A Balada de SPDR escrita por Markwheav


Capítulo 1
Capítulo 1 - Epílogo




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No final do século MDCCLIV, o Império Rosh-Torr tentou invadir os ducados de Enésia atravessando as Colunas do Céu. Foi uma manobra extremamente arriscada, onde o imperador mobilizou cerca de vinte mil soldados – um quarto de todo o seu exército! – a qual, caso fosse bem-sucedida, pegaria os enesianos totalmente desprevenidos. Ninguém em Enésia jamais conceberia a mais remota possibilidade de um ataque pelas montanhas. Não aquelas montanhas. De modo que o risco parecia valer a pena: mesmo que apenas metade das tropas sobrevivesse à travessia, o elemento surpresa tornava certa a tomada, em poucas horas, de pontos estratégicos vitais da região vizinha. Sim, o risco valia à pena, ponderou o imperador, a despeito dos alertas de seus generais.

            Não sobreviveu um único soldado.

            Este episódio ficou conhecido pelo pouco inspirado nome de “O Grande Massacre” (os rosh-torianos não são lá muito criativos) e a magnitude dessa derrota desencadeou uma série de outros eventos, que alteraram, significativamente, os rumos do Império: uma sequência de revoltas nobiliárquicas culminaram na derrubada do imperador, seguida de uma breve, mas sangrenta, guerra civil e à ascensão de uma nova dinastia imperial ao trono – talvez a mais agressiva de sua História.

            De qualquer modo, desde então nenhum imperador voltou a sequer cogitar um ataque a Enésia através das Colunas do Céu. E, quase cem anos depois do Grande Massacre, lá estávamos nós, sete aventureiros, tentando realizar a mesma travessia.

E, claro, quase morremos todos.

Tratava-se da etapa final de nossa missão. Etapa desagradavelmente inesperada.

Já narrei aqui, para vocês, os eventos que nos levaram a entrar em Rosh-Torr, todos os problemas que tivemos para obter o artefato que fôramos contratados para resgatar dentro do “Reino dos Infelizes”, e como nos deparamos, repentinamente, com nossa rota de fuga bloqueada.

É sempre no final que as coisas dão mais errado.

Detalhei para vocês como, durante nossa tentativa de encontrar outra saída, acabamos nos desviando para oeste, indo parar a dezenas de quilômetros do local onde devíamos estar, correndo floresta adentro, fugindo de uma tropa de cerca de trezentos soldados, do exército mais bem preparado do mundo, em um território que nos era totalmente estranho, mas que eles conheciam como a palma das próprias mãos. Situação das mais desagradáveis, vocês hão de concordar comigo.

O fato é que, em meio a nossa fuga desordenada, acabamos imprensados contra os limites das Colunas do Céu.

Os soldados pareciam vir principalmente do sul e do leste. Ao norte a floresta cedia lugar a vastas planícies descampadas, terreno aberto onde seríamos capturados sem grande esforço. E ali, à nossa frente, o grande e intimidador paredão montanhoso. É. Estávamos encurralados.

Consideramos nossas opções. Não eram muitas. Nos entregarmos estava fora de cogitação: acho que todos aqui conhecem a fama dos julgamentos em Rosh-Torr. Então, só nos restavam, basicamente, duas alternativas: enfrentarmos trezentos soldados do melhor exército do mundo ou tentarmos atravessar as mais perigosas montanhas do mundo. E uns três ou quatro minutos para tomarmos essa decisão.

Bem, é importante observarmos que, caso tentássemos as montanhas, nós tínhamos uma vantagem sobre o exército de vinte mil soldados do Grande Massacre, que era exatamente o fato de não sermos um exército de vinte mil soldados.

Vejam, as Colunas do Céu são uma gigantesca cordilheira habitada por todo tipo de raças de criaturas hostis, que disputam entre si palmo a palmo daquele território, tanto da superfície quanto do emaranhando conjunto de túneis e cavernas em seu interior, de cuja extensão real não fazemos a menor ideia. Elas são a fronteira natural entre o Império Rosh-Torr e Enésia e a grande sorte de ambos os reinos é justamente aquelas criaturas terem mais interesse em lutar entre si pelo controle das montanhas, do que avançar para além de seus limites. Não que as cidades em seus arredores não sofram com ataques ocasionais – em geral, tentativas de saques. Mas estes costumam ser executados por pequenos bandos e não chegam a ser uma constante. Da mesma forma, os bosques no sopé das montanhas não são bons lugares para se passear (fica a dica).

O maior medo, em ambos os lados das Colunas do Céu, é que um dia estas raças parem de brigar umas com as outras e decidam se unir, formando algo como um “Grande Império das Montanhas” ou coisa semelhante. Se isso acontecesse, o Grande Massacre ia parecer uma briga de taverna. Mas esse é um assunto que ninguém por aquelas bandas gosta muito de tocar.

       A despeito de tudo isso, o fato é que há relatos sobre viajantes que já obtiveram sucesso na sua travessia. Embora a maioria dos que tentam fiquem, posteriormente, conhecidos como “desaparecidos”, há alguns (raros) casos de tentativas bem sucedidas. Ocorre que indivíduos sozinhos (também chamados de “loucos”) ou pequenos grupos tem menos chance de chamar a atenção dos habitantes das montanhas. A presença de um exército de humanos na região, ao contrário, alarmou todas as raças das Colunas do Céu, que, naquele momento, se uniram para defender seus territórios do que presumiram ser um ataque em larga escala. Ou seja, ironicamente, o momento que uma união permanente desses povos esteve mais perto de se concretizar, foi justamente em decorrência de uma ação daqueles que mais a temem. Felizmente, para estes, as criaturas das montanhas voltaram a se matar entre si logo depois.

 Portanto, sermos poucos era, de um jeito estranho, uma vantagem que nós tínhamos. Outra, era que estávamos no final do outono, quando muitas criaturas já começam a hibernar. Podíamos ver isso como um bom sinal, já que, em menos de um mês e meio, seria inverno, quando a travessia é impossível.

Então, precisávamos tomar a decisão: soldados ou montanhas?

Votamos.

As montanhas ganharam por 4 a 3 (eu votei nos soldados).

E assim iniciamos a travessia.

Foram as três piores semanas de nossas vidas. Vinte e três dias, para ser preciso. E tivemos problemas em cada um dos dias. Cada. Maldito. Dia.

Lutamos contra orcs, ogros e trolls, é claro. Homens-hiena também encontramos em boa quantidade Serpentes gigantescas, tanto terrestres, quanto aladas; além de incontáveis criaturas menores que matávamos antes de descobrir o que eram. E goblins. Cardumes e cardumes de goblins. Algumas harpias, e, eventualmente, uma manticora. Ainda que tenhamos travado combates muito duros contra todos estes, ainda assim, eram males conhecidos. Acredito que, piores, foram os seres nativos da região. Coisas das quais nunca ouvíramos falar, que aparentemente não existem em nenhuma outra parte do mundo.

Havia uma raça goblinoide pequena e viscosa, difícil de matar, que fedia como estábulos sem manutenção. Pior do que a mordida deles era que seu cheiro ficava impregnado em nossa pele e em nossas roupas por dias. Havia moscas inteligentes que tentaram negociar seus ovos conosco, antes de tentarem nos matar. Havia um tipo de rocha porosa, que se esfarelava ao toque, depois se recompunha ao redor de sua mão ou pé... não dá pra dizer se aquela coisa estava viva ou não. Ninguém nunca soube me dizer o que podia ser aquilo. Mas tentou nos matar, também.

Em resumo, tudo que se movia por lá tentou nos matar. Algumas coisas que não se moviam, também. E havia os malditos vermes mentais...

(...)

Desculpem.

Eu... não falo dos vermes mentais.

(...)

Desculpem. Enfim.

Até hoje eu não consigo narrar os eventos de nossa travessia em uma ordem minimamente coerente. Não apenas pela quantidade de adversidades com as quais nos deparamos, mas porque, em dado momento, a exaustão começou a turvar nosso raciocínio. Perto do fim, já havíamos perdido totalmente a noção do tempo. Acreditávamos que já estávamos vagando há mais dois meses, que estávamos perdidos, que o inverno cairia a qualquer momento e a neve nos soterraria para sempre, que a primavera presentaria os ratos com nossos cadáveres.

Quanto mais próximo dos últimos dias de viagem, mais nebulosas são minhas recordações. Há eventos que eu não sei se fato ocorreram, ou se foram apenas alucinações. Não só por causa dos vermes mentais, mas porque, durante todo esse tempo, pouco dormimos.

Não nos arriscávamos a buscar abrigo em cavernas, então, geralmente passávamos a noite em protuberâncias de encostas, usando apenas nossas mantas e o calor uns dos outros para minimizar o frio das noites do final do outono. Becka chegou a adoecer em decorrência disso. Certa noite, dormimos todos pendurados em cordas.

Dormir, entendam, é modo de dizer. Quando muito, cochilávamos. Certamente pela tensão, mas, principalmente, por causa dos sons. Havia muitos sons nas montanhas, à noite. Sons de todo tipo, vindo de toda parte e de lugar nenhum. Gritos, gargalhadas, gemidos, lamentos, zumbidos, música (se é que aquilo era música), e sabe-se lá mais o que. E, quando a lua estava cheia, havia sombras: subindo e descendo, correndo, espreitando, mesmo quando estávamos em lugares onde nada havia para se mover. Malael as chamava de “sombras do vazio”.

Só ousávamos avançar durante o dia. A maior parte do caminho não tinha trilhas, e as que existiam, muitas vezes evitávamos. Então, o Sol era nossa única referência de direção. Mas isso só tornava tudo mais demorado. Pra piorar, os suprimentos que levávamos conosco se tornaram escassos por volta do décimo segundo dia. Conseguir água não era tão difícil, mas, comida, sim. Havia pouca coisa para caçar e a maior parte dos frutos da vegetação local eram incomestíveis, ou venenosos para nós.

Por volta do vigésimo dia, já não conversávamos mais. Apenas marchávamos como uma decadente tropa de mortos-vivos. Numa daquelas noites, Galock entoou alto a canção mortuária de seu povo, e nós o acompanhamos, sem a menor ideia do que estávamos fazendo. Acho que, ali, tínhamos ficado todos loucos. Tanto que, quando a trilha começou a descer mais uma vez, e a paisagem se modificou significativamente, demoramos pra entender o que estava acontecendo. Malael foi a primeira a se dar conta, e caiu no choro. Eu comecei a chorar junto, mesmo sem nem entender o porquê.

Havíamos saído. Havíamos conseguido. Atravessáramos as montanhas.

Estávamos em Enesia.

E nosso grupo se desfez.

Sobrevivêramos. Sim, sobrevivêramos quase todos, mas, a travessia nos fez algo pior do que nos matar. Ela nos quebrou.

O único a morrer foi Aneal, mas como ele já estava morto mesmo, desde bem antes do começo da missão, não contamos isso como uma baixa. Na verdade, para ele foi bom. Finalmente se viu livre. Olhando em retrospecto, não tenho dúvidas que foi bem mais duro para nós, que sobrevivemos.

A cidade fortificada de Portassul era a mais próxima daquela região das montanhas. Chegamos a ela exauridos e maltrapilhos, sob olhar espantado e descrente de seus moradores. Eles foram extremamente hospitaleiros conosco, e nos socorreram da melhor forma que puderam. Para alguns, era tarde demais.

Galock ficou entre a vida e a morte por uma semana. Sobreviveu, mas perdeu o braço habilidoso, e boa parte dos movimentos da perna direita. Nunca mais pôde lutar. Malael se viu vitimada por pesadelos – estivesse dormindo ou acordada – que a assolaram pelo resto de sua breve vida. Sua morte, poucos anos depois, foi rotulada por alguns como “misteriosa”. Não é verdade. Não houve mistério ali. As montanhas simplesmente nunca a deixaram. Permaneceram com ela, até o fim. Até o fim.

Becka, desde sempre a mais introspectiva de nós, permaneceu conosco até Galock se estabilizar, e depois nos deixou. Se isolou em sua torre e demoraria anos até eu voltar a ter notícias suas. Quando a reencontrei, era, com efeito, outra pessoa. Alepim também se foi. Simplesmente partiu numa madrugada, sem dizer nada. Todos sabíamos o que sentia por Aneal, exceto ele mesmo. Ela, eu nunca mais vi.

E havia Grinh”nh’nh. Até onde eu sei, o menos afetado pela travessia. Claro que, sendo ele um homem-cutia, não posso assegurar tal coisa. Sempre tivemos problemas de comunicação com ele. Mas era um bom amigo. Quando viu o grupo debandar, apenas pegou sua parte da recompensa, e voltou para seu povo. Foi o único que eu voltaria a ver com alguma frequência.

Sim, houve uma recompensa. Uma vultosa recompensa. Ora, naquele tempo (como hoje) um forasteiro só tentaria penetrar nas fronteiras Rosh-Torr se tivesse uma razão muito forte para tal – o que, normalmente, envolve volumes obscenamente altos de moedas de ouro. Cumprimos a missão, entregamos o artefato para nosso contratante e fomos muito bem pagos por isso. Arrematamos uma pequena fortuna. Dinheiro que sustentou a invalidez de Galock e o isolamento de Becka. Dinheiro que Grinh”nh’nh gastou em comida em menos de um ano, e que de nada serviu para Malael.

E quanto a mim?, vocês devem estar se perguntando. “Saiu ileso das montanhas?”

Amigos, ninguém sai ileso das Colunas do Céu.

Em um primeiro momento, vendo a situação de meus amigos, até me considerei como um dos menos afetados pela travessia. Porém, passados poucos dias, baixada a poeira, e cada um tomando seu rumo, me vi consumido pelo vazio.

Aquele era o segundo grupo que eu perdia. O primeiro debandara por razões mais amenas (se é que uma briga generalizada entre os membros da equipe pode ser considerada amena), mas, o sentimento era bem parecido. Vejam, você passa meses... anos... na companhia de determinadas pessoas, criando e estreitando laços com elas até um ponto em que passa a considerá-las sua verdadeira família. Você luta ao lado daquelas pessoas, as socorre, e chega ao ponto de cogitar dar sua vida pela delas. E, num dado momento, elas não estão mais lá. Nenhuma delas.

E então você está só, novamente.

Não conheço palavras que possam exprimir adequadamente esta sensação.

Decidi que não queria mais passar por nada daquilo. Não queria outro grupo, outros laços. Passaria a vagar solitário pelo mundo, apenas contando as histórias que já acumulara ao longo de minha carreira e reproduzindo as narrativas de outros bardos. Minha vida de aventuras estava encerrada.

Mas até estas foram decisões posteriores. Nas primeiras semanas, logo após a travessia, nem para isso eu tinha forças. Fiquei em Portassul, mesmo após a partida de todos meus companheiros, só porque nada mais me ocorria. Me faltava ânimo para fazer o que quer que fosse. Demoraria um bom tempo até que eu me levantasse da cama do quarto de hospedaria onde quase criei raízes.

Foi um longo inverno.

E este, amigos, é o fim de nossa história. Há os que o considerem por demais melancólico. Nem todos gostam, e eu compreendo. Mas assim é a vida. Temos que aceitar que nem todas as aventuras acabam bem, que nem só de vitórias épicas vive o mundo. Sei que parece um amargo epílogo para a tão gloriosa jornada de meus amigos, mas, exatamente por isso, eu nunca deixarei de contá-la e recontá-la sempre que tiver oportunidade. Porque eles precisam ser lembrados. E a única forma que tenho de exaltar seus nomes e homenageá-los, é continuar contando tudo o que fizemos juntos: do conturbado começo e grandes façanhas ao amargo fim.

Gostaria então de pedir que todos aqui levantassem os copos e bridassem aos nomes de Aneal, Galock, Becka, Alepim, Grinh”nh’nh e, principalmente, Malael! Todos vocês foram heróis, companheiros! E, pelo menos enquanto eu viver, nunca serão esquecidos!

(...)

Contudo, sabemos que nada acaba realmente, não é verdade? Todo final, de algum modo, é o começo de outra coisa.

Vejam meu próprio caso: após todas as promessas de aposentadoria da vida de aventuras, após oito meses vagando como uma alma desgarrada pelas ruas de Portassul, definhando a olhos vistos, sem objetivos, sem perspectivas de futuro... após tudo isso, o mundo simplesmente virou de ponta a cabeça.

Sim, amigos. Estava começando a Terceira Convulsão. É exatamente dela que estou falando. E ninguém tinha como ficar indiferente em relação a isso.

Mas essa já é outra história. Se vou falar sobre esse assunto, melhor que eu conte direito. Vamos do começo, então:

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