Kalel - Dança de Sangue escrita por Natan Pastore


Capítulo 14
XII


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura!



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XII

No vale de Saylem.

Tomando cuidado para não escorregar, Kalel atravessou o caminho de pedras que servia de ponte entre uma margem do rio e outra.

As águas do Sossego, como as Lilithares chamavam o rio que cortava o vale, faziam jus ao nome: seguiam seu percurso lentamente, como se tivessem todo o tempo do mundo. Taboas flutuando nas bordas do córrego cediam sutilmente ao vento que lhes atingia. Outras plantas aquáticas moviam-se discretamente em seu repouso flutuante. O Sossego não era fundo, mas Kalel não queria se molhar. 

O vale descia numa inclinação que dava espaço à floresta e um pequeno afluente do rio serpenteava ao longe na direção do lago dos pesares. Noken caminhava em passos despretensiosos rumando ao bosque. O farfalhar das folhas e o dançar da relva escondiam completamente os mínimos ruídos que o feral emitia enquanto se movimentava.

Era o começo da manhã e Kalel acabara de ver Melyria subindo a colina do altar de Lilith. Não tinham tido nenhuma conversa real desde que ambos chegaram ao Templo, mas ele sentia que não deveria interromper o quer que fosse que ela estivesse indo fazer. As dores de cabeça dela haviam cessado, mas seu treinamento ocupava todo o tempo que tinha.

Kalel e Noken adentraram a floresta recebidos pelo canto dos pássaros. Iam todos as manhãs para que o feral caçasse os pequenos habitantes do chão e das árvores enquanto o Vastag meditava - a floresta era o mais próximo que podia chegar da atmosfera familiar de Hadbron. Mas havia algo diferente desta vez… Alguém diferente.

Uma mulher treinava numa pequena clareira que a vegetação protegia no centro da floresta. Os dois se esconderam atrás de um tronco caído para assisti-la. Vestia um quimono prateado amarrado com uma faixa púrpura na cintura, o qual deixava um pouco do busto à mostra. Não tinha cabelos e os olhos eram de um verde-água profundo. Kalel sabia que ela era uma Lilithar… Mas tão diferente das outras.

Seus movimentos eram graciosos e ágeis como eram os do próprio Dançarino, mas os olhos dele se arregalaram ao ver quais outros recursos a bruxa possuía. 

A mulher largou o bastão no chão e levantou a mão, seus dedos movimentavam-se harmoniosamente tal qual a relva dos pastos. Uma labareda que irrompeu numa bola de fogo surgiu do nada, pairando centímetros acima da palma dela. 

Mesmo tendo visto Aleril, a ascensão de Melyria e as outras bizarrices do Templo, uma manifestação tão natural e próxima a ele de magia foi capaz de genuinamente impressionar Kalel. Poucas coisas o deixavam assim, ele que tinha se adaptado consideravelmente bem aos costumes e práticas das Lilithares, mas aquela demonstração tão… Primitiva dos poderes sobrenaturais das bruxas o deixava extasiado. 

Com uma das mãos ocupadas controlando a bola de fogo, a mão livre da mulher dançou no ar. Nem um segundo se passou até que um jato de água - condensado como se fosse sólido - voou em sua direção, vindo do afluente do Sossego que rumava ao lago dos pesares. Fazendo curvas para desviar-se das árvores e galhos, a água amontoou-se em outra esfera flutuante na mão da mulher. 

“É como dita a Díade”, disse para que o verde ao redor a escutasse. Tinha um rasgado na voz que lhe dava um quê de melódico, coisa que todas as Lilithares aparentavam, mas era a autoridade que predominava em sua entonação. E também um ligeiro sotaque caleriano. “As energias opostas unem-se numa dança inabalável.”

Lentamente, as mãos dela foram de encontro uma com a outra, o fogo ardente e a água apaziguadora cara a cara. Kalel sentiu uma onda de vapor atingi-lo quando as duas esferas se uniram, formando algo que ele nunca tinha visto antes: uma nova esfera, agora esverdeada como esmeraldas e com linhas serpenteantes douradas percorrendo sua circunferência. 

Parecia ser feita de uma espécie de líquido que gotejava no chão e derretia a grama, fazendo filetes de fumaça subirem ao ar. Era uma espécie de pasta incandescente que transitava entre sua liquidez e sua solidificação. Soltava um brilho esverdeado e nauseante  que machucava os olhos de falcão de Kalel. Emita um baixo ruído que poderia facilmente ser confundido com os sussurros de uma mulher.

A bruxa virou-se na direção do tronco que escondia homem e fera e arremessou a bola flamejante. Subitamente, Noken saltou para a árvore mais próxima e fincou suas garras em seus galhos. Kalel girou por cima do tronco e desembainhou uma das adagas que mantinha amarrada à panturrilha. Colocou-se em posição de combate contra a mulher. 

Ela o estudou, os olhos verde-água percorreram todo o corpo de Kalel. Uma mínima ruga de expressão desenhou o rosto de traços delicados - mas que transmitiam um ar de ferocidade que agradava Kalel - dela. Estava curiosa.

“Você estava tentando me matar?”, vociferou Kalel. 

A mulher sorriu.

“Ambos sabemos que você não se deixaria atingir por aquilo”, disse. “Só estava mostrando minha ciência quanto a sua presença e de seu feral aqui.” 

Noken desceu da árvore e adentrou a clareira. O caminhar arrogante de suas patas tomava o máximo de cuidado para não encostar na grama chamuscada. 

Kalel virou-se para o tronco atrás dele. Havia ali agora um buraco arredondado que soltava fumaça ao céu, suas bordas brilhavam alaranjadas com as brasas remanescentes. 

“O que foi aquilo?”, perguntou apontando para o tronco destruído. 

“A união entre o fogo e a água resulta em um dos poderes mais primordiais deste mundo”, respondeu. “Eu o chamo de fogo primordial, a chama da Deusa.”

Kalel caminhou pela clareira, seus olhos estavam fixados na relva carbonizada. 

“Por que você se esconde na floresta?”, falou.

“Não vai nem ao menos perguntar o meu nome, corvo?”, ela retrucou. 

Inspirando fundo, Kalel disse: 

“Não irei, bruxa.” 

Um sorriso de canto de boca emoldurou o semblante da mulher. Agradava-lhe a irreverência daquele Vastag.

“Chamo-me Ydaris, Kalel”, anunciou recolhendo o bastão do chão. Não espantava que ela conhecesse seu nome, todos no vale pareciam conhecer. “E treino aqui, vigiada pelas árvores, porque a maioria de minhas irmãs não apoiam minhas práticas.”

O cérebro de Kalel trabalhou, tentando imaginar o porquê daquilo com base nas limitadas informações que tinha das bruxas. Nenhuma das demonstrações de magia das Lilithares tinha realmente soado perigosa ou agressiva. Todos os seus rituais e preces eram focados na adoração a Lilith e na coexistência harmônica com a natureza, não haviam cânticos de guerra ou qualquer incitação a violência. Até agora.

“Você usa sua magia como uma arma”, refletiu ele. Ydaris assentiu. “Por que suas irmãs não a aprovam?”

“Não é o ataque que o Caminho da Lua prega”, Ydaris explicou. “Deveríamos usar nossa magia como uma arma apenas para nossa defesa.”

Kalel não tinha percebido que ainda estava com a adaga na mão. Guardou-a escondida pela calça. 

“Mas você não concorda com elas.”

Ydaris caminhou passos lentos, descrevendo um círculo ao redor de Kalel. Noken emitiu um rosnado baixinho.

“Antes de Melyria chegar aqui, eu era a mais nova das Lilithares”, contou. “Estudei os caminhos de Lilith desde as tradições que remetem aos primórdios desse clã… E acredito que nosso Caminho foi distorcido.”

“Distorcido por quem?”, Kalel quis saber. 

Ydaris engoliu em seco.

“Cyrena”, respondeu. 

Kalel sorriu um sorriso amarelo: 

“Poderia lhe dizer, Ydaris, que não esperava confidências de rebeldia vindas de uma bruxa para alguém como eu.” 

“Não há insurgência em minhas palavras, Kalel de Nakur”, ela falou. O Nakur entregava-lhe o sotaque caleriano tal qual fizera com Antilaj dias atrás. “Respondo à Lilith e a ninguém mais.”

“Nem mesmo à sua Alta Feiticeira?”

A mulher suspirou e parou à frente de Kalel, encarando-o. 

“É meramente um título”, retorquiu. “Não há lei no Templo que garanta qualquer tipo de autoridade à Cyrena… É sua experiência que admiram e que não ousam desafiar.”

“Algumas de suas irmãs possuem rugas que parecem mais experientes que Cyrena”, Kalel respondeu, sarcástico.

“Eu esperava uma percepção maior da natureza mágica de Cyrena vinda de você”, falou Ydaris. Kalel franziu o cenho. “Acredite em mim quando lhe digo que a aparência dela não condiz com sua idade.” 

Há na Alta Feiticeira uma arrogância que só se consegue ao nutrí-lo durante muito tempo, refletiu. E ele é bastante expressivo.

“Quão velha ela é?”, pediu. 

Os dedos de Ydaris dedilharam a faixa púrpura na cintura:

“Pelos meus cálculos… Mais de duzentos anos”, falou.

Um vale magicamente escondido, fogo que surge do nada, águas que flutuam… Não estou tão surpreso com essa revelação quanto deveria.

“E quais seriam os motivos de Cyrena para corromper os ideais do seu Caminho?”, falou Kalel, ignorando o que Ydaris acabara de lhe contar. 

A bruxa suspirou: 

“Caminhem comigo.” 

Os três retiraram-se da clareira e puseram-se a caminhar pela floresta. Ydaris e Kalel iam lado a lado e Noken passeava sorrateiramente alguns metros à frente deles. 

A flora da floresta variava notavelmente de tamanho: as menores árvores não batiam na cintura, competindo por espaço com os arbustos, enquanto as maiores lutavam com o mirante para ver quem encostava nas nuvens primeiro. Tons de verde e marrom se intercalavam com o rosado de alguns líquens que cresciam grudados nos troncos e pedras. O chão descia e subia constantemente, dando uma aparência esburacada ao bosque. 

Pássaros e borboletas das mais diversas cores voavam ao redor deles conforme se embrenhavam mais fundo na floresta que, apesar de não tão densa quanto a que cercava o Antro das Adagas, criava uma atmosfera cada vez mais única e isolada. Tinham visto esquilos e outros pequenos roedores e até mesmo alguns cervos mais nas bordas da mata. 

“Não me interprete errado”, prosseguiu Ydaris. “Cyrena não deseja mal algum a nenhuma de minhas irmãs, nem mesmo a mim… É justamente o oposto que a levou a distorcer nossas tradições.” 

Cyrena deve ser a mais velha entre todas as bruxas daqui, Kalel assumiu. Quão fácil seria manipular todas elas reinventando o passado que só ela viveu.

“Então é o desejo de manter todas vocês a salvo o responsável pelas atitudes dela?”, indagou Kalel. 

Ydaris assentiu e respirou fundo:

“É no que acredito”, falou. “Nos mantendo isoladas neste vale, Cyrena utiliza-se do Caminho da Lua corrompido para garantir a inércia do clã.” 

“Eternamente confinadas aqui… Nenhum mal poderia atingi-las”, entendeu Kalel. 

“Precisamente… Mas não é isso o que o Caminho da Lua realmente dita. A Díade é o movimento, e nós também deveríamos ser. Se seguíssemos nossas tradições originais, estaríamos espalhadas pelo mundo em busca de novas irmãs.” 

“E não teriam que recorrer aos meus serviços, por exemplo”, Kalel inferiu. “Parece-me um desperdício… Seu clã é tão poderoso, mas hesita em ajudar os necessitados fora do vale.” 

“Você nos superestima, Kalel”, Ydaris replicou. “Nossa magia enfraquece a cada nascer do sol e minhas irmãs não mais focam seus esforços nas danças de combate de outrora” 

Os dois calaram-se por breves momentos, digerindo o que tinha sido dito.

“Estou intrigado, Ydaris”, confessou Kalel. “Como você escapou da lavagem cerebral da Alta Feiticeira?”

Ydaris começou a explicar sobre os caminhos da magia aos quais ela fora instruída e como eles facilitavam seu discernimento, mas Kalel não prestou atenção. Tudo o que ela falara nem chegara a adentrar os ouvidos dele. 

Ambos estavam parados na borda entre as árvores e o sopé rochoso das montanhas do sul do vale. Os olhos de Kalel concentraram-se numa formação rochosa estranhamente polida, mas não o bastante para se destacar do resto dos rochedos. Assemelhava-se ao formato de uma porta ou de um alçapão muito grande.

Mas o que realmente roubara-lhe a atenção eram as marcações na rocha que, aparentemente criadas pela erosão e pelo tempo, eram-lhe peculiarmente familiares.

O cérebro de Kalel pôs-se a buscar pela imagem. Memórias nítidas como um dia ensolarado inundaram-no até que ele localiza-se o que estava procurando nos arquivos de sua mente. Encontrou-a. Lembrou-se de uma tarde quente em que ele e Ikram, ainda bastante jovens, treinavam na floresta em Hadbron afastados da Mansão dos Vastag. Passaram o dia escalando árvores e praticando as artes marciais as quais Darius tinha lhes instruído. 

Ao pôr-do-sol, retornaram a um riacho próximo ao Antro para se limparem. Era daí que Kalel lembrava-se daquelas marcações. Era a imagem de Ikram despido entrando na água. As tatuagens nas costas dele… Como se fossem uma esfera em declínio, recordou-se.

E, inesperadamente, aquela esfera em declínio estava marcada na pedra. 

O ruído sutil de um galho se quebrando atrás deles removeu Kalel de suas lembranças. Ele desviou o olhar para a origem do som. Era apenas um coelho. Quando voltou-se para a direção das rochas, não conseguiu mais encontrar as marcações. 

“... e é essa visão mística que me permitiu notar as divergências entre o que Cyrena fala e que o Lilith nos ensinou éons atrás”, os ouvidos de Kalel voltaram a se atentar a voz de Ydaris. 

“Por que você não faz nada a respeito disso?”, Kalel subitamente questionou.

“O que eu poderia fazer?”, resmungou. “Já tentei dissuadir muitas de minhas irmãs das ideias de Cyrena… Todas as minhas tentativas foram em vão e as próximas...” 

“Então saia deste lugar”, interrompeu Kalel. “Há muitas como Melyria fora deste lugar… E você poderia ajudá-las.” 

“Não é tão simples”, Ydaris respondeu. “Renegar o clã seria o mesmo que renegar Lilith. Quanto mais eu me afastasse do Caminho da Lua, menos poderoso seria meu Toque.”

“Ao meu ver, quem se afasta desse Caminho são suas irmãs, não você”, argumentou. “Você me diz que a magia de seu clã enfraquece… Mas a sua não me parece nada fraca.”

Ydaris ficou em silêncio, remoendo as palavras dele. Era inegável que ela estava se afastando mais e mais de suas irmãs e passando boa parte de seu tempo isolada, e mesmo assim seus poderes não tinham diminuído. Ele parece estar certo em tudo que diz… Talvez ele saiba bem mais do que gostaria de nos revelar, refletiu.

Era um dilema com o qual ela estava familiarizada, os livros da biblioteca do Templo chamavam-no de A Impotência dos Poderosos. Poderosa o suficiente para libertar-me das correntes que atrelam os outros, mas não o suficiente para poder fazer algo a respeito. Era uma das sinas mais pesadas que o conhecimento trazia consigo.

“Intriga-me, por outro lado, Ydaris, que você conte a um estrangeiro sobre os conflitos internos de sua gente”, comentou Kalel.

“Somos todos estrangeiros aqui”, argumentou ela. “Não há uma bruxa sequer que não tenha vindo de outro lugar dos Dois Continentes.” 

E você veio da boca dos leões… Direto de Caleria, pensou Kalel. Ydaris não parece compartilhar os mesmos costumes dos outros calerianos, mas sua avidez pelo combate é herdada deles… Devo tomar cuidado com ela, e evitar tocar nos assuntos de sua origem.

“Preciso voltar para o Templo agora, Kalel de Nakur”, a bruxa anunciou. “Há afazeres aos quais sou necessária. Que nossos caminhos se cruzem novamente.” 

Kalel assentiu com a cabeça e assistiu junto a Noken enquanto Ydaris caminhava em direção ao rio. Em direção ao Templo e as bruxas que pareciam ainda mais intrigantes para ele. Esse lugar se mostra cada vez mais suspeito… Se estiver certo, há mais nós dentro de nós aqui do que qualquer um poderia imaginar

A conversa com Cyrena tinha deixado Melyria estranhamente cansada e, livre de suas práticas por algumas horas, decidiu repousar. Voltou para seus aposentos, os mesmos nos quais tinha despertado pela primeira vez, e deitou-se em sua cama. O luminescente abandonou o cômodo para permitir que a escuridão levasse Melyria ao descanso do sono… Livre dos sonhos de outras dimensões. 

Mas não foi o que aconteceu. 

Os sonhos a conduziram a Enor uma vez mais, porém o reino de onde a magia fluía estava diferente. Não estava mais nas Planícies Aráveis, mas numa região montanhosa e obscura. 

Rochas basálticas tremeluziam ao toque da luz que não vinha de lugar nenhum, mas que estava em todos os lugares. Rochedos subiam e desciam para todos os lados que se olhasse, suas formações eram esburacadas e se misturavam uma com as outras, formando enormes deformidades escuras. Crateras fumegantes espalhavam-se pela paisagem.

O céu era uma espiral de nuvens carregadas de tormenta que convergiam num ponto muito acima do cume das montanhas, o único brilho em meio a escuridão. Era como se as auroras boreais do norte tivessem se condensado numa densa esfera de luzes estonteantes. Entretanto, seu brilho era um ponto no horizonte comparado ao breu do mundo e sua fraca luz em nada servia para apaziguar a escuridão que as montanhas carregavam.. 

Os ventos carregavam lascas afiadas de rocha abrasada que eram como pequenos riscos incandescentes rasgando o ar, mas eles não a atingiam. Melyria estava de pé à beira de um cânion cujo abismo não parecia ter fim, havia apenas as mais escuras das trevas abaixo dela. 

E, do outro lado do penhasco, havia algo… Alguém. 

Era um ser disforme, seu corpo parecia um pequeno furacão que esvoaçava contra o vento, estático em seu lugar. Era todo escuro como o basalto a sua volta, mas um contorno esbranquiçado distinguia sua figura do resto do mundo. Era alto, muito alto, talvez tivesse o triplo da altura de Melyria. 

Mas eram seus olhos que chamavam a atenção. Dois globos do mais profundo vermelho, como se fossem feitos de sangue, encaravam-na em meio ao caos. Eram penetrantes como nenhum olhar jamais tinham sido: aqueles olhos arrancavam-lhe a alma do corpo, esmagavam-na com suas garras escarlates e a estraçalhavam com sua força carmesim. Eram a origem do medo, do ódio e da desgraça. 

Sei que estou em Enor, Melyria pensou dentro de seu sonho. Mas esta realidade diferente… É sufocante

As palavras de Cyrena levavam-na a crer que Enor era algo como um organismo temperamental… Estaria então ele furioso? Teria ela feito algo de errado para atrair a ira de uma dimensão inteira? Poderia ser ferida dentro de um sonho? Mas estaria ela mesmo num sonho?

Estava atordoada. Um sentimento de impotência percorreu todo o corpo de Melyria, dominando-a. Parada ali, não conseguia se mover. Queria mais do que tudo escapar do campo de visão daqueles olhos vermelhos, queria acordar… Mas alguma coisa persistia em tentar mantê-la no reino dos sonhos.

Era na escuridão que seus males regressavam. Naquele momento, não eram apenas os olhos vermelhos daquela coisa na frente dela que a congelavam… Mas também as fendas obscuras de um carrasco e os olhos tempestuosos de um sacerdote. 

Nada de bom virá do desespero, tentou se acalmar. Focou-se em si mesma, sentiu o Toque da Deusa despertando em seu interior, envolvendo-a com suas chamas da verdade. Este é meu sonho… E aqui quem dita a lei sou eu.

Os céus se abriram, a condensação das auroras boreais se expandiu para todos os lados num piscar de olhos, destruindo as nuvens de tormenta. O clarão transformara a abóbada celeste numa pintura de cores serpeantes, como o Enor tinha se apresentado anteriormente. 

Eu devo ser a lâmina da deusa

As mãos de Melyria irradiaram o fogo prateado da Lua e a ventania fulgurante cessou. Os monólitos rochosos firmaram-se em seus lugares e pararam de tremeluzir. O cânion à frente dela subiu como se fosse água, fechando o abismo interminável. 

Estendeu a mão esquerda e a figura de olhos vermelhos recuou, assustada com a magia crescente. Tornou-se diminuta, menor do que um grão de arroz. Desapareceu. Mas, antes de deixar Enor, a voz odiosa e desprezível do ser disforme ecoou por todo o lugar, ressoando nas paredes da existência.

“Não confie em Cyrena.”


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Notas finais do capítulo

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