Inquebrável escrita por Danielle Alves


Capítulo 4
Quatro




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Um dia de cada vez, que é pra não perder as boas surpresas da vida. Clarice Lispector

LETÍCIA PADILHA SOLÍS   

— Não mesmo. Não vou vacilar, prometo.

No obscuro canto da minha mente me pergunto como alguém pode prometer algo que não vai cumprir. Fito o rosto dele sem expressar o que realmente penso a seu respeito. Abro um sorriso forçado.

 “Por que está prometendo algo que não pode cumprir?” penso em dizer.

— Puxa, obrigada. – é o que acabo dizendo.

Há uma mistura incessante de sentimentos dentro de mim.

Como deve ser essa situação para seu Fernando? Tendo que fingir amar duas mulheres por conveniência, obrigado a se submeter as nossas vontades. Eu e dona Márcia estamos no mesmo barco, estamos sendo enganadas pelo homem que amamos.

Ao chegarmos no Le Noir, jamais vira um homem ser tão abordado quanto ele. Diversos tipos de mulheres nas classificações 90/60/90 o rodeavam como abutres cercam carniça. Algumas vezes parecera alegre demais para que eu pudesse suportar, mas relevei isso o máximo que pude, afinal, ele não me amava. Porém nada disso fora tão doloroso quanto não ser apresentada aos amigos.

Eu desconsideraria isso caso se limitasse aquelas mulheres, no entanto...

Ele não precisava nem me apresentar como namorada, apenas reconhecer a minha existência. Afinal, antes da relação amorosa, éramos chefe e funcionária. Me ignorou completamente ao reencontrar os velhos amigos apesar de eu ter tomado as rédeas por mim mesma, os cumprimentei como sua assistente com uma alegria forçada.

Ser visto comigo era assim tão absurdo?

Resisto à intensa vontade de chorar

Estou consciente que sou como sua sombra, exatamente como declarou para Márcia quando estávamos em sua casa. A enfatização deste fato, entretanto, me doeu mais do que gostaria.

Não que o culpasse, é claro. Quem gostaria de estar perto de um ser desprezível como eu? Quem em seu bom juízo gostaria de estar acompanhado a uma feia? Ainda mais neste círculo social tão diferente da minha realidade. Eu não me adequava a esse tipo de gente, não me encaixava neste meio. Na verdade, não me encaixava em lugar nenhum. E preferia continuar desse jeito.

Já saímos outras vezes para almoço de negócios, mas nunca um jantar. As coisas são diferentes durante a noite, as pessoas não vinham ao Le Noir a esta hora para trabalhar e sim para socializar e se divertir. Seu Fernando provavelmente considerou que eu destruiria sua reputação de garanhão; só minha existência podia manchar a imagem que construiu de si mesmo ao longo da vida. Mas não é culpa minha, ele quem insistira que eu viesse. Beberiquei o vinho e franzi a testa.

É inútil perguntar a mim mesma porque me mantenho tão atada a este homem. Eu o amo e ponto. Não há mais justificativas senão esta. Mas não desconsidero a possibilidade de ter desenvolvido uma personalidade masoquista. Saber que esse homem lindo está só me usando para o bem da sua empresa não é o suficiente para que eu simplesmente desapareça da sua vida?

A familiar agonia de estar sendo sugada pelo abismo ressurge. Eu deveria ter um pouco mais de amor próprio. As palavras na carta de Omar nunca fizeram tanto sentido.

Eu me odeio o suficiente para me submeter a esse tipo de coisa. Acomodei-me com isso, com os adjetivos ofensivos, com a minha realidade inevitável. Sou apenas alguém que serve como escada para o benefício dos outros.

Acho que estou ficando cada vez mais insana. Talvez eu esteja mesma a beira de um colapso, um surto psicótico talvez? Não me reconheço tem algum tempo.

Forço minha mente a se concentrar em outras coisas quando disparo um olhar ao redor do restaurante. Permaneço quieta e o jantar segue-se harmonioso, meu chefe conversa com os dois homens a nossa frente com casualidade. Estou alheia ao que acontece ao meu redor, mas quando nosso garçom chega, decido que ravioli de espinafre e queijo cottage acompanhado de salada a molho de limão é o suficiente.

Então olho para Cassian.

Quando nos conhecemos eu era indiferente. Digamos que não suportava a ideia de me ferir como aconteceu com Miguel e eu estava no território do inimigo. Em algum momento da vida, quando se nasce com a minha aparência, você aprende a se preservar. Então eu era basicamente uma megera.

Nós esbarrávamos um no outro na biblioteca da faculdade e, de vez em quando, no refeitório. Cassian parecia um enigma para mim – como um homem tão bonito podia tão prontamente me cumprimentar sem me ofender? Ele era estranho.

Conjecturei que poderia ser mais uma trama de “Miguel e Romeo” se repetindo na minha vida, por isso recusei-me a deixa-lo ultrapassar minhas barreiras. Mas fui me acostumando e ao observá-lo discretamente, com o tempo percebi que era seu jeito. Ele só não fazia acepção de pessoas. No entanto ele me provou que era totalmente diferente dos outros quando decidiu ir ao meu favor. Lembro como se fosse hoje, as palavras que saíram da boca dele naquele dia me fizeram entender que eu precisava sair da caixa – nem todos eram como Miguel, afinal.

Vocês se acham melhores do que ela, mas tudo que eu vejo, é um amontoado de merda.” Declarou ele após surrá-los.

Então, ficamos amigos. Logicamente mais tardar nos formamos, tínhamos tudo para manter nossa amizade, mas Cassian viajou para outro país sabe-se lá porque e eu decidi fazer pós-graduação. Quem diria que após cinco anos iríamos nos reencontrar? De certa forma, devo uma a ele.

Ele me encara de volta com um sorriso.

Não percebo interesse romântico na sua feição apesar de sua análise descarada. Ergo a sobrancelha e exploro seu rosto.

Cassian é um homem ridiculamente bonito, do tipo que mexe facilmente com a imaginação feminina. Uma covinha aparece na bochecha esquerda sempre que sorri, salientando seu charme. Seu cabelo era escuro como o meu e estavam na altura de seus ombros, suavemente ondulados, presos atrás da orelha. Ele estava com alguns piercings na orelha esquerda, e usava brincos nas duas. Seus olhos eram azuis, tão ou mais claros quanto o céu azul. O meu amigo de faculdade me fitava com um sorrisinho arrogante e divertido. Um pouco constrangida, percebo que se diverte com a minha inspeção ousada.

“Gosta do que vê?” Li seus lábios e torci o rosto. Pensei em lhe responder, mas não acho que seria inteligente fazê-lo na frente do seu Fernando. Não dá pra explicar, depois que o abracei na frente dele, senti-me tímida demais para poder começar um diálogo decente com meu velho amigo. Mesmo que estivesse feliz por reencontrá-lo.

“Não vai responder?” Leio seus lábios novamente e mordo o meu próprio. Com um sorriso se esticando no meu rosto, evito contato visual desviando o olhar, ciente que o dele está sobre mim. Meio inquieta, tento escutar a conversa casual que há entre Seu Fernando e Christopher – um jogador de futebol até então famoso havia se ferido – mas desisto no meio do caminho.

Quando fito Cassain novamente, ele pisca.

“Para com isso.” Movo os meus lábios discretamente.

Nós aprendemos a fazer leitura de lábios quando queríamos dizer algo que não podíamos na frente de outras pessoas na faculdade.

“Senti sua falta, você foi uma grande amiga.”

“Idem.”

Então abaixo o olhar. Sinto seu Fernando passar o braço por trás da cadeira e afagar meu braço. Arqueei suavemente o olhar, mas ele parecia relaxado e entretido enquanto conversava com Christopher. Era estranho que um jantar de negócios rapidamente tornou-se um jantar de amigos, porém eu confesso que estava feliz por ele. Quanto mais rápido a Conceitos se erguesse, mais fácil seria a minha saída. Mordo o lábio inferior ao sentir aquela agonia familiar e novamente olho para Cassian. Ele está com um olhar inquisidor e eu faço uma careta.

“O quê?”

Meu amigo de faculdade desce a visão para mão do seu Fernando no meu braço e depois pro meu rosto. Eu levanto os ombros.

“Não se meta.”

É claro que esse bisbilhoteiro percebeu.

Após um longo tempo, decidimos que é hora de ir embora. Ao me levantar, me aprumar e me despedir de Christopher, Cassian tocou meu braço suavemente.

— Letícia, antes de você ir, posso falar com você?

Assinto com um sorriso fraco.

— Claro.

Pela visão periférica, vejo Christopher se adiantar.

— Estarei no carro, não demore. – Após isso, ele seguiu para a saída.

Seu Fernando, no entanto, passou o braço ao redor do meu ombro.

— O que você quer falar à Lety? – pergunta a Cassian.

Estreitei meus olhos na direção dele. Vi como foi difícil para Cassian esboçar um sorriso agradável ao dizer.

— Fernando, por favor, é algo que diz respeito a ela.

— Não sei. – Replicou simplesmente.

Eles dois se encararam com uma tensão que eu não me apercebi antes. Com medo de disputarem quem mija mais longe – bastava tê-lo visto bater no Tomás – eu toco carinhosamente no braço de meu chefe. Seu Fernando se virou para mim com a expressão repentinamente suave. Pisco para ele.

— Seu Fernando, por favor, me espere lá fora.

Senti Cassian me avaliar, mas ignorei-o.

Seu Fernando examina meu rosto por um momento e por fim assente.

— Está bem, Lety. – Seu Fernando me lançou um último olhar preocupado e voltou-se para Cassian. – Boa noite, Cassiano.

— É Cassian. — declarou o lindo rapaz de olhos claros.

— Dá no mesmo.

Quando ele saiu, Cassian indicou que eu sentasse e assim o fiz. Curiosa, fitei seu rosto quando repetiu meu gesto, se ajeitando de frente para mim. Nós nos encaramos por uns segundos, até que ele soltou uma risada.

— Quanto tempo, não é?

Sorrio.

— Eu que o diga. Então, o que quer de mim?

Ele pousou os braços na mesa e se inclinou. Cassian abriu a boca uma vez e depois a fechou, provavelmente procurando as palavras certas. Remexi na cadeira, desconfortável. Eu esperava que ele não citasse absolutamente nada do que percebera ou supôs.

— E então? – insisti.

— Você... Está bem?

Levo dois segundos para assimilar.

— É claro que sim. Eu pareço mal?

— Terrivelmente.

Estreito a testa.

— Deve ser impressão sua.

Cassian fitou os meus olhos e soltou um suspiro. Após mais um momento, ele esticou os lábios num sorriso.

— Está bem, desculpe. – Ele se recostou na mesa. Dispenso as desculpas dele com um aceno. – Posso, pelo menos, te chamar para sair? Se você não tiver namorado, é claro.

Eu dou risada e nego com a cabeça.

— Você não tem namorado, né...? – me pergunta novamente.

Penso no meu relacionamento com seu Fernando.

— Não. Quero dizer, não sei se é bem um namoro...

Ele fez uma careta de brincadeira.

— Droga. Então não tenho chances?

— Posso abrir uma exceção para você, se quiser, - brinco com um sorriso.

— Puxa, eu me sentiria lisonjeado. – Ele esboça uma expressão de gratidão fingida.

Solto uma risada.

— Estou falando sério agora, - continua ele após um momento em silêncio. – Podemos sair? Como nos velhos tempos... Quando conversávamos sobre Marvel e DC. Como amigos.

Pondero por um momento. O que aquilo poderia significar para seu Fernando? Aspiro e repenso: o que aquilo poderia significar para mim? É claro que seria ótimo ter uma companhia para me distrair de vez em quando, um amigo para poder compartilhar de momentos bacanas.

Hesitante, decido que talvez não há problema algum.

— Claro, por que não?


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