Mirtilo escrita por OmegaKim


Capítulo 40
Extra - O garoto vestido de preto




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Jongdae sentou-se em frente ao espelho no seu antigo quarto do Orfanato, na beira da cama de colchão gasto. A parede com a tinta descascando sendo refletida no espelho, os pôsteres que colara ali quando adolescentes ainda estavam lá. Amarelados, com as pontas soltando e os desenhos se apagando. O sol entrava pela janela fechada, fazia toda a poeira no chão brilhar. Mas Jongdae não conseguia parar de olhar para si mesmo refletido no espelho, ainda usando uma camisa de algodão uns números maiores e shorts que pareciam bermudas em si, estava magrelo para a idade e o lábio se partia por falta de hidratação e porque havia entrado numa briga com seu irmão algum tempo, lá embaixo, na frente das outras crianças.

Jongdae tinha seis anos de novo e um peito cheio de raiva. E isso o assustava.

Era verão de setembro, recordou-se quando reconheceu a cantoria de Sunhae fora da casa e o choro de Jongin, alto, estridente demais para uma criança de quatro anos. Mas Jongdae não conseguia culpa-lo, mesmo que o choro sempre o acordasse nas madrugadas, não conseguia não sentir mais do que pena daquela pobre criança que fora abandonada naquele Orfanato, junto de todos eles, mas no fim das contas era pra isso que aquele lugar servia: para despejar todos aquelas crianças que ninguém queria.

Os órfãos da guerra, como Sunhae costumava lhe dizer. Todos eles haviam perdido pelo menos alguém naquela guerra e depois tinham sido abandonados seja por falta de pais ou por falta de comida, era melhor entrega-los a um Orfanato do que vê-los morrendo de fome, pelo menos ali, eles podiam ter a chance de ter uma família. Ou pelo menos era isso que se acreditava.

Ergueu a mão e tocou no próprio rosto, cutucando a bochecha e ainda não acreditando que tinha realmente seis anos. O que aconteceu? Por que tudo parece o começo de um filme de terror? Por que ele se sente tão velho naquele corpo de criança? Seus dedos deslizaram para o corte no lábio, cutucou ali até sentir dor e então estava com os olhos arregalados para o seu reflexo em surpresa por realmente sentir. Tinha seis anos de novo, preso naquele lugar, com cicatrizes nos joelhos e nas costas, com o corpo magro e os olhos cheios de medo.

Ficou de pé e andou até a janela, observou de lá Sunhae rodando e rodando e rodando de braços abertos. Todos diziam que ela era louca, porque tinha pensamentos estranhos demais e agia de modo tão estranho quanto, contavam histórias realmente ruins sobre ela, mas Jongdae não acreditava em nenhuma, simplesmente porque não dava pra desconfiar daquela garota magrela que sempre lhe dava parte das suas refeições quando percebia que ele ainda estava com fome.

Ela o viu ali e acenou pra si, depois cutucou Jongin e apontou para si na janela, dando tchau de um jeito escandaloso, fazia Jongdae sentir saudade, porque cinco anos depois Sunhae estaria morta. Uma briga de bar ou algo assim, um assalto, ele nunca soubera ao certo. Só havia recebido a notícia e comparecido ao seu enterro junto com todas as crianças da Avó. Lembrava-se de ter chorado sobre seu túmulo depois que todos haviam ido embora, lembrava-se de ter cantado como se aquilo pudesse lhe acalmar.

Se viu erguendo a mão e acenando de volta, sem tanto entusiasmo e ainda surpreso pelo modo como tudo era tão real. Havia voltado no tempo?

Jongin acenou de volta, uma das mãos agitando no ar enquanto a outra limpava um dos olhos. Só tinha quatro anos aquela criança, era uma das mais novas junto de Vernon e junto de si mesmo e Hannie, o garoto chinês que tinha um repertório realmente bonito de xingamentos na ponta da língua.

Não sabia precisar quando chegara no Orfanato. Kibum costumava lhe dizer que ele apareceu na porta do lugar, dentro de uma caixa de sapatos sem nenhum bilhete, mas essa era a história que ele contava para todos, então Jongdae não conseguia acreditar, mesmo que chorasse a noite achando que seus pais o tinham abandonado, do mesmo jeito que Hannie chorava junto de Jongin, quando não o conseguia fazer parar de chorar. Mas a Avó... a Avó sempre desmentia o que Kibum lhe contava. Ela o costumava abraçar nas noites de tempestade e sussurrar detalhes dos seus pais, como se os tivesse conhecido, porque o fazia pensar que poderia conhece-los também.

No entanto, aquilo eram só palavras. Aos 13 anos ele descobriria o quão louca aquela mulher era e aos 15, se deixaria levar pela loucura das suas palavras.

Devia ser por isso que estava de volta aos seis anos de idade, pensou. Talvez, fosse para nunca chegar aos 15 e tomar decisões erradas ou talvez, fosse para nunca dizer sim ao plano mirabolante dela, ou talvez fosse para nunca ter crescido tão rápido. Só que Jongdae sabia que mesmo que aquilo fosse real, não adiantava mais. Seus amigos morreriam algum tempo depois, todos se perderiam na vida, todos fugiriam atrás de sobrevivência. Mas pelo menos Hannie teria sorte junto de Jongin. Dali alguns anos um homem os adotaria e Jongdae nunca mais saberia nada deles.

Eles seriam os últimos, afinal. Depois ninguém apareceria, em parte porque o Orfanato seria fechado e todos eles jogados na rua como se não fossem nada além de escória e em parte porque ninguém conseguia se interessar por crianças que não eram fofinhas e gordinhas. Vernon ainda poderia ter uma chance de encontrar uma família, afinal ainda seria o mais novo deles quando tudo desse errado, mas como bem sabia, Vernon ficaria também. Seria criado pela Avó do mesmo jeito que si e teria um nome novo até os 16 anos, do mesmo que si, afinal Jongdae nem sempre fora seu.

Até os 16 anos, ele sempre tinha sido Chen.

Do mesmo jeito que todas as crianças da Avó.

Sem um nome de verdade, apenas servindo, aprendendo, crescendo diante tudo aquilo...

Todavia, mesmo quando tentava culpa-la por todo mal que aconteceu até ali, Jongdae se pegava lembrando dos momentos doces que tiveram. Eles eram uma família feliz, no fim das contas. Ela os amava, lhe dava roupas limpas, camas quentinhas e comida. Comemorava seus aniversários e quando podia, comprava-lhes presentes. Ela o tinha ensinado a ler e a lutar, do mesmo jeito que havia ensinado seus irmãos. Só que também era exigente, um tanto sádica e um pouco controladora demais.

Era uma relação de amor e ódio com todos eles ainda muito crianças para entender o que realmente acontecia e por isso não sabiam direito como lidar. E muito menos o pequeno Vernon, que não entendia porquê de tanta mudança de humor. Só que mesmo com isso, Jongdae ainda era grato. Não conseguia não ser, mesmo que seu interior ainda se contraísse de medo quando pensava no nome dela.

No entanto, naquele momento, ele tinha seis anos novamente e poderia mudar algumas coisas. Poderia tentar salvar Do, o pequeno gatinho de pelo escuro que havia encontrado em uma tarde chuvosa e levado para casa, escondia-o no armário do quarto que dividia com Hannie, com a permissão do mesmo, pois nunca podia fazer nada sem que o chinês não estivesse junto de si com Jongin a tira colo. Se ele se esforçasse mais um pouco, podia evitar que Kibum o encontrasse e o matasse, alegando que não havia condições de se ter um animal ali.

É melhor pra ele estar morto.

Se afastou da janela e voltou a se sentar diante do seu reflexo no espelho. Não conseguia pensar em outra coisa, algo mais importante? Estava tudo nos lugares certos naquele dia e nos dias depois daquele. Ele não conseguia se ver fazendo nada diferente, porque a raiva ainda estava ali, crescendo a cada momento dentro de si e toda direcionada para uma única pessoa. Aquela única pessoa que o condenou a toda aquela vida insana de andar sobre ovos, tão cheia de incertezas sobre quem encontraria quando chegasse em casa, sobre como faria para deixar os mais novos à salvo dos surtos daquela mulher. Porque como vierá a saber, realmente podia ter tido uma família saudável.

Ele tinha uma mãe e um pai... ele tinha possibilidades, mas tudo havia sido tirado de si quando não passava de uma criança indefesa. A Avó tinha lhe contado sobre sua descendência, sobre o modo como seus pais estavam mortos, sobre como tudo fora fruto de uma pessoa.

Byun Siwon.

Cresceu com tudo isso sendo constantemente lembrado pela Avó, tendo sua raiva revirada e voltada para essa pessoa. E aos 16, o grande estopim veio. E ele aceitou e quis aquilo mais do que todos, só que agora... aos 23 anos, descobriu que tudo era mentira. Uma grande e suja mentira feita nos delírios de uma velha senhora. Sua mãe estava realmente morta, mas o seu pai... o seu pai não era quem pensava, era quem menos esperava. Era o pior pesadelo de todos, era aquele homem à quem ele perseguiu durante a vida inteira. Era e pra sempre seria, Byun Siwon.

O garotinho refletido no espelho chorou enquanto o adulto que vivia dentro dele tentou engolir os soluços. Homens não choram, Kibum sempre lhe repetia. Mas Jongdae não se sentia nenhum pouco homem, se sentia abaixo, tão mais baixo. Tão terrivelmente perdido em si mesmo. Não passava de um pobre garoto bastardo, que fora descartado por ter nascido. E isso doía cada vez mais a cada dia.

Pobre garoto idiota, pensou, pare de chorar sobre todos os seus erros. As lágrimas não vão limpa-los e você não vai pro céu apenas porque se arrependeu. Sabia que não iria, mas também sabia que não conseguia se perdoar. Havia feito mal o suficiente para não querer fazer nada além de continuar naquela ilusão, escondido e com a certeza de que não cresceria nunca mais, só que não havia chance alguma daquilo acontecer.

Seus amigos estavam mortos.

E Jongdae não queria viver entre fantasmas.

***

Kim Jongdae ajeitou a gola da sua camisa, colocando a gravata bem no centro, depois fechando seu terno escuro. Estava mancando quando saiu do hospital, alcançando as ruas naquela madrugada, usando roupas do segurança e com cada parte do seu corpo ainda latejando. Deveria ter ficado e perguntado por Kyungsoo, mas havia tanta coisa para resolver naquele momento que o Kim apenas quis sair dali e começar.

Não sabia para onde estava indo até que se viu no cemitério, encarando lápides que não conhecia. Na sua confusão, esquecera-se que não estava mais na China. E foi mergulhado nessa mesma confusão, que ele se viu ligando para Kibum, pedindo ajuda para algo que não sabia. O irmão veio mais rápido que o esperado, correndo na sua direção com a mesma expressão severa no rosto, que lembrava bastante a Avó, fazia Jongdae ter calafrios e os calafrios só ficaram piores quando o primeiro tapa veio, acertando seu rosto em cheio e o fazendo sentir gosto de sangue.

Kibum era sempre tão receptivo, pensou amargamente.

— Eu te procurei por meses! — ele gritou antes e segura-lo pelos ombros. — Seu bastardo de merda, você tem noção da confusão em que está metido?

Jongdae tinha e bastante. Fugira da China assim que a Avó morreu e começou o seu plano de vingança contra Byun Siwon, deixando Kibum para trás, deixando seus outros irmãos como se não fossem nada. Lembrava-se muito bem da confusão que deixou para trás, toda a dívida no seu nome, todas as pessoas com raiva de si e bem podia imaginar que Kibum o tinha seguido até a Coréia, junto dos outros irmãos? Talvez Vernon tivesse vindo consigo, quem podia garantir. Aquele garoto era tão dependente deles, que Jongdae não se surpreenderia se ele estivesse ali também. Mas tinha voltado na China algumas vezes, para mostrar que estava vivo e quem sabe fazer Kibum acreditar que ele não estava metido em mais uma confusão.

No entanto, as coisas haviam piorado drasticamente em algum momento. Nem mesmo Jongdae conseguia precisar onde tudo deu errado. Talvez tenha sido em si mesmo, ele havia dado completamente errado.

— Existe a porra de um assassinato no seu nome, droga! — Kibum continuou, gritando no cemitério, fazendo Jongdae querer rir.

Kibum era o irmão mais velho entre todos, o mais ranzinza, o mais boca suja, o mais maldoso, mas o mais protetor. Havia alguma coisa escondida embaixo daquela agressividade toda que sempre fazia Jongdae desconfiar dos seus sentimentos, pois não dava pra acreditar que alguém odiaria todos eles por tanto tempo e se manteria tão perto mesmo assim. Mas o ódio parecia fazer parte daquele alfa, pois até mesmo seu cargo no Conselho lhe enchia de ódio.

Então ele ergueu a mão e acertou seu rosto novamente, com mais força do que antes, fez seu corpo se desequilibrar e logo o Kim estava no chão, arfando com a mão sobre o lado do corpo onde havia uma costela ainda em processo de cicatrização.

— Por que me ligou agora? — o mais velho perguntou mais calmo, mesmo que o alfa ainda pudesse ver suas mãos fechadas em punho ao lado do corpo.

— Preciso de um favor. — conseguiu dizer, apertando os dentes de dor logo em seguida.

Kibum cruzou os braços e esperou.

— Encontre Kim Kyungsoo e o devolva à família.

— Kim Kyungsoo? O garoto desaparecido? — perguntou, a expressão se tornando aquela mistura de raiva e surpresa, que Jongdae achou engraçada, até mesmo riu antes de assentir.

Era claro que Kim Kibum já havia escutado algo sobre o desaparecimento de um dos herdeiros da família principal Kim. Ele era um maldito alfa do Conselho, não podia não saber.

— Seu filho da puta! — xingou antes de se aproximar, pronto para acertar o rosto do mais novo, fazendo Jongdae encolher-se inteiro. — Idiota! — xingou novamente, a mão ainda erguida, mas não abaixou. O tapa, o soco, nenhum desses veio. — O que eu faço com você, Jongdae? — subitamente perguntou, a voz baixa e cheia de uma decepção que nunca deveria ter estado ali.

Chen sentiu vontade de chorar.  

— Me mate. — pediu.


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