipo de irmão eu seria? Não, basta um acordo de cavalheiros, até porque é simples.
— E qual é a proposta? — fala Moloch, se aproximando da porta.
Chegando à luz, o demônio de pele negra e presas ferais se escora na porta, uma neblina fria sai preenchendo o corredor. Mefisto se afasta da janela, respeitosamente.
— Vou abrir a porta a ti, Moloch, chega dessa prisão pelo crime de ser um grande rei. Poderá andar livremente pelo inferno e pelos anéis. Sem cargo, sem deveres. Em troca, eu quero algo seu.
— E o que seria? Minha alma?
Ambos riem francamente.
— Não. Apenas algo que não lhe fará falta. Uma pena e algumas gotas de sangue.
Moloch inclina a cabeça de lado, cético, Mefisto insiste.
— Ahhh, qual é. Eu sei que você ainda tem um monte delas. Não te fará falta.
Moloch pensa por um instante, cerra parcialmente os olhos, caminha até a lateral da cela onde as asas estão penduradas na parede. Duas grandiosas asas, agora de penas negras como marca da demonização de Lúcifer. Quando o reino infernal fora criado ele pediu que Moloch as arrancasse, não queria mais carregar a marca que um dia fora Samael, um arcanjo amado e bem-vindo no reino Dele.
— Posso saber o que irá fazer?
— Qual seria a graça se eu contasse a surpresa?
A gárgula negra responde com uma bufada e sua visão captura os olhos amarelos de Mefisto.
— Eu lembro da primeira vez que veio até mim, era pequeno, estava machucado, era o braço?
— O ombro. Você o consertou para mim. Belze tinha me acertado com um porrete.
O negro funga profundamente.
— Oh sim, foi então que se aproximou mais de meus filhos. São poucos os filhos de Lúcifer que gostam dos meus.
— É... agora acho que isso está mudando um pouco. Faz tempo que você está preso...
— Você passava muito tempo no meu lado do reino.
— Acho que eu não me encaixava tanto no lado de lá, Lúcifer sempre estava ocupado, eu o chamo de pai, mas...
— Mas?
— De certa forma, você foi mais influente em mim do que ele.
O negro apoia um dos braços fortes e de pele envelhecida nas grades da janela.
— Entendo. Asmodeus me disse algo semelhante, sobre você e ele mesmo. Espero que seu plano dê certo, filho.
Instantes depois, a mão em garra atravessa a janela, entregando a delicada pena felpuda, acompanhada de um maléfico sorriso de presas no meio da escuridão.
*
Abadon lutava com Metatron, o demônio golpeou com a espada abençoada atingindo uma das mãos enegrecidas da celestial, que responde com um feixe luminoso que quase o cega e obriga a recuar. Então retorna segurando Metatron com seus quatro braços.
— Venha me alimentar, vadia!
Abadon estreita os lábios tentando inalar a ira da celestial e segundos depois nota que nada vinha, os olhos negros e fundos dele ficam duvidosos quando ela fala.
— Tolo, sou A Própria Presença DELE, que ira achou que teria de mim?
Ela pulsa uma energia branca o que o faz cair atordoado no chão, por pouco ele escapa do ataque de Yuri que aproveitava seu instante na superfície. Então ele se eleva no ar, seus quatro braços ficam em poses distintas e dedos em pose de sigilos de invocação e uma chama surge no alto de sua cabeça na união dos seis chifres. O chão passa a tremer, um som feral reverbera e uma imensa cratera se abre permitindo a passagem de uma gigantesca pata com garras que puxa o corpulento ser para fora. O asfalto é quebrado, abrindo-se enquanto rasga para o animal monstruoso do Leviatã que ruge ao ser invocado de seu sono. O corpo dracônico tem pontas rochosas ao longo de sua coluna espinhal e as asas como de morcego se expandem destruindo as construções próximas. O dorso alongado finalmente sai da cratera exibindo suas poucas manchas brancas ao longo da couraça da barriga e cabeça negra com chifres em leque branco.
Todos chocam-se com a presença do monstro que passa a destruir as construções em torno com facilidade, ainda que com movimento lento. Abigor transforma seu corpo então na gigantesca serpente. A espada cravada em seu abdômen passa a ficar próxima da base de seu capuz, apesar do escamoso ser corpulento, ainda é muito menor do que a fera dracônica, mas o suficiente para provoca-la com uma mordida venenosa. Enquanto os gigantes lutam, as dezenas de Beliais passam a tentar afastar o máximo possível de pessoas da área, Jekyll segura uma construção que tinha sido derrubada enquanto Yuri retira os locais dos escombros.
Metatron sobe no ar abrindo os braços e clamando.
— Senhor, me permita dar mais tempo para a humanidade!
Metatron pulsa formando no ar uma esfera com diversos cubos luminosos, o círculo pulsa em tons furta-cor e passa a girar lentamente ampliando seu tamanho até expandir tomando todos do entorno. Uma luz dourada surge no céu, descendo até quase cegar todos. Quando os olhos cálidos de Metatron se ajustam ao brilho ela consegue enxergar a cabeça nua e negra de Jehudiel em sua armadura reluzente. Tudo passa a ser mais lento, as escamas de Abigor se esfregam no asfalto, os jatos de peçonha saem das presas inoculadoras contra a face de lagarto do Leviatã. Baal e outros orobas destroem os condenados invocados, Belial está sendo cercado por um grupo de demônios coloniais tentando quebrar seu círculo de proteção.
*
Mefisto vai até os jardins da Cidade de Ditis, a cidade da culpa possui um receptáculo deveras peculiar. Nos fundos, entre os pomares, há um campo verde e calmo. No alto do monte duas árvores habitam lado a lado, um canto pacífico e ermo para que elas permaneçam escondidas. Baphomet estava junto das árvores e o aguardava ansiosamente. Mefisto olha a árvore da Vida e a da Sabedoria, são as mesmas que estavam presentes no Éden, uma delas, a proibida que fora profanada por Eva.
— Conseguiu?
— É claro, seu pai é sempre muito gentil comigo. Você estudou o ritual, certo?
— Ainda duvida de mim?
Ela indica que o círculo de invocação e os signos já estavam prontos ele olha a proporção.
— Acha que é grande o suficiente?
— Assim espero.
Ele se agacha entre as árvores, ela já tinha juntado boa parte do lodo macio em um monte, ele coloca a pena negra na parte côncava e derrama o sangue de Moloch que estava contido em uma taça. Baphomet moldava o lodo incorporando os ingredientes rapidamente, ele observa as mãos habilidosas dela.
— Sabe, foi assim que nossos pais nos fizeram. Então como estamos fazendo isso juntos, de certa forma é como se nós...
— Errrrw! — Ela solta um guincho enojada. — Não começa! Isso seria no mínimo perturbador, você sempre foi meu irmãozinho.
Ele ri concordando e cantarola enquanto molda a argila junto dela.
*
Lúcifer caminha para o frondoso corredor encontrando o trono superior vazio, o salão amplo está fresco e iluminado pelas diversas fontes que adornam as paredes. Alguns afrescos enfeitam e contam passagens históricas de seu feito, de Moloch e ele nota uma parede com o gesso fresco recente. Ele para em frente a parede em branco imaginando o conteúdo que fora planejado.
— É aqui que vai ficar o registro de como você acabou com a superfície? — Ele questiona o vazio do salão. Sem resposta ele retoma. — Astaroth, se vai realmente ser covarde até para enfrentar seu pai, como espera ser um rei?
O único olho vermelho se abre atrás de Lúcifer e tenta o golpear com a espada na altura de seu pescoço, a defesa do velho é boa, ainda que seja empurrado para trás. Ele olha o salão que novamente aparenta estar vazio.
— Vai mesmo ser assim? Se escondendo?
— Cada um usa as habilidades que tem.
Lúcifer golpeia o ar em busca do som do filho, a risada do regente ressoa nas paredes.
*
Vlad gira no alto sua longa espada negra, a vampira se curva para trás desviando da lâmina e tenta um golpe por baixo que ele precisa saltar para escapar do corte. No alto da pedra ele a provoca.
— Vamos, meu bem, admita. Você queria me ver.
— Estava ansiosa, mas não pelos motivos que acha.
Ela golpeia a altura de suas pernas fazendo-o saltar e parar atrás dela que se vira rapidamente alinhando a cimitarra na altura de seu queixo. Ele paralisa por um instante, mas a atinge na lateral da coxa com a ponta longa e negra. Ela ainda o acerta no ombro esquerdo com sua ponta antes de se afastar sentindo o corte. Ele sorri trazendo a ponta da arma e colhendo o sangue dela com os dedos para levar a boca. Lambe os próprios lábios com os olhos brilhando em vermelho.
— Seu gosto sempre foi bom, adorei poder me alimentar de você à vontade, como sempre deveria ter sido. Aliás, como está Belial? Ele me matou a saudade dos empalamentos, tempos doces.
— Você sempre fala demais.
Ela ergue a espada e faz golpes do alto, três em sequência que são defendidos e depois gira em um golpe central que atinge o ventre dele. O vampiro ruge levando a mão no corte profundo e passa a usar a ponta da espada consideravelmente mais longa que a dela forçando-a a recuar. Ela desvia com uma coluna que é destruída pela lâmina negra, joga um estandarte na frente que também é igualmente cortado com rapidez. Ela aproveita a distração para se abaixar e o atingir nas costas em um longo talho diagonal. Ele se curva com o toque dolorido e quando se vira sua mão é atingida fazendo-o perder sua espada. Desarmado, ele ergue as mãos ofegando e oferecendo um sorriso cínico.
— Foi por isso que você foi escolhida, meu bem, já era boa caçadora antes mesmo de eu te tornar uma predadora. É uma pena que eu sempre gostei de te fazer minha adorável presa.
— Você não sabe mesmo a hora de calar a boca.
Quando ela move o braço para o golpe em seu peito ele desvia batendo na lâmina e avançando em um salto contra ela, prendendo-a na parede e perdendo a cimitarra com o solavanco.
— Fodam-se os metais! Eu sempre gostei mais do corpo a corpo, e eu sei que você também!
O toque repentino aciona um gatilho em sua mente. Ela arregala os olhos, o vê na masmorra encima de seu corpo, arfando, sorrindo, trêmulo de prazer.
Ele dá um soco que a faz bater a cabeça nas pedras, sente o gosto de sangue na boca do lábio cortado internamente. Ela revida com um cotovelo no queixo dele, ele cambaleia, mas agarra seu braço e o torce atrás das costas dela, prendendo-a contra a parede.
Ela o vê arrastando-a pelos cabelos no chão imundo.
Sua cabeça é novamente batida na parede, ela fica tonta e o bate fracamente no peito, a resposta é em um soco no estômago que a faz curvar sem ar e ele a segura pelo pescoço contra as pedras.
Ela o vê lamber a lateral de seu rosto depois de dizer que estava satisfeito, levantava-se nu e com sua virilha pintada de sangue.
Ele ainda se aproxima para falar.
— Realmente, eu aproveitei cada momento... oh, você chorou. Ficava chamando o nome dele enquanto EU estava usufruindo do que era MEU por direito.
A mão espreme a garganta dela, a outra percorre a barriga e finca seus dedos no seu corte na coxa. O grito de dor entala em sua garganta fechada, ela sente que ele ainda usa o próprio dorso para prendê-la, é nesse momento que percebe sua ereção pulsante em sua virilha, está presente junto de seu sorriso. O rosto vermelho dela quase sem ar se torce em ira, ela se debate soltando o braço das costas, junta os punhos no alto batendo contra os dele duas vezes para tirar sua mão sufocante.
— TIRA. A MÃO. DE MIM!!
Ela o cabeceia fortemente e o empurra para se libertar, então suas garras vão direto para seu peito. Ele grita e saca duas adagas que estavam em coldres de couro nas costas. Ele golpeia o ar com as lâminas, a mulher desvia facilmente e segura seu pulso direito forçando-o a girar. Ele consegue fincar a lâmina da mão esquerda no baixo ventre dela, mas perde a direita com a torção. Ela segura a que estava fincada no abdômen antes de o chutar, tomando sua segunda arma. Ele ainda estava retomando o equilíbrio quando ela salta com ambas as adagas fincando em seus ombros de forma simétrica.
Ele urra, ela tira as lâminas rapidamente e finca as duas juntas nas costelas do seu lado direito, puxando-as e forçando-o a girar e parar de frente. Quando o vê, as lâminas já faziam cortes paralelos no ventre puxando parte de suas vísceras para fora. Ele segura o intestino que estava pendente enquanto ela finca as duas lâminas em seu peito e o conduz contra a parede. A cada movimento ela rosna furiosamente como um animal que apenas queria destroçar sua caça.
— Você não pode me... — Ele dizia quando ela soltou as lâminas e usa as garras rasgando os músculos que fixavam a mandíbula que balança pendurada.
As garras então rasgam sua garganta e logo em seguida ela agarra seus cabelos e puxa seu rosto dando repetidas joelhadas. Na última, sente que sua rótula se quebrou assim como os ossos da face dele, então o chuta no peito contra a parede. Ele se segura nas pedras e leva a outra mão na garganta aberta, ela pega a longa espada dele e crava em sua boca escancarada, atravessando o crânio e fixando-o na parede.
As mãos dele ficam pendentes lateralmente, balançam levemente quando ela vocifera mais uma vez antes de empurrar mais a espada para afundar na boca parcialmente ausente pregando-o mais firmemente. Ela estava agarrada na espada, inspirando ruidosamente enquanto seus olhos verdes fendidos estão vidrados e marcados nos dele. O brilho avermelhado vai se apagando aos poucos até se tornar um acinzentado vazio e inerte.
*
A fera gigantesca bate as asas afastando a grande serpente ferida, Abigor é pisado na cauda longa na pata de garra quando Baal crava seu machado no tendão da garra. O Leviatã ruge de dor e bate afastando o oroba com certa facilidade com a pata, abre a boca cheia de longos dentes para se alimentar quando sente uma dor em seu dorso se debatendo rapidamente. No alto do Leviatã, a arcanjo Jehudiel cravara sua espada, ela gira fazendo o gancho da ponta trazer consigo tendões e veias internas. Ela voa com as quatro asas para trás para se reposicionar e atingir parcialmente o pescoço da fera. As vestes egípcias de guerra destacam o sangue vermelho no dourado e branco, ela voa rapidamente desviando das asas de morcego da fera quando finalmente Abigor pode se soltar e lutar junto da arcanja atacando as pernas do dragão.
Jekyll estava exausto, depois de conter uma construção que estava desmoronando ele titubeia andando sendo segurado por Yuri.
— Ei, você precisa parar?
O corpo de Jekyll ficou visivelmente menor, ele treme a mão buscando o último frasco de tônico que trouxera.
— Não dá pra parar agora, ainda mais com um monstro gigante fazendo tanta bagunça.
— É, normalmente você é o monstro gigante fazendo bagunça.
Jekyll revira os olhos antes de tomar o tônico em longos goles. Abadon nota que alguns soldados estavam rodeando inutilmente o verdadeiro Belial, protegido na redoma com signos de fortalecimento de seus poderes. Ele observa ainda que as cópias foram eficientes em afastar as tantas vítimas que seriam almas colhidas, irritado ele comanda o Leviatã para mergulhar na cratera escapando de Abigor e Jehudiel e lança a ordem para que a fera saia do chão novamente, agora atingindo Belial por debaixo do círculo de proteção. Quando a fera destrói o asfalto, o demônio que estava concentrado desperta de seu transe e com dificuldade se agarra em um dos chifres frontais do Leviatã sendo carregado para o alto. A fera sai da nova cratera balançando a cabeça fazendo o demônio se balançar para desviar de sua imensa boca. As diversas cópias de Beliais desaparecem e Baal quando ele estava já no alto, segurando-se nos chifres com auxílio de um punhal recém invocado.
— BEL! — O oroba corre e atinge a ponta da cauda do Leviatã com o machado, a fera afasta novamente Baal com a pata traseira.
Então Belial se apoia com os pés nas escamas duras, puxa a adaga e se deixa cair deslizando perigosamente para a frente do rosto da fera cravando a lâmina longa em um de seus olhos. O Leviatã vira a cabeça violentamente lançando o demônio para longe que cai encima de um carro, destruindo-o com seu peso.
Metatron observava todo o caos do alto, ainda que cada movimento estivesse em uma bolha de tempo mais lenta, ainda era rápido demais. Ela pulsa mais uma vez em um grito de agonia, a luz se expande e o tempo agora é extremamente vagaroso. Baal se levantava lentamente do chão, o Leviatã se debate com Jehudiel que atinge sua grossa couraça. A arcanja tinha seu rosto coberto do viscoso icor dourado que escorria em seus olhos. Metatron olha cada movimento lento, sente o medo de cada um deles, então ela percebe que suas mãos aos poucos vão se desfazendo em uma poeira branca e negra difusa que é levada pelo vento.
*
Astaroth atinge as costas do pai que reage virando-se com a espada atingindo o nada. O criador demoníaco está cansado, os pequenos cortes na perna e nos braços provocam pouco sangramento, porém a dor dispersa o deixa lento e sem concentração. Até que o som do passo próximo denuncia o movimento e ele atinge o peito do filho que olha atônito o corte profundo. Antes que possa sumir novamente Lúcifer agarra seu braço impedindo.
— Pare com isso! Não tem por que continuar, queres matar a mim por acaso?!
Astaroth arregala os olhos.
— Eu... eu não esperava isso.
— Nem Mefisto quer te matar, não precisa ser desse jeito.
— Então a solução será me enfiar em uma jaula apertada? Como a que Baphomet fez para você?
Lúcifer recua o rosto.
— Eu posso intervir por você. Por favor, entregue-se.
Astaroth sorri levemente e se aproxima, Lúcifer o abraça e sente a cimitarra ser fincada profundamente em seu ventre. Ele afasta do filho traiçoeiro e balança uma última vez quando a lâmina faz um movimento curvo puxando parte de seus órgãos para fora. O criador olha chocado para o filho segurando seus pertences para não cair no chão.
— Desculpe, pai. Mas eu não tenho sua resiliência para ficar em uma cela. Ou você esqueceu realmente que foi eu que auxiliei a te tirar do poder e mesmo seu filho monstrengo Moloch.
O fundador do inferno dá apenas um passo enquanto sangra e depois cai de joelhos, imagem do traído e agonizante é triste, mas se desfaz diante do único olho vermelho de Astaroth. O regente se assusta por um instante antes de sentir um corte profundo em suas costas feita pelo pai que urra em decepção. Astaroth vira-se vendo que o velho está ferido com os vários cortes, mas o fatal do baixo ventre está ausente.
— Cada um tem suas habilidades, filho. Ilusão é a minha. Eu tinha que tentar te convencer a fazer o certo, mas ainda bem que Mefisto me alertou que você mataria até a mim.
Astaroth cambaleia com a dor e sorri com seu olho vermelho brilhando.
— Ainda está aberta a proposta da cela?
Lúcifer avança com a espada de fogo azulado contra Astaroth, os golpes são mais rápidos e cruéis, Astaroth se defende fortemente, mas o pai lhe dá um chute no abdômen fazendo-o se desequilibrar. Agora os golpes cada vez mais fortes obrigam que o rei de cabelos rubros se ajoelhe, um golpe acerta o braço branco leitoso e finalmente girando as espadas a chama acerta a mão do rei que perde a cimitarra de luz que quica no chão para longe do alcance. Apoiado em um dos joelhos, o filho tem o vermelho destacado na própria pele branca, ele ergue as mãos para o pai e suplica.
— Para! É sério, eu posso me render!
Lúcifer para e olha descrente.
— É sério, chega.
— Que bom que está pensando direito agora, filho.
Lúcifer baixa a espada e estende a mão para Astaroth. Que segura sua mão e o puxa fortemente, desequilibrando o pai e dando uma forte cabeçada para o atordoar. Ele toma a espada da mão de Lúcifer e empurra o peito derrubando-o no chão.
Em um movimento de giro, Astaroth grita ao erguer a azul flamejante e desce rapidamente para o corte limpo, atingindo diagonalmente o pescoço do pai. A espada se quebra em pedaços, em som vítreo e tintila no chão.
Ambos param, Astaroth vê os pedaços de metal azulado no chão. Lúcifer arregala os olhos, mira sem entender. Astaroth ri, levanta o rosto de olho fechado em uma gargalhada profunda.
— Pai, não me diga que quem lhe entregou a espada foi Mefistófeles?
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