Sangue escrita por Salomé Abdala


Capítulo 78
Capitulo 77 – Souvenir




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Sentado na varanda pude me permitir sentir saudades de Alvinópolis. Nada se compara a vista que eu tinha daquela janela. Me vejo obrigado a admitir que, por mais que eu amasse minha vida nessa cidade, não podia fingir que gostava de me sentar em minha varanda e observar o a rua e o apartamento da frente.... isso não é bem o que podemos chamar de boa vista, a não ser, claro, que você seja um vouyeur ou algo assim.... se eu pelo menos tivesse vizinhos bonitos com janelas grandes...

Michel está no sofá grudado naquele celular. Seus olhos brilham cada vez que chega uma mensagem. Quase posso ouvir o coração dele palpitar daqui. Acho bonito ver um amor nascendo. Essa expectativa toda... tudo é tão fresco e emocionante. Depois de um tempo o amor vai virando uma redescoberta. Você passa a ter que redescobrir diariamente o porque você se amarrou àquela pessoa. É meio que um aprender a se surpreender com o óbvio. Como sentir prazer em respirar ou se sentir grato por acordar todas as manhãs....

Eu acordo ao lado do Flavius todos os dias e, quando o vejo dormindo sinto que poderia passar toda uma eternidade ao seu lado. Mas no dia a dia, nas pequenas chatices da vida, como lavar a louça, descer o lixo, escolher qual filme assistir, estar de mau humor, etc... as vezes me esqueço de ama-lo. Um tanto porque sei que ele conhece minha essência nua, não posso impressioná-lo com meus truques baratos de sedução. Não vejo em seus olhos aquela admiração infantil que os outros desavisados têm. Quando conto uma piada óbvia ou faço um truque bobo ele me mira com aquele olhar de: ‘De novo isso?’ enquanto os outros admiram e aplaudem como capachos adestrados.

Talvez por isso, as vezes, ficar com outras pessoas me parece tão emocionante. Porque gosto dessa admiração febril. Gosto que as pessoas amem minhas máscaras.... Mas, por outro lado, quando me vejo nu, sobre a cama, e ele me mira com aqueles olhos de amor, percebo o quanto tudo isso é mais profundo. Flavius conhece os limites da minha alma e me ama por coisas e qualidades que nem mesmo eu posso enxergar. Trata-se de uma consolidação do amor muito mais sólida e, ao mesmo tempo sublime que as demais. Não se trata de ele amar meus personagens... trata-se de ele amar a mim........ e qual o preço disso?

As vezes acho que não sei lidar com isso... talvez porque eu mesmo prefira as personagens que crio a mim mesmo. E quando Flavius me ama por quem realmente sou, sinto-me desconcertado... sinto-me sem chão... talvez por isso eu tenda a sempre querer estragar tudo... A sorte é que Flavius é resistente. Outro qualquer já me teria lançado aos porcos, mas ele, por qualquer força oculta do universo, estende-me a mão e me convida a continuar. E eu o amo por isso. Amo-o e me sinto humilhado, pois sei que não o mereço...

Eu sou uma pessoa mesquinha. Eu preciso de atenção, auto afirmação constante. Gosto que as pessoas babem ovo pra mim, lambam meus pés, me admirem. Gosto da ilusão de que sou perfeito. Ao passo que Flavius é a realidade... sinalizando meus defeitos, esfregando minhas fraquezas na minha cara.... Ele me faz perceber o quão limitado sou e se mostra disposto a me amar ainda assim... Isso é tão confuso para mim...’

...

–Oi Michel.

–Oi Flavius. Onde você estava?

–Na casa do Manuel. Precisava colocar as coisas às claras com ele.

Ele me olhou por um tempo como que pensando no que dizer. Eu me adiantei e disse:

–Está tudo bem. Foi uma boa conversa, me sinto mais leve agora.

–Que bom.

–E você? Como está?

–Conversando com o André.

–André é aquele menino que veio aqui?

–Sim. – ele disse abrindo um sorriso enorme – O que achou dele?

–Não cheguei a vê-lo.

–Ah é verdade. Você estava no quarto.

–Sim.... mas... como ele é?

–Ah ele é bem diferente, sabe?

–Não, não sei. Diferente como?

–Não sei explicar. Ele tem um cabelo bem punk, tipo um moicano, veste umas roupas rasgadas, tem um estilo bem diferente. Fala umas coisas bem diferentes também. Ele é meio ligado nesses lances de magia, meditação, teorias da conspiração. Lê muito. Ele saca de quase tudo. Tem um jeito muito próprio de ver o mundo, sabe?

–Sei... eu cortava meu cabelo meio diferente também, você lembra? – disse meio sem saber porque de estar me comparando, mas de repente me via como que competindo com esse menino.

–Lembro.... Então, ele é cheio de tatuagens, fez uma nova na mão esses dias. Ficou bem foda.

Olhei para os meus próprios braços, eu não tinha nenhuma tatuagem. Talvez fosse a hora de considerar fazer uma... Então é esse o tipo de garoto do Michel?

–Você não tem foto dele?

–Pior que não. Mas ele vai vir aqui hoje, dai vocês já se conhecem.

Senti como se tivesse levado um soco. Não sei se estava pronto para conhecer esse garoto. Tive vontade de sair correndo, me trancar no quarto. Nunca mais ser visto:

–Hoje? Mas já não está um pouco tarde? Não é perigoso?

–Ele vem de moto.

Moto? O garoto tinha uma moto? Isso o tornava, no mínimo, quinze vezes mais interessante que eu. Como eu poderia competir com um rapaz todo tatuado que tinha uma moto? De repente senti um grande balde de água fria sobre a minha cabeça... Manuel era um grande bailarino, um homem maduro, inteligente, sensível. Fip era uma pessoa de gênio forte, tinha uma presença marcante, um sorriso cativante, tinha boas sacadas, sempre sabia o que dizer. Natasha com seus cabelos coloridos, sua boca suja, suas piadas engraçadas, suas roupas bonitas. O Michel era um dos caras mais bonitos que eu já tinha visto na vida, além disso era muito sagaz, estava se tornando um grande ator e sabia um monte de coisas sobre um monte de assuntos. E agora esse André, com suas tatuagens e sua moto...

Todos eles pareciam pertencer a algum lugar. Como se todos soubessem a qual parte do mundo pertencem. E eu aqui, com minhas camisetas sem estampa e minhas calças jeans. Nem o meu cabelo legal de corte desigual eu tinha mais. Cortei curto, para parecer “mais normal”. “Mais normal” pra quem? Por que? Por que se são nossas anormalidades que formam nossa personalidade?

E agora eu era o que? Um trapo qualquer no meio dos outros tecidos. Uma pessoa absolutamente neutra, sem face. O que os outros vêem quando olham pra mim? Como me reconehcem?

Olho pras minhas mãos e me percebo uma pessoa totalmente sem graça... Sem atrativos. Nem uma conversa eu sei administrar....

–Legal. – eu disse – Ele tem uma moto!

–Sim. Bem, na verdade é do irmão mais velho dele. Mas ele pega emprestado as vezes.

Isso soou um pouco mais reconfortante. Mas, ao mesmo tempo senti uma leve pontada no peito. Ele tinha um irmão. Eu cresci sozinho numa casa vazia. Só meus pensamentos e eu. Minha tia costumava trancar a porta quando ia trabalhar. Tinha medo que eu saísse. Eu via, pela janela, os outros meninos brincando. Sentia inveja da cumplicidade que tinham com seus irmãos... Sempre quis ter um irmão. Um amigo... qualquer coisa que fosse. Alguém que pudesse me emprestar coisas, pegar minhas coisas emprestadas. Brigar de vez em quando... proteger um ao outro....

–Ele tem quantos irmãos?

–Acho que dois. Um irmão e uma irmã.

De repente me peguei imaginando sua vida. Uma vida normal, numa casa normal. Com pai, mãe, irmãos, uma vó que vem visitar de vez em quando... primos talvez. Nunca tive nada disso. Éramos minha tia e eu. E muitas vezes só eu. Hoje eu entendo que ela precisasse trabalhar muito para nos manter. Mas naquele tempo eu não entendia assim. Pensava que ela saia de casa porque não gostava de mim. Passava o dia conversando com meus brinquedos, construindo casas e castelos de papelão... O silêncio e eu...

–Você nunca se perguntou se tem irmãos? – perguntou Michel.

–Eu não tenho irmãos.

–Mas sei lá. Você nunca conheceu seu pai, não é? Pode ser que ele tenha se casado, tido filhos... não?

–Eu... nunca pensei nisso.

–Nossa, não? Meu pai morava na minha casa e eu sempre me perguntei se ele não teria alguns filhos fora do casamento.

–Antigamente eu tinha muita curiosidade de conhecer meu pai. Hoje acho que seria estranho, não sei. Tenho medo de ele ser um grande idiota, sabe? Hoje ele não teria nada pra fazer por mim... seria estranho.

–Eu imagino que sim. Mas sei la, e se ele fosse um cara legal?

–Eu prefiro não pensar nisso. Sei lá, também acho que se ele fosse um cara legal não teria largado minha mãe daquele jeito. Tipo, ela tinha uns quinze ou quatorze anos quando engravidou. Tudo que eu sei sobre ele é que ele era um pouco mais velho, tinha uns vinte e poucos acho. Não se larga uma menina tão nova com uma criança na barriga sendo um cara legal.

–Ta aí uma verdade. Você tem raiva dele?

–Eu? Não sei. Acho que tenho, mas é difícil ter raiva de alguém tão abstrato.

–Entendo. – então ele passou a mão no meu rosto – Ele deve ter sido um cara bonito.

Fiquei desconcertado:

–Mi... minha tia disse que era. Parece que ela tinha um lance com ele e ficou muito puta quando ele ficou com a minha mãe... E acabou tendo que criar o filho dos dois... a vida é uma bosta mesmo, né?

–Não diga isso. – disse segurando meu rosto com as duas mãos – A vida é um milagre.

Ficamos parados nos olhando por um tempo. Parecia que havia uma conexão entre nós. Senti uma vontade enorme de beijá-lo, mas não tive coragem de me mover.

–Acho que estou ficando com fome. – eu disse – Tem alguma coisa na geladeira?

–Tem um tanto de macarrão que sobrou da janta.

–Eu vou esquentar um pouco pra mim, você quer?

–Não, obrigado. – ele disse soltando meu rosto.

...

Sozinha no quarto Natasha se permitiu chorar. Ela nunca gosteu de fazer isso na frente dos outros. Principalmente dos amigos. Sentir-se frágil não era sua sensação favotira... principalmente nesses raros momentos em que ela realmente se sentia devastada. Abafando o som do choro com o travesseiro e a música que tocava no quarto, Natasha chorou, chorou pela única e última vez, por aquela relação que havia acabado de morrer.

Não voltaria chorar, não voltaria a pensar no assunto. Amanhã estaria pronta para o trabalho, para os cursos, os planos do futuro e toda a vida que lhe restara... Amanhã... Hoje, no entanto, reservaria-se o direito de chorar e experimentar o mais profundo luto por todo seu amor que morreu.

...

André chegou quando eu estava prestes a terminar de esquentar a comida. O que me deixou praticamente sem nenhuma desculpa para não encará-lo. Fui até a sala, com o prato na mão e disse ao Michel:

–Quer que eu deixe vocês a sós?

–Não. Eu quero que você o conheça.

–Mas eu estou comendo, não vai ficar feio?

–Relaxa, quando ele chegar você vai ver que ele não tem dessas convenções.

–Ok.

Me apoiei na parede e ficamos em silêncio enquanto esperávamos que ele subisse. De súbito meu estomago pareceu embrulhado demais para receber aquele macarrão. Voltei e guardei o prato na cozinha... talvez mais tarde...

Quando voltei Michel estava abrindo a porta:

–Olá. – ele disse.

Cumprimentaram-se com um selinho. Não cheguei a vê-los fazendo isso, mas ouvi o barulho. Tentei me convencer de que não devia me incomodar com isso, afinal, era evidente que eles iriam fazer sexo em breve, então um selinho não devia me incomodar... mas o fato é que aquilo me acertou como um tiro.

Foi como se tivesse de realmente encarar o fato: Michel tinha alguém... e esse alguém não era eu.

Andei timidamente até a sala e o encarei pela primeira vez. Meu primeiro impulso foi odiar absolutamente tudo nele. O cabelo não era tão maneiro quanto Michel havia descrito, as roupas... um pouco mal combinadas e os olhos... os olhos dele pareciam bem legais. Vivos, expressivos, cheios de curiosidade e fogo:

–Oi. – eu disse meio timidamente.

–André, esse é o Flavius, o namorado do Fip.

“O Namorado do Fip”... então esse sou eu? O namorado do Fip? Essa é minha identidade? É por esse rótulo que as pessoas me reconhecem?

–Ah, então você é o famoso Flavius? Eu tava super curioso pra te conhecer! – ele disse me dando um caloroso aperto de mão.

–Por que? – perguntei.

–O Michel falou muito de você.

Ele tinha um jeito desconcertante de nos encarar nos olhos.

–Falou é?

–Sim, você parece ser um cara massa!

–Pareço?

De onde ele tirou tantas conclusões a meu respeito tendo me visto tão pouco? Pareceu-me absurdo, mas não deixei de me sentir lisonjeado. Afinal, é possível que eu cause uma boa primeira impressão. E isso... bem, isso me deu alguma esperança:

–Ele é. – disse Michel – Você vai ter certeza disso quando tiverem tempo de se conhecer melhor.

Será que Michel tinha pedido a ele que dissesse isso? Ou pensar isso revela um nível de paranoia que eu não devia ter?

–Bem... – eu disse – Espero que tenhamos essa oportunidade no futuro, mas agora eu preciso mesmo me deitar. Boa noite pra vocês. Foi um prazer, André. Sinta-se em casa.

–Obrigado fofo.

Caminhei para o quarto um pouco atordoado. André, na verdade era um rapaz bonito. Ele se parecia um pouco com o que eu penso que seria se tivesse crescido numa cidade como essa. Se tivesse tido as referencias e oportunidades certas... Ele poderia ser um bom amigo, talvez. Na verdade, agora que o havia conhecido, podia me sentir feliz pelo Michel. Pelos dois. Parecia-me justo que eles fossem felizes... juntos.

Cheguei no quarto e Fip ainda estava acordado. Sentado sobre a cama com um bando de caixas abertas, nelas fotografias, bilhetes, papéis coloridos, pequenas lembranças:

–Remoendo o passado? – perguntei.

–Sim... trazendo algumas lembranças a tona.

–Foi o telefonema do seu pai, não foi?

–Acho que sim... me fez querer voltar atrás e olhar tudo com outros olhos. Talvez eu tenha perdido alguma coisa...

–E obteve algum progresso?

–É estranho como nossa memória pode ser seletiva, sabe? De repente, mexendo nessas coisas, lembrei de vários momentos afetuosos que tive com meu pai. Momentos que nem sequer circulavam minhas memórias.

–Sério? Como o que?

–Ah, pequenas coisas. Não saberia contar.

–Quer ficar sozinho?

–Não... senta aqui. Eu já estava quase terminando. O tal namoradinho do Michel está ai?

–Tá sim.

–E o que achou dele?

–Ele parece ser legal.

–Gostei dele também.

–O que é isso? – Disse pegando um papel um tanto amassado com uma escrita em vermelho.

–Ah, é uma carta escrita em sangue que um menino da escola uma vez me mandou.

–Jura?

–Ahahaha, sim! Essas coisas que a gente faz quando é adolescente. Ele dizia que me amava e essas coisas.

Olhei para a carta e a li com uma profunda reverencia. Na verdade admirando mais o gesto que as palavras nela escritas. Era como uma relíquia sagrada para mim. Imagine só, por mais adolescente e dramático que possa soar... amar alguém a ponto de querer expressar isso com o próprio sangue... há uma simbologia maravilhosa nisso! De uma poesia impar.

–É tosco, não é? Nem sei por que guardei.

–Não! – respondi – É lindo! Ninguém nunca escreveu uma dessas pra mim! Posso ficar com ela?

–Sério, Flavius?

–Sim! Você mesmo disse que acha tosca.

–Acho mesmo.

–Sei lá, achei isso tão romântico.

–Ahahahaha, ai Flavius, só você mesmo. Mas essa carta de amor é pra mim. Devolva.

–Tudo bem... E isso aqui, o que é?

–É um rascunho, da época que eu desenhava.

–É bonito. O que são? Rosas?

–Sim, sempre gostei de desenhar flores. Rosas. Gay, né? Eu lembro que uma vez fiz um desenho enorme, numa dessas folhas grandes, eram pétalas e mais pétalas voando... como naqueles desenhos japoneses, sabe? Tinha ficado tão lindo. Mas eu perdi... não sei onde está.

–Deve ter ficado lindo.

–Ficou. Esse eu me arrependo de não ter guardado.

–Você devia voltar a desenhar.

–Pra que?

–Pra mim.

–Meu bem, eu faria muitas coisas por você... mas voltar a desenhar, definitivamente, não seria uma delas.

–Tudo bem, posso conviver com isso.

...


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