A vez de Lacey escrita por Camélia Bardon


Capítulo 2
Esporinha


Notas iniciais do capítulo

No capítulo de hoje temos:
— tutorial de como limpar casco de cavalo
— ou pelo menos uma tentativa disso

Boa leitura!



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A caminhada até o porto foi o que Lacey podia chamar de revigorante. Caminhada não; cavalgada. Lacey não estava tão fora dos eixos para ir andando do palácio até o porto.

Apesar de viverem mais em casa do que fora dos muros reais, o cheiro de maresia era sempre reconfortante. Lacey podia quase imaginar as ondas criando braços apenas para recepcioná-la. No entanto, quem abriu os braços para fazer uma recepção digna foi alguém bem humano.

— Bom dia, bebê!

Blair – para a contagem, a número 2, Sua Alteza designada Comissária de Comércios e Relações – auxiliou a irmã mais nova a descer do cavalo que tão gentilmente a tinha trazido até ali. É claro que Lacey sabia se desmontar sozinha, mas tirar a graça de Blair em acariciar o equino era no mínimo cruel.

— Está me cumprimentando ou cumprimentando o bebê cavalo?

— Serve para você e para ele, que é a coisinha mais fofinha — Blair afinou a voz ao abraçar o focinho de Ivory, o dócil Clydesdale adotado por Blair em uma de suas viagens. — Não é mesmo, fofinho?

Ivory bufou bem-humorado, aninhando o focinho gelado na antiga amiga. Lacey sorriu com a cena, ainda mais confortável com todo o cenário que a rodeava. Blair, por sua vez, se recompôs ao arrumar os fios de cabelo desalinhados pela comoção do momento.

— Bem, vamos indo? Spencer preparou um café da manhã bem gostoso para nós duas.

— Ele não achou ruim que eu pedi para vir, achou...? — Lacey indagou num tom tímido.

Blair gargalhou delicadamente, como só ela podia fazer. Tudo o que Blair fazia quando não estava cavalgando era permeado de delicadeza. Era interessante que, mesmo executando trabalhos majoritariamente masculinos, Blair dava seu toque único – melhor, até.

— Spencer? Achar ruim? Ah, querida! Spencer só tem aquela cara de homem mau e imponente, mas com as minhas irmãzinhas não. Ele só esquece-se de sair do personagem, às vezes.

Lacey assentiu com a cabeça, rindo mais tranquila. É verdade que o marido de Blair podia ser bem intimidador quando bem entendesse, mas era como ele mesmo dizia – eram ossos do ofício. Parte da má impressão estava na cicatriz que atravessava um pedaço de sua bochecha e alcançava a pálpebra esquerda, parte estava na pose altiva e na voz gutural, parte também na profissão de navegador. Apesar disso, o coração de Spencer era gigantesco. Lacey sempre admirava silenciosamente como um homem daquele tamanho tratava a esposa com tamanha delicadeza e dedicação. Ela particularmente amava a história de quando haviam se conhecido, na Escócia. Nas palavras de Spencer, Blair fora a “amazona de seu coração”.

Só de se lembrar, Lacey suspirava. Talvez fosse uma romântica incurável.

— Está bem, está bem. É que foi bem... Súbito?

— Isso é! Desde quando você quer ser uma amazona? Pensei que tivesse medo de cair do cavalo!

Ivory pareceu bastante intrigado com a questão, porquanto que soltou mais um de seus bufos bem-humorados enquanto as duas caminhavam pelo píer em direção à caravela. Blair parecia brilhar, com sua palidez característica.

— Olhe, eu ainda tenho medo de cair do cavalo. Mas se eu andar com ele bem devagarinho, as chances de cair são menores.

— Eu acho bem justo. Se for montar o Ivory, ele é bem bonzinho. Mas fique longe do Ricochet, ele sim te derruba sem dó.

— Pelo nome, eu não esperava menos...

Blair riu, jogando os cabelos escuros para trás enquanto subia na caravela e acomodava o cavalo e a irmã no convés. Apesar de saber que o barco estava ancorado e que jamais afundaria em uma água tão rasa, Lacey não pode evitar cambalear pela madeira.

— Você acostuma — Blair encorajou-a, segurando seu braço para apoiá-la até a “mesa” do café.

— Ainda bem que escolhi equitação e não navegação — Lacey riu nervosamente, agradecendo a ajuda com um meneio de cabeça. — Acho que eu seria uma pirata patética...

— Pode ficar com o papel da sereia, veja só.

Lacey gargalhou, atraindo a atenção de Spencer que as aguardava na popa. Receptivo como sempre, o homenzarrão ruivo levantou-se de prontidão.

— Olá, Altezinha! — Spencer estendeu as mãozonas para abraçar as de Lacey, ou ao menos era isso que se assemelhava um aperto de mão da perspectiva da princesa. — Queira me desculpar, mas trato por Alteza apenas minha querida esposa.

— Altezinha para mim está bom — Lacey sorriu, se chacoalhando junto ao aperto de mão. — Como vai, Spencer?

— Muito bem, obrigado. Estar no mar é bom, mas de vez em quando é melhor ainda voltar para casa. Queira me desculpar por não ter ido ao seu baile, Altezinha, porém eu não me dou com toda aquela gente chique. Blair mandou meus cumprimentos?

— Oh, sim. E eu fiquei muito feliz. Apesar de ainda pensar que seria mais divertido com sua presença.

— Seria um bom entretenimento se começasse a rosnar para eles, não acha?

Spencer e Lacey gargalharam em concordância, mas a risada abrandou-se da parte do homem quando Blair lhe lançou um olhar de reprimenda sutil. Lacey sabia que no fundo ela concordava, mas tinha de influir seus poderes de “Alteza” de vez em quando.

— Desculpe-me, querida. Vamos comer antes que os ovos mexidos esfriem?

As garotas assentiram com a cabeça animadamente. Não eram tortas de mirtilos, mas qualquer refeição preparada com carinho tornava-se um banquete.

❀⊱┄┄┄┄┄┄┄┄┄┄┄⊰❀

Spencer optou por permanecer na caravela enquanto Lacey, Blair, Ivory e Ricochet retornaram para o palácio. Lacey agradeceu silenciosamente que a subida era mais difícil de ser percorrida a cavalo, porquanto que ela ainda segurava forte a rédea. Como se isso fosse me impedir de cair... No máximo, retardaria o tombo.

Rindo sozinha, Lacey desceu do cavalo sem maiores complicações. Bem, talvez ela tenha tropeçado, mas nada que fosse muito perceptível.

— Bem, cavalgar você já sabe... O que acha de te ensinar um pouquinho sobre trato com cavalos?

— Como assim? Não é só escovar e dar banho? — Lacey indagou sinceramente confusa.

Blair negou com a cabeça, ajeitando os dois cavalos em suas alas no estábulo.

— Fora o banho e a comida, nós ainda aparamos o pelo... Quando necessário limpamos e lixamos os cascos... Ah, tem várias coisas, além disso!

— Entendi... Coitadinhos, deve ser difícil não ter dedos...

— Ah, eles são bem independentes em geral. Mas todo mundo merece ser mimado de vez em quando.

Lacey sorriu, concordando com as palavras. Ivory já tinha um cuidador, no entanto Ricochet era propriedade exclusiva de Blair. Quando Sua Alteza retornava para sua antiga casa após tanto tempo fora, era de praxe parar para cuidar de seu protegido. Com o baile das trigêmeas, entretanto, a atividade foi adiada.

— O que preciso saber? — Lacey indagou pronta para o que desse e viesse.

Blair assentiu com a cabeça e recolheu suas ferramentas. Primeiro, amarrou o cavalo no que parecia ser um poste feito para isso. Depois, puxou para si um banquinho e alongou-se com cuidado.

— Primeiro nós escovamos o pelo, como você disse — ela sorriu, pegando dois objetos da caixa de ferramentas. — Serve também como um carinho para o cavalo e evita que ele fique ansioso e fique batendo os cascos enquanto nós o limpamos.

— Faz sentido. Por que duas escovas?

— Uma serve para tirar o excesso de pelos — Blair referiu-se à escova com “dentinhos”, logo depois passando para a que tinha um aspecto mais firme e espesso. — Essa aqui serve para tirar o pó que ainda fica encrustado nos pelos. Com licença, meu bem.

Demorou alguns segundos antes que Lacey entendesse que o “meu bem” era Ricochet, e não ela. Quando se deu conta, lá estava ela segurando o riso pela própria confusão. Ricochet se balançou um pouco em protesto, mas ao passo que Blair o escovava sua calmaria foi evidente. Blair deixou para que Lacey tirasse o excesso de pó, para que o cavalo também se acostumasse com ela.

— Obrigada, meu bem. Olhe só, o banquinho não é para se sentar, é para apoiar a perna — a amazona demonstrou, apoiando a perna esquerda na madeira. O gesto lhe dava uma altura extra no joelho. — Chamamos a atenção do cavalo com cuidado, não é preciso obrigá-lo a estender a pata. Cada cavalo tem sua particularidade, por isso é recomendado começarmos com as patas da frente para que ele entenda que vamos limpar o casco. Até aqui tudo bem?

Lacey assentiu concentrada em não fazer nenhuma bobagem. Afinal, era uma vida que estava em jogo.

— Isso aqui se chama rinete — Blair mostrou o que parecia ser um garfo sem pontas. Ao aproximar a mão das pernas de Ricochet, o animal ergueu-a sem maiores problemas. Logo, sua amazona posicionou as pernas entre a do cavalo, fazendo das coxas um apoio seguro. — Usamos para tirar o excesso de sujeira dos cascos do cavalo. Para isso, precisamos das mãos livres. E é por isso que uso calças para isso.

Apesar de rir do comentário, Lacey olhou para baixo analisando o próprio vestido lilás que provavelmente teria  de ser mandado imediatamente para a lavagem. Oh, céus.

— Não vou colocá-la para fazer isso hoje, fique tranquila.

— Ah, graças a Deus.

Blair riu baixinho, segurando a ferramenta com cuidado. Lacey, por sua vez, aproximou-se sem atrapalhar sua posição.

— Está vendo aqui, onde está mais branco do que marrom? — Blair apontou com a lâmina para onde queria que Lacey prestasse atenção. — É o limite da sola. Chamamos também de “sola verdadeira”. Não podemos tirar muito do casco, só até essa sola. Senão, o cavalo vai ficar sensível e não vai pisar com firmeza das próximas vezes.

— Coitados...

— É mesmo. Veja bem, eu não costumo começar dessa ponta aqui, está vendo? Chamamos essas pontas de “quartos”. Entre elas, temos a ranilha, que é um tipo de vale entre os dois quartos. A parte debaixo, que parece uma meia-lua, se chama “pinça”. Começamos por aqui.

Daí, Lacey observou hipnotizada enquanto Blair retirava os excessos do casco de Ricochet. Havia certa propriedade terapêutica na atividade, porquanto que Lacey estava quase abrindo a boca para babar na precisão dos movimentos da irmã. Quando Lacey pensou que Blair havia finalmente acabado, ela viu-a estender a mão mais uma vez para a caixa de ferramentas. Não tão sutil quanto o tal do rinete, a próxima ferramenta mais parecia um instrumento de tortura. Lacey sobressaltou-se.

— Meu Deus, mas o que é que é isso?!

— É uma torquês — Blair riu fraco, pedindo ajuda a Lacey para guardar o rinete de volta à caixa de ferramentas. — Agora que já ajeitamos a parte de dentro, vamos retirar das bordas da ferradura. Esse aqui parece uma ferramenta de mordida.

Naquele ponto, a cabeça de Lacey já girava sem parar. Por sua vez, Ricochet parecia encará-la diretamente nos olhos, como quem diz “está prestando atenção?”. Dali, Lacey entendeu que os cascos precisavam ser mordidos pelo tal da torquês, que depois se transformaram numa serra de dois puxadores que aparentemente levavam o nome de grosa. Apesar de o processo todo estar imensamente interessante, quando Blair finalmente terminou o primeiro casco de “demonstração”, Lacey suspirou de alívio por dentro.

— Acabamos o primeiro. E agora você pode ir, pela sua cara de socorro.

— Oi? — Lacey se recompôs. — É claro que não, eu...

Blair interrompeu-a, com uma mão gentil em seu braço. Foi a vez de Lacey interromper-se, olhando para ela com uma curiosidade repentina.

— Querida... É uma tarefa trabalhosa, mas se não se afeiçoou a ela, significa que não é seu talento secreto. Acredite em mim, forçar-se a ser quem não é consegue ser pior do que não ter certeza de quem é.

Lacey engoliu em seco, ao passo que Blair soltou a pata de Ricochet para concentrar-se na seguinte. Sorrindo de uma maneira receptiva e compreensiva, a mais velha sussurrou:

— Eu adoraria companhia, no entanto... Lixar cascos deixa a gente meio doida e sem fôlego no final do dia.

Apesar de ainda não sentir a magia dentro de si, Lacey permaneceu por pura companhia.

❀⊱┄┄┄┄┄┄┄┄┄┄┄⊰❀

Lacey achava um tanto quanto intrigante que Blair gostasse de esporinhas. Talvez gostasse tanto de equitação que o diminutivo de espora lhe parecesse particularmente atraente. Fosse como fosse, ao observar Blair sumir no horizonte em retomada até a praia, Lacey pôs-se a pensar inquietantemente.

Se mesmo após sua busca pessoal não conseguisse nenhum resultado, ainda teria as memórias, certo...?

— Tia?

Uma voz tímida tirou-a dos devaneios, fazendo com que Lacey olhasse um tanto para baixo para decifrar qual das três princesinhas a solicitava para uma conversa. Todas as três eram tão parecidas com a mãe e entre si, que mesmo com idades e alturas diferentes, só era possível decifrá-las após alguns segundos.

— Sim, Bianca? O que foi que houve, meu amor?

— Nada... Só vim ficar aqui com você. Está fresquinho e o pessoal lá dentro está fazendo o maior barulhão...

Lacey sorriu sozinha. Com quase sete anos, Bianca já era muito esperta e demonstrava que teria uma personalidade forte apesar da timidez.

— Aqui é gostoso de ficar quando se quer um tempinho sozinho — Lacey comentou despretensiosamente.

— É verdade. A tia Courtney me deu um livro para ler, mas eu sento na outra ponta do jardim... O moço disse que eu ia achar você aqui, aí eu vim te fazer companhia.

— Entendi! Bem, então se sinta à vontade!

— Obrigada, tia...

Bianca encostou-se a ela para ler, enquanto Lacey achava graça de “o moço”. Seu gerânio ainda estava bem guardado dentro de seu caderno de anotações, prensado para que secasse e pudesse mantê-lo lá por vários anos. Tendo uma ideia mirabolante de última hora, ela exprimiu um arquejo.

— Me espere voltar bem rápido, Bianca? Vou ali ao jardim pegar uma coisa.

— Tá bom... Vou ficar aqui, então.

Lacey assentiu, escapulindo para o arbusto de esporinhas que cresciam selvagemente nos muros do palácio. Como se estivesse numa missão secreta em nome da Coroa – ora essa! Ela fazia parte da Coroa... –, Lacey surrupiou para si uma amostra de uma esporinha.

Com os olhos brilhando, Lacey admirou-a sozinha.

Enquanto não encontrasse seu talento, poderia criar ao menos uma distração.


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