Kalel - Dança de Sangue escrita por Natan Pastore


Capítulo 3
II


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura



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II

Em algum lugar ao norte de Al-Faraq.

“Manto Negro falou comigo ontem à noite”, disse Ikram.

Kalel hesitou momentaneamente, afastando-se de Ikram. Passou a mão pela testa suada, levantou as sobrancelhas e mais uma vez avançou contra o homem alto: o primeiro ataque foi bloqueado pelo bastão de Ikram, o segundo foi desviado e o terceiro teria atingido o pescoço dele, se este não fosse apenas um treinamento.

“Eu me pergunto por que ele sempre fala com você primeiro”, Kalel falou, ofegante.

Ikram sorriu e voltou a atacar. Kalel bloqueou os três primeiros golpes e desviou do quarto com um salto para trás, gracioso como sempre. Talvez fosse por ser mais leve e pequeno que Ikram, mas o homem nunca entenderia como Kalel fazia tantas acrobacias em meio ao combate com tanta facilidade. Não era à toa que as canções o chamavam de Dançarino. 

Kalel largou o próprio bastão no chão arenoso e acenou para que Ikram o atacasse de novo, e ele assim o fez. Utilizando o bastão para imitar a estocada de uma espada, Ikram mirou diretamente no peitoral desprotegido do amigo. Mais uma vez, em vão. O Dançarino girou para o lado esquerdo e deu um chute no braço de Ikram, derrubando seu bastão no chão arenoso. Sem esperar por reação alguma, Kalel moveu-se rapidamente para trás do adversário e golpeou sua perna esquerda, derrubando-o com uma rasteira. 

Antes de cair no chão, Ikram agarrou o braço de Kalel. Ambos no chão, o Dançarino por cima do homem alto.

“Eu venci, como de costume”, disse Kalel, saindo de cima de Ikram. 

“Babaca”, ele respondeu com um tom bem humorado. Kalel o ajudou a se levantar e ambos colaram os rostos, testa com testa. Era uma expressão de afeto da ordem deles.

Em passos calmos, os dois mercenários voltaram juntos ao acampamento que tinham montado próximo ao local em que estavam lutando. Uma pequena formação rochosa servia de abrigo contra o implacável sol de Zalearas, o deserto no extremo sul de Maerys. Kalel sentou encostado na rocha e bebeu um pouco de água de seu cantil, enquanto Ikram colocava os bastões próximos a fogueira apagada. Em seguida, o homem foi se sentar próximo ao Dançarino.

“E então”, começou Kalel, “O que Manto Negro queria?”

“Ele quer que o nosso retorno ao Antro seja adiado por um tempo, surgiu algo neste lado do mundo.”

Kalel guardou o cantil de água e amarrou as tranças do cabelo, elas começavam a incomodar no calor desértico.

“E o que é? Outro contrato?”, perguntou.

“Sim, mas o Manto não disse com quem.”, respondeu Ikram.

Manto Negro era o mestre de Kalel e Ikram e fora ele quem os ensinara tudo o que eles sabiam sobre a arte da violência, ou como Kalel preferia chamar, a arte da dança. Os três homens eram membros de uma ordem de mercenários bastante singular, o Antro das Adagas, uma mansão no meio das florestas temperadas de Nakur, o continente do oeste, que servia de base secreta para o grupo. 

Escondido pela floresta fechada e rumores falsos, o Antro foi a única casa que Kalel e Ikram conheceram, ambos tinham sido resgatados por mercenários ainda crianças e treinados para se tornarem membros da ordem. Criados juntos, os dois já eram exímios lutadores antes mesmo de terem pelos no rosto e, inegavelmente, eram leais um ao outro e compartilhavam de uma conexão que não se vê em qualquer lugar.

Vivendo segundo as tradições do Antro, Kalel e Ikram realizavam os contratos que diversas pessoas ao redor do mundo - poderosas ou não - faziam com eles. Às vezes, deveriam escoltar a filha de algum nobre local, em outros casos, deveriam roubar as jóias de um banqueiro e, em casos mais raros, os dois garantiriam que alguém deixasse de respirar neste mundo. 

O pagamento, entretanto, nem sempre era em dinheiro. Em muitos casos, os Vastag - como se auto nomeavam os membros do Antro das Adagas - preferiam receber sua recompensa na forma de segredos, favores ou mesmo um abrigo quando futuramente necessitarem. 

E o mais intrigante disso tudo era que seu mestre, Manto Negro, o atual líder dos Vastag, comunicava-se com eles por sonhos. Manto Negro era o título que o homem carregava em sua posição de liderança, e este não indica apenas que suas vestimentas incluem um manto negro, não, vai muito além disso. O líder dos Vastag é o único da ordem de mercenários que domina as antigas artes dos Vastag originais, habilidades não humanas que o permitem falar com seus companheiros por sonhos, ficar sem dormir por vários dias, comunicar-se com corvos, entre outras peculiaridades que nem Kalel nem Ikram tinham presenciado.

Além disso, Manto Negro fora o homem que acolhera ambos, quase que ao mesmo tempo, dentro da ordem, e por isso a dupla nutria grande admiração e respeito por ele, apesar de um certo receio em relação às técnicas ocultas dele. 

A menção ao nome do mestre fez com que Kalel se perdesse em meio às recordações de sua infância, Ikram o trouxe à tona.

“Ele não disse nada sobre o contratante, apenas que quando a hora chegasse saberíamos quem é.”

“E o que ele quer que façamos?”, perguntou o Dançarino.

“Há duas noites, a menina caçula de uma família de fazendeiros foi acusada de bruxaria pela Inquisição Loriana. Você deve imaginar o que deve ter acontecido.”

“Vindo dos fanáticos, só consigo supor o pior”, respondeu Kalel. Apesar de desconhecer o motivo, ele costumava ver qualquer tipo de adoração com maus olhos, e a Inquisição Loriana não passava uma imagem nada positiva do deus deles.

“A menina tinha um irmão, pai e mãe. Os filhos da puta mataram os três na frente dela e a levaram para ser queimada em Lor-Al em doze dias. Manto disse que ela está presa num lugar chamado Prisão Inferior.”

“E agora cabe a nós libertá-la, imagino.”

“Precisamente. Quem quer que foi o desgraçado que contratou os serviços do Antro, ele quer que resgatemos a menina presa em meio à maior força militar desse continente. Nada além disso.”

“E a recompensa?”

“Manto também esqueceu desse detalhe. Ele apenas disse que valeria o trabalho.”

“Se sairmos vivos dessa, é melhor que valha mesmo”, resmungou Kalel. Apesar do tom negativo, a perspectiva de serem assassinados ou presos acompanhava a dupla constantemente, já que a maioria dos serviços que prestavam podia ser considerada crime em quase todos os tribunais de Maerys e Nakur. “Lor-Al não é longe daqui, no máximo um ou dois dias de caminhada, partiremos à noite.”

Costumeiramente, os Vastag preferiam se manter parados de dia e viajarem protegidos pelo véu da noite. O capuz, manto, cinto, botas, calças e colete que ambos usavam variava de tons de azul marinho ao vermelho escuro, o que os camuflava na fraca luz da lua. Mesmo assim, ataques e emboscadas eram comuns na vida dos mercenários, por isso ambos estavam armados até os dentes: Kalel levava sempre consigo um par de adagas escondidos nas botas e mais uma num bolso secreto do colete, uma cimitarra e aljava com flechas e um arco curto nas costas. Já Ikram levava duas cimitarras e uma arma que passara a usar recentemente, uma espécie de luva com anéis afiados que chamavam de soco caleriano em Arachtor. Numa troca de golpes desarmado, o soco era de grande utilidade.

“Nós deveríamos dormir até o sol se pôr”, sugeriu Ikram. “Eu vigio por enquanto.”

Kalel assentiu com a cabeça e deitou-se de lado, deixando Ikram sozinho com seus pensamentos.

Desde que tinham levantado acampamento naquele local, na noite anterior, nenhum dos dois tinha realmente parado para observar a região. Agora, sentado em silêncio, Ikram podia fazê-lo. Estavam na extremidade do deserto e o chão já começava a ter um aspecto mais terroso, passando ao verde das Planícies Aráveis do reino de Lor conforme ia-se mais ao norte. Ao longe, voltando os olhos ao sul, Ikram ainda conseguia ver um pouco antes da linha do horizonte as muralhas da Cidadela de Al-Faraq, onde estavam antes de parar ali.

Al-Faraq era provavelmente a cidade mais antiga de Maerys que ainda era uma cidade, datando da época do Império Vermelho. Nos dias atuais, a Cidadela era um dos pontos mais movimentados do continente, sendo uma rota frequente de mercadores e viajantes. Com seus prédios de arenito e pedra-da-lua, ela podia facilmente se camuflar na imensidão amarela de Zalearas.

Ikram levou à mão a barriga, o contrato que os dois haviam concluído em Al-Faraq acabara resultando em uma facada no abdômen, bem na junção entre um músculo e outro. Por sorte, a combinação do colete dele com a inexperiência do esfaqueador garantiram que o corte não fosse muito profundo, mas mesmo assim doía como o inferno. Não era a primeira cicatriz no corpo de Ikram, e certamente não seria a última. Ikram era um homem forte, uns bons centímetros mais alto que Kalel e bem mais musculoso, seus traços eram bem parecidos com os do povo de Al-Faraq, pele oliva, olhos cinzentos e várias tatuagens pelo corpo, especialmente em sua cabeça careca.

Uma brisa quente vinda do deserto bateu em seu rosto, carregando um pouco de areia que fez cócegas em seu pescoço e braços descobertos. Mesmo na sombra, aquela era uma região muito quente. Árida e vazia, Ikram não conseguia enxergar uma única árvore em seu campo de visão, apenas algumas plantas rasteiras e espinhosas. Entretanto, ele achava o lugar estranhamente belo, apesar de hostil. 

Não consigo imaginar como você não sente calor com essas tranças cobrindo-lhe o rosto, pensou Ikram, olhando para Kalel. Desde a memória mais antiga que tinha dele, o Dançarino mantinha os cabelos trançados com lã branca, formando longas e grossas tranças que iam até o meio de suas costas. Apesar da temperatura alta, elas não pareciam incomodar Kalel, que dormia pesadamente. 

Ikram atentou-se ao rosto dele, gostava de fazê-lo quando ninguém estava olhando. Pele negra, olhos castanhos como mel, barba rala, lábios carnudos e a cicatriz que ia de trás da orelha direita até o pomo de Adão. Aos olhos de Ikram, poucas pessoas eram tão bonitas quanto Kalel, e certamente nenhuma tinha despertado tantos sentimentos nele quanto este homem. Mesmo tendo sido criados com todas as pretensões para que olhassem um ao outro como irmãos, os dois se enquadravam mais como amantes, especialmente pela perspectiva de Ikram. Porém, nesse ponto, a relação dos dois se tornava confusa: foram muitas as noites que os dois se deitaram juntos, e eram muitas as manhãs em que Kalel acordava e agia como se nada tivesse acontecido. Apesar disso, Kalel despertava sensações em Ikram que nenhuma mulher e nenhum outro homem havia despertado antes, e ele sabia disso. 

Um dia talvez, num futuro menos sangrento, devaneou Ikram, desviando o olhar para o horizonte a sua frente. Ele sabia que Kalel também o desejava em alguns momentos, mas por questões bem mais carnais. Mesmo tendo vivido quase toda a vida juntos, muitas coisas que se passavam na mente do Dançarino eram uma incógnita para Ikram.

O sol ia baixando no horizonte quando, de repente, o som de um galho se quebrando preencheu o silêncio. Num salto, Ikram levantou-se e desembainhou uma de suas cimitarras, os músculos tensionados em alerta. O barulho tinha vindo do outro lado do rochedo em que estavam. Em passos lentos e silenciosos, o homem circulou a rocha, pronto para emboscar o que quer que fosse.

“Ah… Noken”, falou aliviado, embainhando a cimitarra.

Noken levantou a cabeça esboçando um sorriso ensanguentado, um pedaço de carne em meio aos dentes afiados. Ikram voltou ao acampamento seguido pelo feral que ainda engolia sua comida. Noken, o outro companheiro de Kalel, era um felino de quase um metro e meia de altura e dois metros de comprimento, pelos cinzentos e azulados e olhos verdes. 

O feral era uma das poucas coisas que faziam a dupla quase acreditar em magia e outras bobagens, já que esses animais não pareciam ser nada naturais. Eram estranhamente mais inteligentes que a maioria dos outros felinos, conseguiam pressentir situações de perigo e entender emoções humanas com uma surpreendente facilidade. Noken fora resgatado por Kalel de um grupo de caçadores há muitos anos atrás e desde então o acompanhava para todos os lugares que fosse.

Voltando a se sentar próximo ao Dançarino, Ikram observou o feral deitar-se próximo ao dono, ronronando. Quase que instantaneamente, Kalel despertou.

“Quanto tempo se passou?”, perguntou espreguiçando e jogando as tranças para trás. Evidentemente, ele percebera que já estava escurecendo. “O sol já está quase se pondo.”

“Você parecia estar em sono profundo, não quis atrapalhá-lo”, respondeu Ikram, sereno. “Manto Negro falou com você?”

“Sim, mas dessa vez o sonho foi diferente… Confuso... A voz dele ecoava distante e não consegui enxergá-lo.”

“Você acha que algo aconteceu com ele?”

“Manto Negro? Não mesmo”, debochou Kalel. 

“E o que ele disse? Algo a mais sobre o contrato?”

“Sim, ele disse que depois que resgatarmos a menina, ela deve ser levada a um templo em Saylem, ele disse que ela saberia onde fica.”

“Algo mais?”

“Ele disse que o nome dela é Melyria.”

Muito abaixo da Altíssima Catedral de Iseus, Lor-Al.

Escuridão. 

Melyria estava de olhos fechados. Ela os abriu.

Novamente, escuridão.

    Ela estava em pé, os braços esticados e presos por correntes que lhe impediam de ter a mínima mobilidade. O rosto doía e ela conseguia sentir o lábio e nariz inchados, além de uma crosta de sangue que se formara entre eles. As roupas estavam rasgadas e ela tremia de frio, mas o que realmente incomodava era a sensação de impotência.

    Por Iseus, onde estou?, pensou Melyria. 

Memórias dos últimos acontecimentos preencheram sua mente: Makael estirado no chão, o pai com a face destruída, a mãe espancada e, principalmente, o rosto odiável do Alto Sacerdote. Ela se repreendeu por usar o nome do deus dos lorianos, passara a vida inteira seguindo sua fé e veja aonde isto a levou.

    O ranger do que parecia ser um portão abrindo ecoou perto dela, vindo acompanhando de passos rápidos e desritmados, como se alguém estivesse se arrastando. O som chegou cada vez mais perto de Melyria e um cheiro de urina impregnou suas narinas, uma respiração pesada e ofegante. Alguém estava a sua frente.

    Este alguém aproximou-se dela. Melyria conseguia sentir o torso nu roçando seu corpo dolorido.

    “Você deve ser a bruxa que Elir trouxe para cá”, a figura sussurrou em seu ouvido, mas mesmo tão próximo dela, Melyria não conseguia discernir seu rosto, nem nada no breu em que estava. “Bem-vinda à Prisão Inferior, vadiazinha.”


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