Mirtilo escrita por OmegaKim


Capítulo 44
Extra - Detalhes de nós dois




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O garoto encarou o rosto dos adultos sentados ao seu lado na carroceria da caminhonete, suas mãos estavam agarradas à grade da carroça. Os adultos pareciam não se importar com o cheiro de fezes de galinhas ou o cheiro de feno, que aquele humano, o dono da caminhonete, trazia ali. E Donghae tentou não se importar também, afinal, não tinha mais nada além daquela carona para a cidade.

A guerra tinha levado sua família e mais da metade da sua alcateia. Tantos ômegas quanto alfas tinham lutado sob as crendices de um líder insano. Aquele alfa os havia guiado em direção à um massacre quando se ergueu contra os Byun’s ao tentar conquistar seu território e mesmo que tivesse tido a ajuda dos Lu’s, nenhum dos dois estava pronto para a resistência disfarçada de inteligência que a alcateia de lobos brancos tinha.

Os Kim’s não tinham movido um dedo em favor de ninguém nessa briga e seguindo o seu exemplo, os Oh’s permaneceram quietos apesar de terem vendido armamentos para os Lu’s e Lee’s, mas os Park’s tinham oferecido ajuda aos Byun’s, coisa que Donghae achara terrivelmente estranho. Quando comentara sobre isso com sua mãe, ela só lhe dissera que os Park’s tinham seus próprios interesses. Mas até o momento em que eles foram dizimados, Donghae não era capaz de ver qual o interesse deles.

Havia interesse comercial no território Lee e interesse sexual nos ômegas Lu’s e Lee’s. Com os alfas, betas e maioria dos ômegas mortos na guerra, não sobrara mais do que crianças e adolescentes sem um cio, idosos e doentes, alguns lobos gestantes em sua alcateia. Os Lu’s pareciam ter tido mais sorte, quando apenas alfas e betas haviam sido autorizados a lutar na guerra, fazendo com que os que sobrassem fossem ômegas.

Donghae soubera pela boca dos mais velhos, que eles tinham fugido. Embrenhado-se no mundo, todos os ômegas e crianças e idosos, e quem tivesse sangue Lu. Todos simplesmente fugindo dos lobos Park’s, do mesmo modo que ele estava fazendo.

Os Lee’s remanescentes haviam se organizado em grupos depois que não conseguiram entrar em um consenso sobre para onde ir, antes que tudo que tivessem fosse saqueado. Soube que alguns tinham ido pedir abrigo entre os Kim’s e Oh’s, que outros haviam ido viver entre os humanos e que outros, haviam ficado, decididos a não abandonar suas casas assim. Mas, ele, com seus 14 anos e sem um cio, havia implorado para ir com aqueles adultos betas, simplesmente porque sabia que a chegada dos Park’s no seu território não ia ser boa para si, tinha medo que algo ruim lhe acontecesse, não queria ser machucado e havia escutado conversas o suficiente dos anciãos, para saber o que acontecia com os novinhos e bonitinhos como ele, ainda mais se fossem ômegas.

Os betas tinham concordado em leva-lo, depois de garantir mil vezes que era um beta também, mas a verdade era que Donghae não tinha certeza. Estava na idade certa para ter um cio, contudo nada viera e para todos os dias que passava, só conseguia ficar mais apreensivo diante de um possível cio, simplesmente porque sabia que os adultos o abandonariam, afinal, ninguém queria correr o risco de um humano os descobrir. A falta de cheiro e cio dos betas contribuía para que conseguissem se infiltrar na sociedade humana sem problemas, mas para um ômega isso era quase impossível, não só por causa do cheiro adocicado, mas sim por causa dos hormônios. Ômegas eram mais sensíveis as mudanças da lua, seu humor era terrivelmente afetado e a chegada do cio com toda certeza faria os humanos desconfiarem de algo.

Olhou pelas frestas da grade, que cobria a carroceria, observou o modo como sua alcateia ficava cada vez mais para trás. Donghae com toda certeza sentiria falta dali, da sua cama, do cheiro da sua casa, da risada dos seus pais. Encostou a testa ali e fechou os olhos, procurando todas as lembranças boas que tinha e as guardando bem fundo em si enquanto dizia adeus.

Não percebeu que tinha adormecido até o momento em que sentiu ser sacudido por um dos betas do seu grupo. Abriu os olhos assustado, empurrando-o e quase rosnando na sua direção. Odiava que o tocassem assim e para bem da verdade, não confiava realmente naquele grupo de betas, apesar de precisar deles para ficar seguro. Mas era como sua mãe dizia: Sempre mantenha dois passos atrás, não confie em ninguém. Estamos em tempos difíceis, Docinho.

— Chegamos. — o homem disse. — Apresse-se.

Donghae esperou que ele descesse da carroceria para começar a se movimentar, puxou a manga da sua jaqueta e segurou nas alças da sua mochila antes de começar a se afastar dali, para descer da caminhonete. Eles haviam chegado na cidade, provou o que o homem havia dito. Apertou com mais força a alça da mochila quando notou o beta líder do seu grupo falando com o motorista humano, lhe pagando pela carona e agradecendo pela discrição e então, eles estavam caminhando cada vez mais para dentro da maravilhosa Seul.

O garoto lembrava-se de ter ido ali algumas vezes, ajudar o pai a vender os artesanatos que sua mãe fabricava. Eles viviam praticamente disso, além da horta atrás da casa de madeira. Agora, Donghae não tinha mais nada além das roupas na mochila e de alguns wons, que pegara da caixa de emergência que sua mãe guardava no fundo falso embaixo da sua cama.

— Para onde estamos indo? — perguntou para ninguém em especial.

Os betas não o olharam, continuaram andando em silêncio. Donghae suspirou com a forma como estava sendo ignorado, mas devia ter se acostumado, afinal aqueles lobos não ligavam muito pra sua presença. Se limitou a segui-los pelas ruas, até o momento em que os viu parando em um parque. Eles eram cinco, no total. Três homens, uma mulher e ele, todos Lee’s, sem casa, sem família e com o estômago roncando de fome.

A mulher mexeu em sua bolsa, depois que Donghae sentou-se na grama, ao lado do banco de concreto onde os outros betas estavam. Ela estendeu na sua direção um pacote de biscoitos pela metade, meio sorrindo por trás das mexas bagunçadas do seu cabelo castanho. Donghae a achava bonita, com todas aquelas sardas em volta do nariz e nas têmporas e também por todo o sorriso doce, que ela sempre lhe oferecia.

O Lee pegou o pacote e comeu um pouco antes de estender para os outros betas, acreditava que aquilo deveria ser o almoço e quem sabe a mulher tivesse mais um daqueles para o jantar.

— Vamos ficar por aqui hoje. — o homem mais alto do grupo, o líder deles, ditou.

Donghae o encarou de baixo, a barba por fazer e os olhos duros de tristeza faziam-no querer se afastar, porque não havia nada pior no mundo do que alguém que não tinha nada, pois significava que podia fazer tudo. Mas, naquele momento, Donghae apenas obedeceu. Ficou de pé e seguiu os outros betas, quando eles começaram a se afastar mais para dentro do parque.

Juntou-se a eles na hora de estender um lençol sobre a grama, eles dormiriam juntos naquela noite, afim de conseguirem se aquecer. Donghae se aconchegou na ponta da cama improvisada, uma das pernas tocando na grama. Não tirou os tênis e muito menos trocou de roupa, preferia o jeans grosso da calça e da jaqueta do que o algodão do seu pijama. Abraçou a sua mochila naquela noite e dormiu sob as estrelas daquele inverno.

As outras noites depois daquela, seguiram o mesmo padrão: noites de descanso ao ar livre depois de um dia inteiro perambulando pela cidade, atrás de comida, de dinheiro, de um lugar para começar. Os betas homens do seu grupo pareciam ficar mais inquietos a medida que eles não eram capazes de encontrar nada além daquele parque e lugares nas calçadas de grandes prédios e Donghae compartilhava da mesma frustração, ainda mais quando seus mantimentos e dinheiro parecia cada vez mais ralo. Ele até mesmo havia entregado o dinheiro que trouxera de casa para o líder do grupo, tentando colaborar e talvez, ganhar alguma confiança.

Mas a confiança não veio do jeito que esperava, porque quase três meses que eles tinham saindo do território Lee, o garoto começava a aprender a fazer pequenos furtos para ajudar seus companheiros. Dava um nervoso danado, no começo, mas tudo começou a ficar natural depois que completaram cinco meses vivendo nas ruas. Cinco meses de uma incerteza constante.

Eles não conseguiam encontrar uma casa. Nenhuma pensão os levava a sério, nenhum humano parecia confiar naqueles cinco lobos de sangue Lee. E isso deixava Donghae desesperado, porque conseguia perceber o modo como os homens betas parecia se tornar cada vez mais inquietos, não só com ele que era só um adolescente mas também com a mulher beta que os acompanhava.

Donghae os tinha visto encurralando a mulher, obrigando-a colaborar com eles. Por vezes, a acompanhava na madrugada, ficava parado na esquina onde ela se prostituía para conseguir um prato de comida. Ele também era obrigado à isso, mas odiava a ideia de humanos tocando-lhe o corpo em troca de comida, por isso fugia das investidas sempre que podia e terminava o dia sempre com alguma parte do corpo brilhando em roxo, a estampa da raiva dos seus companheiros.

Viu também, os outros homens betas do seu grupo se prostituindo, parados na esquina, um tanto envergonhados e um tanto solitários, com o estômago vazio de esperança. Mas o líder deles, nunca o fazia. Era o que menos se esforçava, no fim das contas. Aquele homem costumava apenas mandar, com o rosto sempre muito sério, as sobrancelhas juntas, teria sido bonito em outra época, talvez até charmoso, contudo, para Donghae só restava sentir medo dele simplesmente porque a cada dia que passava, este parecia cada vez mais certo sobre a real classificação do Lee mais novo.

Ser um ômega não era exatamente ruim, Donghae sabia. Sua mãe tinha sido uma ômega, das bonitas, por sinal. Seu pai estava com frequência contando a forma como tinha duelado com alfas para ganhar a mão dela, do jeito como dizia a tradição. Era preciso lutar por seu amor, transformar esse sentimento em combustível e ganhar, no final. Seu pai era um beta, sua mãe era uma ômega... a conta não era difícil de fazer, no fim das contas. Afinal, era pedir demais que ele fosse um beta ou um alfa, todas as pistas apontavam para a última classificação, pois era assim que acontecia: casais betas-ômegas tinham crianças ômegas em quase 100% dos casos. Mas Donghae nunca quis tanto fazer parte daquele quase como queria naquele fim de inverno.

***

Siwon observou a porta se fechando à sua frente, o som da madeira contra o batente alcançando aquela oitava que ele tinha aprendido a odiar. Engoliu em seco enquanto as mãos se fechavam em punho, sentia vontade de avançar naquela porta e bater, bater, bater, bater... até derruba-la, ou até fazer Jihyun olhar em seus olhos, até receber ao menos alguns segundos de atenção, porque toda aquela indiferença o enchia de ódio. Se o seu pai o encontrasse ali, encarando aquela porta enquanto uma flor inteira se derramava em pétalas bem aos seus pés, com toda certeza riria da sua cara antes de lhe dar um conselho de homem para homem, de alfa para alfa.

Quase até podia escutar a voz do mais velho, os lábios ressecados de tantos anos pregando o que aprendera com seu pai, o bisavô de Siwon. Tem que segura-la com força, trazer flores para ela só te tornara patético. Jihyun é uma ômega sangue puro e como tal, precisa ser domada. Mas domar significava forçar, segurar, mandar, gritar, usar a força... e Siwon não queria fazer nada daquilo, principalmente com Park Jihyun, que era pequena e graciosa como um passarinho e como tal, estava presa em uma gaiola, a Alcateia Byun.

O Byun queria poder liberta-la, quando nem mesmo ele havia pedido por aquele casamento, mas não havia divórcio entre os lobos e mesmo que houvesse, seu pai nunca aceitaria, pois havia feito uma jogada muito arriscada para ter aquela Park de sangue puro junto do seu único filho, perdera a possibilidade de ter uma aliança com os Kim’s e colocara Siwon em uma posição arriscada, quando seus melhores amigos eram Kim’s. Mas tudo que Siwon precisava fazer era ter filhos com aquela garota de quinze anos, então seu filhote poderia casar com algum Kim e a aliança estaria feita. Park’s, Kim’s e Byun’s, o grupo mais improvável entre as alcateias, a trindade mais divergente de todas. Fazia Byun Siwon querer rir da audácia do seu pai.

Encarou as pétalas da tulipa vermelha que trouxera para Jihyun, colhida diretamente do jardim da sua mãe, toda espalhada aos seus pés, o talo quebrado, a beleza despedaçada. As mãos voltaram a se abrir, respirou fundo, empurrou toda a raiva pela rejeição recebida para bem fundo de si e então deu as costas àquela porta. Desceu para o jantar, um tanto atrasado, o que lhe trouxe um olhar azedo do pai, que já comia. Começou a se servir, eram só os dois na mesa. A mãe de Siwon já havia falecido e o pai nunca deu sinal de que procuraria outra esposa e Siwon achava bom, pois não saberia o que fazer diante de outra mulher ao lado seu pai, vagando por aquela casa do mesmo modo que sua mãe fez.

— Onde está sua esposa? — o pai perguntou, o canto da boca estava sujo de molho, mas Siwon não viu, estava começando a se irritar com a forma como o pai fazia questão de nunca se referir a Park com nada além de sua esposa.

— Está sem fome. — disse simplesmente, aproveitando para encher a boca de comida no minuto seguinte afim evitar qualquer diálogo com o alfa.

— Ah, Siwon... — o pai resmungou mesmo assim. — Eu devia ter tido mais pulso com você, quem sabe assim tivesse mais pulso com a sua esposa.

O mais novo continuou comendo, porque bem compartilhava da mesma frustração do pai. Hoje completavam-se seis meses de casamento, seis meses de pura indiferença e frustração, seis meses de tortura. Ele queria que fosse diferente, que Jihyun confiasse em si, que soubesse que ele não queria fazer-lhe mal algum, mas a garota continuava mais raivosa que antes, parecia odiá-lo com mais afinco, o que só o fazia ficar com ódio também. O sentimento deixava-o quente e por vezes o cegava, principalmente quando vinha acompanhado daquele cheiro... aquele maldito cheiro doce, que impregnava em suas roupas, parecia entrar pelos poros da sua pele e fazia seu lobo suplicar para que tomasse aquela garota como sua de uma vez. Na época do cio, isso parecia se tornar pior. O sentimento inteiro ardia no seu peito e não conseguia evitar chama-la ou tentar se aproximar quando era ela sentindo os efeitos da lua.

Lembrava-se dos votos dos seus amigos no dia do seu casamento, do jeito como Heechul o segurou pela gola da camisa e disse que tudo ia ficar bem e da forma como Leeteuk parecia perdido, o lábio meio tremendo, sem saber o que dizer realmente, mas Kyuhyun tinha desejado sorte, havia sorrido daquele jeito brilhante depois que dançara com sua esposa e sorrira ainda mais quando confessara, no pé do seu ouvido, que Park Jihyun era bonita demais para si. E era mesmo, Siwon concordava e queria manda-la embora, porque a beleza dela o fazia escravo, o tornava um cão sarnento, domável, louco por atenção, qualquer coisa... só um olhar já o deixava extasiado.

Estava louco.

— Precisa de um herdeiro, Siwon. — o pai continuou, a voz saindo arranhada em perigo para cima do filho, era o tom que indicava punição, quase podia sentir sua costa formigando em antecipação. — Em menos de dois anos, precisa de um herdeiro para que meus esforços valham a pena.

Era um aviso, uma ameaça, um problema... Siwon não sabia ao certo. Parecia uma mistura de tudo, com um toque a mais de ameaça, quem sabe. Seu pai sempre fora muito rígido, duro como uma rocha, meio insano, louco por perfeição.

— Ela não me quer. — se escutou dizer, não pode deixar de se comparar a um bebê chorão.

— Sua mãe também não me queria, nunca me quis. — não havia mágoa, era apenas alguém contando um fato da vida. — Mas eu a domei, segurei bem forte perto de mim e lhe fiz um filho. Você.

Eu, Siwon pensou, o fruto indesejado de um casamento indesejado. No entanto, era do seu conhecimento que sua mãe nunca o odiou. Ela o amava com todas as suas forças e interferia na sua educação sempre que podia, costumava receber seus castigos, quando tinha conhecimento deles. Morreu odiando seu pai, mas eternamente amando Siwon.

— Não seja molenga e trate de me dar netos, eu realmente não quero perder para aquele pirralho Park. — se referia a Park Hyukjae, que havia recebido a liderança da Alcateia Park um pouco antes do casamento de Siwon com sua irmã caçula, e até onde podia ver, havia acontecido algum tipo de atrito entre seu pai e o pirralho.

Siwon não encontrou nada para fazer além de assentir. Não havia como lutar contra a maré. Ou era isso, ou enfrentar a irá do seu pai assim que os dois anos acabassem e Park Jihyun tivesse que ser devolvida, intacta ao seu clã de origem.

Eles terminaram de comer em silêncio, com um milhão de coisas passando na cabeça do alfa mais novo. Em algum momento, se viu deslizando os dedos por sobre o bolso da frente da calça, onde os ingressos pro cinema ainda estavam. Deveriam ter tido o mesmo fim da flor, imaginava, mas não houve tempo para isso. Jihyun apenas se incomodara em estraçalhar a flor e bater à porta na sua cara, em vez de escutar o convite inocente que viria depois. Não houve tempo para ser mais humilhado, se deu conta e quase agradeceu por isso, quase... porque deveria tentar mais um pouco. Afinal, precisava de herdeiros.

Viu o pai se levantar, esperou que ele saísse da sala de jantar para poder se preparar para levantar. Não havia coragem em seu corpo, havia só a velha resignação em querer fazer o certo, em querer agradar o pai. Devia ser um bom, filho não é? Afinal, era o único. Engoliu em seco, passou pela empregada, pediu que preparasse algo para Jihyun porque já podia prever a grande negação que receberia. Subiu para o quarto dela, parou em frente a porta, enfiou a mão no bolso e segurou os dois ingressos. A sessão seria dali meia hora, era a sessão das 22hs. Um filme romântico bobo, que ele achara que ela poderia gostar, algo tão adolescente quanto eles dois.

Bateu à porta.

Sem resposta, o velho nada que sempre esperara. Bateu mais uma vez, com mais força do que queria, mas estava frustrado demais para esconder. Pensou em chama-la, exigir sua presença, se impor da forma como seu pai queria, mas não fez. Mordeu a língua, bem forte, antes de esmurrar a porta mais uma vez e então desistir. Os ingressos estavam amassados na sua palma fechada e o peito subia e descia na mesma agressividade com que queria gritar a injustiça que era receber tanta indiferença. Suspirou, sem dizer coisa alguma e deu as costas a porta. Passou pelo corredor inteiro, desceu a escada, pegou seu casaco e saiu de casa. Ávido por ar livre, cheiro de gente, de terra, de qualquer coisa que não fosse aquele maldito adocicado de amora, que somente Park Jihyun detinha.

— Pra onde, senhor? — o motorista perguntou assim que entrou no carro.

— Ao cinema. — respondeu simplesmente e desejou não poder voltar mais.

Mas é claro, aquilo era pedir demais. Não podia simplesmente desejar aquilo, não podia querer algo como aquilo quando era um Byun. O único filho, herdeiro de uma alcateia inteira. Havia pessoas que dependiam de si, lobos que precisavam de assistência, não dava simplesmente para desistir dessas pessoas e fugir. Nunca seria capaz de se perdoar se o fizesse, só que também não conseguia se perdoar por ainda continuar insistindo naquela garota, realizando seus caprichos e deixando que as palavras do seu pai se tornassem muito amargas na sua boca com o passar o tempo.

Olhou pela janela, encostou a testa no vidro e suspirou. Queria uma boa noite de sono. Talvez, mais de oito horas. Queria um lugar calmo, o som de chuva contra o vidro da janela do seu quarto e os braços da sua mãe... Desencostou a testa do vidro e voltou a olhar para frente, só então notando que já estavam perto do cinema. O carro dobrou em uma esquina, luzes brilharam na sua visão periférica e então, o carro estava parando, sendo estacionado e logo Siwon estava fora deste, o rosto desconfortável depois de uma decisão tomada por impulso. Não conseguia mais achar uma boa ideia comparecer ao cinema sozinho quando tinha ingressos para mais uma pessoa, mas também não conseguia se forçar a dar meia volta, afinal já havia chegado até ali.

— Me espere aqui. — Siwon disse ao motorista, que assentiu antes de voltar para dentro do carro.

O alfa enfiou as mãos nos bolsos do seu casaco, tocou a borda dos ingressos apenas para fecha-los em sua mão, ao mesmo tempo que tentava aquecer as mãos, pois apesar do frio que fazia, Siwon estava nervoso e era justamente esse frio de nervosismo que o incomodava. Só que depois que entrou no cinema e sentou-se na sala em que o filme ocorreria, percebeu que o nervosismo continuava ali, como uma coceira no ouvido, incômoda demais para que não começasse a se irritar. No entanto, mesmo assim, permaneceu no cinema, assistiu ao filme inteiro, mesmo que não estivesse prestando atenção realmente na história e quando o mesmo acabou, quase suspirou aliviado.

Ainda podia sentir o outro ingresso no seu bolso, solitário como ele próprio se sentia ao sair do cinema. A neve estava tomando conta do local, desviou sua atenção para o chão que se tornava branco e depois para o céu, apenas para sentir os flocos contra a testa e bochecha. Voltou a olhar pra frente e continuou o seu caminho até onde o carro estava estacionado.

O nervosismo não estava mais ali, parecia ter cansado-se de insistir naquele alfa sem força de vontade de mudar e Siwon só pode agradecer por isso, porque preferia o vazio de agora do que a agonia de antes. Tudo parecia desacelerar ao seu redor quando vazio se fazia presente no seu peito, tudo tornava-se cinza e sem importância. Ele só precisava caminhar até o seu carro, dizer ao motorista para voltar, então poderia tomar um banho quente, dormir, pensar em mais nada, afundar de vez no vazio que a obediência lhe dava. Talvez, sentir-se um pouco miserável e quem sabe, ter os malditos sonhos com Park Jihyun.

Com licença. — os pensamentos foram interrompidos na mesma rapidez com que a manga do seu casaco foi segurada, o tecido apertou o pulso e os passos de Siwon pararam. Ele deslizou os olhos primeiro para os dedos que seguravam seu casaco, as unhas arroxeadas se destacando na pele pálida de frio. — O senhor teria uns trocados? — a pergunta veio baixinha diante do olhar do alfa, envergonhado demais para disfarçar.

Siwon o fitou, firme, meio confuso, as sobrancelhas se juntando só o deixava mais intimidante. Puxou o braço, um ato brusco o bastante para fazer o garoto se encolher todo. As mãos do mesmo abaixaram, enroscaram-se uma na outra, a cabeça abaixou e ele se tornou menor do que parecia para Siwon. Quantos anos teria?, se perguntou. Parecia não passar de um adolescente... um adolescente que vivia nas ruas e pela ausência de cheiro, deveria ser uma cria de humano. Avaliou o jeito como a manga da sua jaqueta não cobria seus pulsos, os rasgos sangrentos nos joelhos, o tênis gasto e os tornozelos aparecendo, os dedos avermelhados de escoriações, o cabelo escuro bagunçado sujo de poeira, parecia com alguém que tinha rolado no chão. Rolado no chão em uma briga.

O alfa torceu o nariz e deu um passo para longe, não queria envolvimento com humanos e muito menos um humano adolescente rebelde.

— Não tenho nada. — falou, meio arrumando seu casaco antes de continuar seu caminho até o carro.

O motorista já o tinha visto e se apressava em sair do carro para abrir a porta para si, a neve derramava-se com mais afinco, deixando a ponta dos sapatos de Siwon brancas e manchando o seu casaco e terno. Não conseguia entender como terminara de terno no cinema, mas tinha que admitir que não tinha roupas de despojadas no guarda-roupa. Seu pai sempre o estava dizendo como devia se portar como um alfa de classe, deveria se vestir bem, mostrar que era importante, se impor... Era um tanto cansativo, mas não conseguia se livrar disso depois de ter sido criado assim.

Senhor alfa... — escutou e parou os passos, paralisou, surpreso com o que escutava da boca daquele garoto. — Eu sou um Lee. — escutou-o se aproximar, os pés se arrastando na neve, parecia mancar. — E-eu perdi minha alcateia na guerra...

— Não é problema meu. — Siwon rebateu com um gosto amargo na boca, sem coragem de se virar para fitar o garoto, porque era problema seu, sim.

Não foi a sua alcateia que ergueu-se contra os Lee’s e massacrou todos e depois entregou o território conquistado aos Park’s, sem se importar com o que aconteceria com os lobos que ainda estavam lá? Contudo, Siwon não era líder dos Byun’s. Fora tudo ideia do seu pai, todas as estratégias haviam vindo da mente calculista do seu pai e Siwon apenas assistira, como a bela marionete que era.

Deu um passo para frente, um tanto apressado em ir embora, voltar para a sua alcateia antes que fosse acertado por mais um mar de culpa, por não ter interferido no destino daqueles lobos. No entanto, o garoto Lee parecia disposto a não deixá-lo ir, porque tornou a se aproximar, segurar a manga do seu casaco, obrigando Siwon a fita-lo. Havia um corte no lábio, escoriações na bochecha esquerda enquanto o rosto inteiro se misturava em fuligem e os olhos brilhavam em azul-escuro choroso. Ele era só um filhote assustado, o Byun se deu conta.

— Por favor. — praticamente implorou.

O alfa não conseguia desviar os olhos dos daquele garoto, o azul brilhava diante de si, exigindo atenção, exigindo proteção, mexia com o seu lobo de uma forma que Siwon não conseguia explicar mesmo que reconhecesse a forma como o animal agitava-se no seu peito, era igual a primeira vez que viu Jihyun. Tão pequena, vestida de branco, o véu dourado cobrindo o seu rosto choroso e raivoso. Ela nunca tinha parecido tão indefesa, Siwon lembrava-se, fazendo os seus instintos de alfa protetor se aflorarem e cada pedaço seu querer proteger aquela ômega. E agora, aquela criatura, segurando a manga do seu casaco e meio tremendo de frio, tão indefeso quanto um dia sua esposa pareceu.

Engoliu em seco, desviou os olhos do rosto do Lee, com a mão livre segurou o pulso deste e terminou os passos até o seu carro, praticamente empurrou o garoto para dentro, apressado demais para pensar no que realmente estava fazendo, o coração batia rápido e o sangue rugia nos seus ouvidos, anulando qualquer alerta de que aquilo não era uma boa ideia. Fechou a porta, mandou que o motorista o levasse para casa e ignorou a forma como este o fitou, desconfiado da sua companhia. Enquanto que ao seu lado, fungando e enxugando as lágrimas desajeitadamente com a manga da sua jaqueta jeans, estava um lobo Lee. Talvez, o último de uma linhagem inteira de lobos de iríses azuis.

Siwon manteve-se sério o caminho inteiro até o Complexo Byun, totalmente indiferente ao garoto ao seu lado mesmo que tenha notado que o Lee o fitava de canto de canto de olho a cada cinco minutos. O motorista também não disse coisa alguma, mas Siwon sabia que na primeira oportunidade, ele contaria a todos na alcateia como o filho do líder havia levado um mendigo para casa. Era provável que virasse uma chacota entre os lobos, afinal, todos pareciam saber como ele não era capaz de se aproximar da esposa e ter filhotes, quando já estavam caminhando para o um ano de casamento e agora, ele aparecia com aquele garoto... Quase podia escutar os gritos do seu pai.

A porta foi aberta do seu lado primeiro e depois do lado do Lee. Saiu e esperou pelo garoto ao mesmo tempo que via o motorista lhes lançando mais uma olhadela antes de entrar no carro e ir em direção ao estacionamento do Complexo. Começou a andar, sem esperar pelo adolescente. Devia ser um beta, concluiu, quando mais uma vez tentou procurar o seu cheiro.

— Que lugar é esse, senhor? — o escutou perguntar, quando estavam bem perto da Casa Principal, a que ficava no centro do Complexo Byun.

Olhou para trás, por sobre o ombro. O garoto não olhava para si, olhava em volta, maravilhado. As lágrimas tinham ido embora e mesmo que toda poeira continuasse ali, Siwon sentia que ele não ia mais se desfazer em tristeza bem na sua frente.

— É a minha alcateia. — respondeu. — E esta é minha casa. — apontou com o queixo para a grande casa de dois andares, construída no estilo americano, que seu pai tanto gostava.

O Lee arregalou os olhos enquanto entrava na casa, nunca tinha visto um lugar tão grande e tão bonito. Não se parecia em nada com a sua casa no território Lee.

— Está com fome? — Siwon perguntou ao tirar o casaco e colocá-lo no armário de casacos perto da escada.

O Lee o observou, piscou meio confuso pela pergunta mas logo estava assentindo e Siwon o estava guiando até a cozinha, fazendo a empregada cozinhar qualquer coisa que o adolescente quisesse. O observou comer até ficar satisfeito e então o guiou até o quarto que mandara a empregada preparar.

— A empregada lhe trará roupas limpas. — falou e o garoto assentiu. — Se precisar de qualquer coisa, pode pedir das empregadas. — assentiu novamente e Siwon se preparou para se afastar em direção ao seu quarto.

— Espera.

Siwon virou-se.

— Como se chama? — perguntou, tímido demais para que Siwon não notasse as bochechas ficando muito vermelhas e a escoriação na bochecha esquerda parecendo mais viva do que nunca, fazia-o se perguntar o que tinha acontecido com aquele garoto.

Havia sido espancado por humanos? Lobos? Ou entrara numa briga por comida?

— Byun Siwon. — respondeu simplesmente, engolindo todos os outros questionamentos.

O garoto arregalou os olhos, reconhecendo o nome, mas logo depois estava sorrindo:

— Eu sou Lee Donghae.  — apresentou-se também e Siwon assentiu antes de se afastar.

***

O quarto era bonito. Grande, espaçoso, todo pintado em cores azuis, variando entre claro e escuro em alguns cantos. Haviam flores azuis no papel de parede e o lençol cheirava a lavanda e limão, o travesseiro era macio e o banheiro cheio de espelhos, a janela enorme se abria para a paisagem bonita que era a Alcateia Byun. Donghae observou através do vidro, a ponta do nariz amassada contra o mesmo, curioso demais sobre o local em que estava. Haviam muitas casas, todas de alvenaria, muito bem organizadas como um bairro humano, contou as ruas que conseguia e o tanto de casas que havia até que perdesse a conta ou não pudesse mais ver. Afastou-se dali e continuou sua exploração pelo quarto até que terminasse jogando-se na cama, meio sorrindo por ter um lugar para dormir naquela noite. Escutou baterem na porta e correu até lá, recebeu roupas limpas e uma toalha e lençóis, agradeceu e foi em direção ao banheiro.

O banho demorou mais do que queria e foi mais doloroso também, afinal haviam muitas feridas por seu corpo. Fitou o seu rosto no espelho e suspirou com o que via, a bochecha esquerda não parecia tão feia agora, depois de lavada, mas a ferida ainda se destacava muito vermelha ali, denunciando a surra que levara do líder beta do seu grupo antes de conseguir fugir. Não queria pensar nisso, mas não conseguia evitar a forma como as imagens tomavam conta da sua mente, destacando-se como fantasmas em uma noite escura, causava-lhe calafrios.

O beta havia vendido Donghae para um prostibulo e com a sua recusa em ir, acabaram brigando. Apanhara mais do que batera e terminara correndo para bem longe daquele homem, enquanto o escutava o amaldiçoando. Acabara vagando pelas ruas de Seul, perdido e com fome e com dor, até que decidira parar naquele cinema, pedindo esmolas para, quem sabe, conseguir comprar ao menos um pão para passar a noite. Mas a Deusa parecia estar olhando por si e Donghae não conseguia ser mais grato, apesar de ter se ajoelhado em frente a sua cama e sussurrado uma oração de agradecimento por ter colocado um alfa bom no seu caminho. Afinal, graças a aquele alfa tinha um teto e uma cama macia, podia dormir usando roupas limpas e macias e com o estômago cheio.

Cobriu-se sobre a cama, fitou o teto por um tempo e então adormeceu. Teve sonhos leves, seu lobo estava calmo e sentia-se seguro. Mas isso durou apenas até o sol nascer, quando fora arrancado de sua cama sem aviso prévio algum por um alfa mais velho, terrivelmente raivoso. A porta do seu quarto fora aberta com brutalidade e com a mesma força, fora tirado da cama, arrastado pelo corredor e jogado sobre o sofá da sala.

— Vá embora daqui. — o velho mandou usando a voz de alfa e fazendo Donghae encolher-se todo no sofá. — Não admito prostitutos aqui. — virou-se de costas para si enquanto as mãos iam em direção ao cabelo grisalho, apertavam as têmporas e reclamava sobre o quanto o filho era um irresponsável.

O Lee massageou o local em que o velho apertara seu braço e fungou, as lágrimas brotando no canto dos olhos. O que estava acontecendo? Então, o homem voltou-se para si, colocou a mão no bolso de trás da calça e depois jogou sobre si notas de won.

— Pegue o dinheiro e vá embora. — mandou mais um pouco.

Donghae arregalou os olhos na sua direção.

— E-eu não... eu não sou um prostituto. — engoliu em seco, sem se mexer.

Queria olhar em volta e procurar pelo alfa de ontem, queria ter forças para chama-lo, quem sabe ele pudesse esclarecer tudo para aquele velho alfa, porque pelo modo como o outro lhe encarava, duvidava que tinha conseguido convence-lo. Mas culpava o modo baixo com que tinha dito aquilo, com medo demais para disfarçar.

Ele não é um prostituto. — virou a sua cabeça em direção a voz, falava do alto da escada.

Uma garota.

O velho olhou para lá também. Agora, parecia intrigado.

— O conhece? — perguntou.

— É meu empregado. — a garota mentiu, o rosto uma máscara perfeita de desdém. — Meu irmão o mandou pra mim, ontem. — em nenhum momento ela olhou para Donghae.

Parecia fria. Bonita e fria, como uma princesa de gelo. Mais tarde o garoto saberia o seu nome: Park Jihyun, a esposa de Byun Siwon. Contudo, naquele momento, ela não parecia mais do que uma enviada da Deusa Dal.

Ela aproximou-se do topo da escada e desceu apenas o primeiro degrau, olhou diretamente para o Lee e disse uma única coisa para si antes de dar as costas, como se fosse a dona daquele lugar inteiro e para bem da verdade, Donghae achava que era mesmo.

— Venha.

O Lee ficou de pé e foi, como que atraído para a luz como um inseto. Curvou-se para o velho alfa e foi embora, apressado. Pulou dois degraus de cada vez, apenas para encontrar a garota sentada na beira da sua cama, parecida demais com uma boneca. O cabelo escuro caia para além dos ombros, os ossos eram pequenos e Donghae desconfiou que tinham a mesma idade, mas como ela contou: era um ano mais velha e por isso, Donghae lhe devia respeito, ainda mais por ela ser uma Ômega Principal.

Jihyun alisou a colcha da cama bagunçada em que estava sentada. O vestido violeta a deixava mais séria, e o batom avermelhado contribuía para isso, para deixa-la mais velha, mas as bochechas ainda eram fofas como as de uma adolescente, como que para mostrar a Donghae, que ela não passava disso.

— Fez sexo com meu marido aqui? — havia desprezo o suficiente ali para que o Lee não conseguisse não notar. — Ontem à noite?

— Não! — apressou-se, o rosto tornando-se inteiramente vermelho enquanto Jihyun comprimia os lábios finos, fazendo o Lee notar, pela primeira vez, a pintinha engraçada bem no cantinho direito da sua boca, escondida de tudo. — O senhor Siwon apenas me deu comida e um lugar para dormir.

— Uma pena. — Jihyun lamentou e jogou-se sobre sua cama, parecia mais à vontade com a afirmação de que não acontecera nada naquela cama, por entre aqueles lençóis. Não havia gemidos, impressões ou qualquer coisa impregnada naquele quarto de hóspedes.

Donghae franzio a testa, confuso demais para que ela não percebesse.

— Quem sabe assim ele não me deixava em paz. — explicou.

— Mas ele é tão gentil. — recordou-se da forma como Siwon o tinha levado até a cozinha, depois até o seu quarto, explicado onde ficava o que, o jeito que sua voz era firme quando se apresentou e o jeito como não o olhava com desrespeito, fazia Donghae se sentir uma pessoa, nada de lobo, nada de classe, apenas uma pessoa ao lado de outra pessoa.

— Siwon não é uma boa pessoa. — Jihyun declarou apenas para ficar sentada no minuto seguinte e então, de pé. — E se eu fosse você, apenas sairia daqui o quanto antes.

Andou até a porta e saiu. Sem despedidas, sem nada além de um aviso sem sentido. Donghae observou a ponta do seu vestido esvoaçando atrás dos seus passos, ela seguindo pelo corredor, escutou quando a porta do seu quarto bateu. Jogou-se sobre sua cama e suspirou. Mas não permaneceu ali muito tempo, afinal queria conhecer mais do lugar onde estava. Tomou um banho e colocou roupas limpas, avaliou os seus ferimentos que já desapareciam devido ao sangue lobo em suas veias. Mais um dia e não teria rastro algum daquela briga no corpo.

Vagou pelos corredores da casa, entrou em quartos como os seus, procurou Siwon em cada detalhe das fotos na sala de estar, conversou com os empregados, até mesmo ajudou alguns. Tentou falar com Jihyun mais uma vez, contudo, a garota parecia não querer nada além do vazio do seu quarto, pois não o atendeu nenhuma vez quando batera à porta do seu quarto, chamando seu nome e perguntando se queria passear.

Saiu da casa, queria conhecer as redondezas do lugar. Nenhum lobo o conhecia e Donghae também não conhecia ninguém, mas mesmo assim aproximou-se de algumas pessoas, perguntando sobre isso e aquilo, sendo guiado até o fim da alcateia e depois até o começo. Tudo era muito organizado, as casas eram de alvenaria, simples ou de dois andares para abrigar famílias grandes. Havia uma escola em construção, logo os lobos não precisariam sair dali para frequentar escolas humanas. Também visitou as creches, observou alguns filhotes brincando em suas formas de lobo e sorriu com a forma como aquele lugar era tão diferente da sua alcateia.

Os Byun’s eram empreendedores. Eles criavam negócios, comerciantes. Sempre sabiam como ganhar dinheiro, muito diferentes dos Lee’s, que eram artistas. Todos viviam de alguma forma de artesanato, uma horta, alguma coisa simples. Donghae ainda conseguia lembrar do cheiro de tinta que os dedos do seu pai tinham no fim do dia, as unhas coloridas por baixo e a camisa sempre salpicada de alguma cor diferente, que ficaria ali eternamente. Sua mãe era artesã, podia tecer qualquer coisa. Desde cestas com palha até casacos inteiros de lã. Donghae aprendera a tecer, mas não era seu trabalho predileto. Ainda estava procurando seu talento quando a guerra começara e seus pais tiveram que partir.

Quando voltou para a Casa Principal, já estava anoitecendo. Algumas estrelas apareciam no céu, mas pela forma como nuvens cor-de-rosa começavam a acompanha-las, Donghae apostava em uma chuva no meio da noite. Entrou no mesmo silêncio que sairá da casa e como esperava, a casa estava em silêncio também, fazia-o pensar em como aquele lugar era solitário. Bonito, mas silencioso demais.

Andou até a cozinha, estava pronto para jantar. Mas ao observar a silhueta do alfa de mais cedo, recuou um passo, no entanto, quase retomou o passo para frente quando avistou Siwon, comendo de cabeça baixa na outra ponta da mesa, de frente para a entrada do lugar. E como se pudesse percebe-lo ali, o alfa levantou o rosto para encontra-lo. Donghae desviou os olhos, com as bochechas em chamas, porque, de repente, recordava-se do que Jihyun falara sobre eles terem feito sexo.

Era mentira, sabia disso, mas mesmo isso não exprimia o fato de que Siwon era um alfa bonito.

Mordeu o lábio e deu mais um passo para atrás. Podia falar com alguma empregada depois, certo? Siwon dissera que podia pedir qualquer coisa para ela. Podia muito bem pedir algo para comer mais tarde.

Deu meia volta, subiu as escadas correndo e jogou-se em sua cama. Não passava de um adolescente, no fim das contas. Um adolescente lobo sem um cio. E era nisso que estava pensando quando escutou batidas na sua porta. Por um momento, teve medo que fosse o alfa velho de mais cedo ou que fosse Jihyun, dessa vez com uma história tenebrosa sobre Siwon, mas quando sua mão girou a maçaneta, quem encontrou ali, o fez sorrir aliviado. Era o seu alfa encantado.

— Oi. — sussurrou, como um segredo.

— Eu posso entrar? — o Byun perguntou, as mãos foram para trás do seu corpo, seus ombros eram largos na camisa social branca.

Assentiu, afastou-se para que ele entrasse. Fechou a porta, devagar. Queria fazer o mínimo de barulho, porque aquilo tudo era um segredo. O seu segredinho de conto de fadas, era como nos livros que tinha lido em casa, na sua alcateia. Os contos de fadas humanos, com Cinderela, Rapunzel ou qualquer outra princesa. Donghae gostava mais de a Bela e a Fera, porque a Fera se parecia com eles. Era duas pessoas em uma. Mas também gostava dos contos de fadas da sua alcateia, aqueles que passavam de boca em boca dos mais velhos, os que a sua mãe contava para si antes de dormir, a luz da vela deixando tudo mais mágico.

“Há muito tempo atrás, quando o território Lee não passava de uma floresta e poucos de nós viviam aqui, havia um lobo que vivia na floresta. Um lobo solitário. Estava aqui primeiro do que qualquer Lee e pelo que parecia, vivera sozinho aquele tempo inteiro na floresta. Sempre uivando para a lua, desejando uma coisa que ninguém sabia o que era. (...)”

  — Acreditei que tinha ido embora. — Siwon começou, as mãos ainda estavam em suas costas, a postura reta, andava como um general pelo quarto de Donghae, fazendo reconhecimento do território.

— Eu não... eu só estava passeando pela alcateia. — contou ao dar um passo em direção a sua cama, pretendia sentar-se ali, observar Siwon, criar sua própria história na mente.

— O dia inteiro? — parecia como uma reprimenda, havia algo de possessivo no fim da frase, adornando as letras inteiras, mas a interrogação no rosto de Siwon deixava claro para Donghae que fora sem querer.

Ele não sabia como fazer aquilo sem parecer e se sentir estranho. Donghae compartilhava dos mesmos sentimentos.

Assentiu. Algum alivio passou pelo rosto do alfa chegou nos seus ombros e o fez relaxar por um breve segundo, deixando Donghae confuso.

— Está com fome?  — Siwon mudou de assunto, apressado para fazer o garoto parar de prestar atenção em si.

Assentiu novamente e dessa vez, Siwon andou até a porta, o chamou e eles saíram. Achou que estava sendo levado para a cozinha, mas quando o alfa também passou pela porta da frente, lançando-lhe um olhar encorajador, Donghae entendeu que estavam indo a algum lugar.

Eles terminaram em uma lanchonete de beira de estrada, com Siwon dirigindo o carro, sem motorista, nada além deles dois. Donghae comeu dentro do carro sob olhar de Siwon, que tinha as pernas pra fora do automóvel, meio reclinado sobre o banco da frente e a porta aberta. Donghae estava no banco do carona ao seu lado, comendo o mais silencioso possível, as palavras do conto de fadas ainda na sua mente, a voz da sua mãe narrando o começo daquela história que parecia se misturar com a sua realidade.

Donghae não queria fantasiar, mas o seu lobo queria tanto uma casa para chamar de sua e aquela era a primeira vez que alguém realmente lhe dava atenção, lhe tratava com algum respeito, que não o olhava de cara feia e que não lhe negava comida, que só o fazia fantasiar. Como o belo adolescente bobo que era e o seu lobo acompanhava, o que só deixava tudo pior.

— Está bom?  — Siwon perguntou de repente, tinha virado o rosto na sua direção. A luz do carro estava ligada e o rádio também, apesar de não estar tocando nenhuma música. O cabelo dele parecia muito escuro e rosto entalhado em cansaço.

— Sim. — respondeu e Siwon desviou os olhos de si, sentou-se direito sobre o banco, as pernas ainda estavam de fora.

Donghae viu quando ele se inclinou sobre os joelhos, os cotovelos apoiados ali, de costas para si. Tinha os ombros largos, os braços fortes, o cabelo bem aparado, a nuca limpa. O garoto engoliu em seco diante da forma como seu corpo inteiro tremeu diante da possibilidade de aproximação, de deitar a ponta do nariz ali só para sentir o cheiro com mais força, direto da fonte. Fazia Donghae desejar ter um cio, apenas para ter um cheiro, apenas para fazer Siwon sentir aquelas coisas também... aquela vontade, mas sabia que era injusto. O alfa não lhe pertencia. Era casado com aquela garota mandona, a magricela de olhar duro, mas ela não parecia gostar dele e muito menos querer algo consigo.

Parou de olhar para o homem e amassou o papel em que seu lanche viera embrulhado. Segurou aquilo, sem saber onde deveria jogar. Avistou uma lixeira através da janela e abriu a porta para ir até lá, o barulho chamou a atenção de Siwon, que observou, cuidadoso, o jeito como Donghae se movia para longe.

Talvez, devesse manda-lo embora. Talvez, devesse ligar o carro agora e abandona-lo, mas que tipo de pessoa seria se fizesse isso? Entendia que era mais fácil assim, que seu pai lhe dera um prazo para fazê-lo, afinal não acreditava na história que Jihyun confirmara. Lee Donghae não era empregado de ninguém, não era ninguém e muito menos tinha alguém. Era só um garoto, um filhote de lobos mortos. Mas Siwon não moveu um dedo para ligar o carro, apenas permaneceu. Esperou que Donghae voltasse ao carro, que sentasse no lugar de antes, que lhe presenteasse com mais um daqueles sorrisos inocentes, para que recolhesse as pernas para dentro do carro e só então o ligasse.

Não tinha coragem de abandona-lo, de manda-lo embora, muito menos. E não era por pena, era porque Donghae inteiro irradiava aquela coisa... ele brilhava em inocência, em gentileza, em detalhes delicados, empertigava Siwon, desafiava o seu lobo a se aproximar e somado a forma como Siwon se culpava pela dizimação dos Lee’s, só lhe deixava envolver, achando que devia alguma coisa à aquele garoto.

— Para onde estamos indo? — Donghae perguntou.

Siwon não o fitou, havia dobrado em uma esquina diferente da que viera. Estava tentando ser o bom garoto obediente que seu pai criara, mas na primeira oportunidade voltou ao caminho normal, respondendo implicitamente a pergunta de Donghae.

Para casa. Eles estavam indo para casa.


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