Mirtilo escrita por OmegaKim


Capítulo 52
Extra - O garoto morto




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O treino havia sido longo naquele começo de verão. O sol os castigara mais que o necessário, Lu Han conseguia notar isso pela forma como o rosto inteiro de Henry manchava-se de vermelho. Os braços e ombros e coxas estavam marcados, levemente avermelhados onde o sol tocara por demasiado tempo, sabia disso porque encontrava as mesmas manchas em si. Jongin parecia melhor do que os dois, quando sua pele naturalmente mais bronzeada apenas se tornara um tanto mais escura.

Deveriam ter usado protetor solar, Han pensou ao mesmo tempo que passavam pela porta de entrada da casa. Avistou as costas do seu pai adotivo na cozinha, quando passou por ali afim de chegar até seu quarto. Henry foi até o mais velho enquanto Lu Han apenas continuava o trajeto com Jongin no seu encalço. O mais novo dos irmãos nunca o deixava por bastante tempo, sempre estava na sua cola como um filhotinho, coisa que ele não era há bastante tempo. Mas Lu Han não o recriminava por conta disso, gostava ter o irmão perto além de compartilhar do mesmo medo de abandono que ele.

Haviam crescido juntos no Orfanato, com Han como aquele que praticamente criara Jongin. E tinham sido adotados juntos também pois ambos carregavam o sangue Lu nas veias apesar de não serem irmãos realmente. Tudo que Lu Han sabia sobre Jongin, era apenas que o ômega fora abandonado na porta do lugar, numa caixa de sapatos. Sem bilhete algum, sem identificação, sem remorso.

— Vamos tomar um banho antes do almoço. — virou o rosto por sobre o ombro para fitar Jongin.

No auge dos seus catorze anos, o mais novo dos Lu’s daquela casa, estava se tornando cada vez mais alto, fazendo Lu Han imaginar que logo o passaria assim como deveria passar Henry também e quem sabe, o pai adotivo. Fazia o ômega chegar à conclusão de que Jongin poderia ser um alfa e como ainda não tinha tido um cio, realmente acreditou nisso apesar das chances serem pequenas demais.

No Clã Lu não haviam alfas. A grande parcela de lobos que sustentavam o sobrenome Lu eram ômegas e betas, sendo esses primeiros os que constituíam mais da metade do clã. Isso era culpa da Grande Guerra, aquela que provavelmente matou os seus pais e destruiu outros clãs como os Lee’s e os Huang’s, e deixou os Lu’s somente com ômegas e betas para continuar a linhagem.

Jongin assentiu na sua direção e continuou o seguindo, dessa vez ergueu a mão e segurou na barra da sua camisa, como se eles estivessem no meio de uma multidão e o mais novo quisesse não se perder. O ato fez Lu Han sorrir. E sorriu ainda mais quando terminaram os dois embaixo do chuveiro, brincando com a espuma do shampoo e falando sobre qualquer outra baboseira do dia.

Eles vestiram-se depois de se enxugar e então, estavam prontos para ir até o pai adotivo e almoçar. No entanto, quando Lu Han parou em frente a sua cômoda, pronto para abrir a primeira gaveta e tirar uma camisa limpa, encontrou uma carta ali. Perfeitamente alinhada sobre a madeira, perto dos seus CD’s e em frente ao ursinho de pelúcia que Jongin lhe presenteara no seu aniversário do ano passado. Piscou para aquilo, confuso. Não fazia nenhum sentido receber cartas quando não tinha nenhum pretendente ou mesmo remetente em qualquer lugar. No entanto, a carta estava ali.

— Lugie? — Jongin chamou e Lu Han piscou mais um pouco em direção a carta.

Acabou esquecendo de pegar a camisa, voltou a mão para aquilo. Pegou a carta, avaliou-a aos pouquinhos no mesmo momento em que Jongin ia até si, parava do seu lado e fitava o que tinha em mãos, tão curioso quanto si próprio.

Aquela foi a primeira carta que recebeu da Organização. Não sabia na época o que significava realmente, apesar das parabenizações do seu pai adotivo e do olhar admirado de Henry na sua direção. Lu Han não entendia também porque os outros ômegas da alcateia, todos na mesma faixa etária que si, haviam recebido cartas iguais. O mesmo convite feito a tantos ômegas com mesmo selo adornando o papel, a mesma felicidade no olhar dos pais.

Não houve muita escolha apesar das palavras doces escritas naquele papel. Também não houve nenhum tipo de recusa da parte de Lu Han, apesar de toda a insegurança, afinal não era bobo. Conhecia bem as regras daquele jogo.

— Então, você vai embora? — Jongin lhe sussurrou em uma madrugada qualquer antes que Lu Han dissesse a confirmação em voz alta para o pai de Henry.

— Eu não tenho escolha, Nini. — respondeu no mesmo tom sussurrado e Jongin calou-se, porque entendia.

Eles haviam vindo do mesmo lugar, haviam sido resgatados com a promessa de uma vida melhor, com a promessa de ter uma família e isso havia se cumprido por quase dez anos. Jongin estava feliz morando ali, tendo mais um irmão e um pai, sendo cuidado e amado e tendo Lu Han do seu lado. No entanto, a dívida estava sendo cobrada agora, chegara em forma de carta para o mais velho e agora, o estava levando para longe de si. Pensar nesse tipo de coisa fazia seu coração doer. Nunca havia se separado de Lu Han até aquele momento, o momento em que não sabia se ele voltaria algum dia.

Seu pai tinha lhe contado sobre a Organização. Era formado por ômegas, que eram escolhidos ainda na adolescência para receber um treinamento altamente especializado, transformando-os em perfeitos espécimes letais. Mais inteligentes e fortes que qualquer alfa, seu pai lhe disse com admiração.

Seu pai também era um ômega da Organização e parecia normal ser um deles, com suas missões secretas, seus segredos e toda uma glória sombria que nenhum dos irmãos Lu’s pareciam querer carregar nas costas. Contudo, Lu Han decidiu carregar mesmo assim, pois sabia melhor do que ninguém que se não fosse ele, seria Jongin e Jongin... o pobre e medroso Jongin. Não merecia isso, não merecia nada além de um futuro tranquilo.

Foi por isso, que o ômega arrumou suas malas no fim daquele verão e foi em busca de toda a glória que a Organização prometia.

***

A Academia não ficava em Paris, como o pai dissera. Ficava em outra cidade francesa, um lugar que não podia ser pronunciado em voz alta, mas o nome reverberava na sua mente o tempo inteiro como um mantra e de alguma forma lhe dava alguma segurança.

Lyon.

Lyon.

Lyon.

Lyon.

A primeira noite não foi ruim como esperava, também não foi tranquila. Demorou para pegar no sono, ficou em silêncio enquanto escutava alguns ômegas da sua alcateia conversando sobre o torneio que os elegeria líder dos lobos Lu’s. Todos que estavam ali participariam, sem chance para voltar atrás. Lu Han estava inscrito, como representante da sua família. Seria treinado junto dos outros Lu’s para ser um líder e quando eles tivessem idade suficiente, lutariam até a morte pelo trono, afinal o lobo mais forte é capaz de proteger a alcateia inteira além de si mesmo. Mas ele duvidava que metade daquela turma conseguisse chegar até o fim do treinamento assim como duvidava de si próprio.

Isso ficou confirmado com o passar dos dias, quando o treinamento teve início, mostrando para si que nada vinha de graça. Eles tinham aulas normais de história, matemática, línguas estrangeiras e entre outras, mas também aprendiam como manusear armas de fogo ou branca, a lutar, aulas de raciocínio lógico, aulas de sobrevivência... Não eram raras as vezes em que Lu Han terminava sozinho, na madrugada cuidando de algum ferimento por conta da intensidade com que as aulas aconteciam. Mas o ômega aprendera a suportar. Todas as noites, os dias, as horas ele aprendera a suportar, a nunca desviar sua atenção do objetivo principal da sua vida: queria voltar para casa.

O problema era que só havia um jeito de voltar para casa, um caminho nenhum pouco bonito. Lu Han teria que se tornar o líder da Alcateia. Precisaria provar para qualquer um o quanto era forte e digno e confiável. Contudo, todos os outros ômegas da sua turma estavam na mesma situação que a sua. Ninguém queria voltar como um fracassado ou morrer durante a luta final. No fim, todos não passavam de adolescentes ômegas querendo voltar para casa.

No entanto, com o passar dos meses ali, Lu Han notou que havia outra forma de sair da Academia, sair do treinamento sem precisar morrer. Percebeu de um jeito sutil como os melhores alunos sempre eram conduzidos até a sala da diretoria, ficavam horas em uma conversa, que, as vezes, resultava na volta do ômega para o dormitório e as vezes, não resultava em ninguém voltando. Ficou curioso com aquilo, mas não tinha amigos naquela escola para dividir seus pensamentos.

Então, terminava escrevendo cartas a Henry, contando suas dúvidas, expondo seus medos e deixando o irmão saber sobre o que tanto lhe incomodava ali. Em uma das cartas, o irmão sugeriu que escrevesse algo ao pai, que contasse a ele suas dúvidas, afinal se havia alguém que podia lhe ajudar era o ômega mais velho quando este já estivera ali, no lugar de Lu Han há tanto tempo. Contudo, não escreveu. Não queria preocupar o outro, muito menos dar indícios de que sua escolha de adota-lo fora péssima ou que era um ômega fraco.

Han nunca seria fraco, nem em um milhão de anos. Foi por isso que ele determinou-se a ser o primeiro da turma. Tornaria-se o melhor de todos e então, descobriria sobre o que acontecia naquela sala. Porém, não foi fácil.

O treinamento era difícil, desumano, doloroso e por vezes, o fazia desmaiar de cansaço entre uma aula e outra. Ele via outros ômegas na mesma situação que sua, indo cada vez mais para o fim do ranking, os mais propensos a serem dispensados. Os mais propensos a morrer.

— Erga os braços. — a instrutora bateu nos seus cotovelos com uma régua de madeira, forte o suficiente para que Lu Han rangesse os dentes embaixo daquela chuva.

Os seus colegas de classe ao seu lado, estavam do mesmo jeito. O corpo tremendo, os braços erguidos e o corpo encharcado enquanto a instrutora ficava à sua frente, uma régua de madeira na mão e uma expressão firme embaixo da aba do seu chapéu.

Havia água por todo canto, o ômega percebia. Tanta, que sua visão se tornava embaçada, mas não podia abaixar a cabeça, mesmo que seu corpo estivesse tremendo tanto que não tinha mais certeza de quanto tempo aguentaria. Notou alguém atrás da instrutora, parecia segurar algum tipo de relógio, embaixo daquela chuva toda, não conseguia ter certeza da identidade do objeto.

— Jackson! — a mulher gritou. — Braços para cima!

Lu Han tentou firmar os próprios braços, fazendo de conta que a ordem viera para si mas só sentiu os joelhos falharem.

— Vocês são uma vergonha para os Lu’s! — a mulher continuou. — São ômegas fracos que nem mesmo servem para a Organização.

Os braços vacilaram, mas a régua no seu cotovelo, o fez levanta-los novamente. Não sentia mais os dedos dos pés e muito menos os das mãos, sentia apenas os espasmos de frio. Mordeu os lábios para tentar mantê-los no lugar, mas os dentes batiam tanto que só conseguiu se machucar no processo. Sentiu o gosto de sangue na boca e bem podia imaginar o tamanho da ferida que tinha aberto, apesar de não sentir coisa alguma. E foi por não sentir coisa alguma que sentiu os joelhos vacilarem e acabou caindo no chão.

A instrutora se aproximou e tentou fazê-lo ficar de pé novamente, mas estava com tanto frio e tremendo na mesma proporção que não conseguiu e por isso, acabou sendo retirado dali. Mais um fracasso pra lista, pensou enquanto desmaiava na enfermaria.

Dormiu por três dias.

Na manhã do seu quarto dia, acordou com o barulho de alguém mastigando perto de si. Abriu os olhos devagar ao mesmo tempo que a testa se enrugava, escutou uma risada, ergueu a mão e coçou os olhos. Então, estava conseguindo enxergar. Havia alguém sentado na cama ao lado da sua, comendo uma maçã do jeito mais barulhento possível.

— Quem... quem é você? — a voz queimou em sua garganta, a falta de uso demonstrada na rouquidão.

— Jackson. — respondeu simplesmente. — Estive esperando você acordar durante todo esse tempo.

— Que tempo? — a voz continuava num tom estranho e Lu Han ainda se sentia sonolento, um tanto dolorido e com um pouco de fome.

Jackson comeu mais um pouco da sua maçã e fitou-o, os olhos eram escuros. Bonitos do mesmo jeito que o seu cabelo. Preto lustroso, Lu Han nomeou em seu pensamento.

— Você dormiu por 3 dias, princesa. — contou e o ômega arregalou os olhos, apenas para ter Jackson rindo mais um pouco. — Está tudo bem. — tentou o tranquilizar quando percebeu-o levantando da cama. — Ninguém vai te expulsar da Organização.

Lu Han piscou na sua direção, estava confuso com toda aquela conversa.

— Por que está aqui? — resolveu perguntar.

— Eu vim te ajudar. — disse simplesmente.

— O que? No que? — sentou-se na cama, jogou o lençol que o cobria para longe.

Jackson continuava na mesma posição, terminou de comer o resto da maçã.

— A ser o líder da alcateia. — respondeu calmo, deixando os restos da maçã sobre o criado mudo ali perto. Lu Han continuava confusão. — Vamos nos ajudar, sim? Eu preciso ser o líder do Clã na China e você, pode ser o líder na América do Sul. — o ômega ficou em silêncio e Jackson pareceu se tornar impaciente diante dos seus olhos. — Escuta, quer voltar para casa, não quer?

— Eu...

— Quer voltar vivo, não é? — continuou e Lu Han engoliu em seco.

Claro que queria. Era no que mais pensava todos os dias. Queria a companhia dos seus irmãos novamente, queria a presença do pai adotivo, do seu cheiro familiar de canela, do gosto da sua comida, dos dias na alcateia. Queria a segurança do seu lar. Mas não era idiota. Do jeito como estava se saindo cada vez pior nos testes, não duraria muito. Parecia só uma questão de tempo até que fosse dispensado e tivesse seu nome na lista dos mortos.

— Só tem um jeito de sair daqui. — Jackson apoiou os cotovelos nos joelhos e inclinou-se em direção ao outro. — Sabe disso.

Sabia.

E sabia também da promessa que tinha feito a Jongin, de encontra-lo no final do ano, para construírem bonecos de neve e comerem panquecas no ano-novo.

— Se eu disser sim, como acha que vamos sair da lista dos mortos e nos tornamos líderes?

Jackson sorriu diante daquilo.

— Apenas diga que aceita.

Lu Han assentiu.

— Ótimo. — ficou de pé e começou a se afastar.

O outro abriu a boca para chama-lo, ocorreu-lhe naquele momento que Jackson poderia muito bem ir atrás de qualquer outro ômega e propor aquilo, em vez de ir atrás de si, que não tinha tanto talento para aquilo.

— Jackson! — se escutou chamar numa urgência que o ômega achou engraçada, pois estava sorrindo quando se viu. Uma das mãos estava na maçaneta da porta, pronto para sair. — Por que eu?

O outro Lu pareceu pensar por um momento, os lábios inclinaram-se de um jeito diferente e Lu Han percebeu que ele sorria bastante, como se achasse graça de tudo. Mas não era verdade, porque não via o sorriso refletido nos seus olhos escuros.

— Ora, porque você é o único que não quer isso.


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