Sangue escrita por Salomé Abdala


Capítulo 73
Capítulo 71 – Um lar.




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–E como estão os dois? – perguntou Artur sem tirar os olhos do vídeo game.

–Estão vivos. O resto é mimimi. Eles vão se acertar.

–Mas a briga não foi feia dessa vez?

–Sempre é. Sei lá, faz parte do jeito deles de se gostar. O Chico ficou bem uns dois dias sem andar direito. – disse rindo – Agora tá tudo bem. O Flavinho que não voltou mais pra casa. Ninguém sabe direito onde ele tá dormindo, mas o Michel foi encontrar com ele na porta da escola e parece que tá tudo bem.

–Diz pra ele que ele pode ficar aqui se quiser. Não é muito grande, mas é melhor que ficar por aí, se arriscando sem ninguém saber onde é.

–Eu tinha até pensado nisso, mas não sabia se você ia curtir a ideia.

–Ah, a gente quase não fica em casa mesmo.

–Sabe de uma coisa? – a moça disse com um sorriso tímido – Com a promoção eu vou ganhar quase o dobro, sabe? Eu fiquei pensando que... sei lá, talvez a gente pudesse alugar um lugar maior... tipo, pra nós dois.

–Sério?

–Sim. Eu já passo a maior parte do tempo aqui mesmo. Pelo menos a gente fica melhor instalado e...

O rapaz a interrompeu com um beijo demorado. Fazia tempo que Artur tentava convencer Natasha de que ambos mereciam um lar. Suas mãos enroscaram o corpo da garota numa dança que convidava ao sexo. E ambos se enlaçaram como duas serpentes numa sublime comemoração pelos dias que viriam. Natasha hesitou em se entregar a profunda felicidade que sentia. Pensou em Fip, no seu olhar perdido sem o dela, mas se obrigou a dar de ombros. Ela tinha seu próprio caminho a seguir. Sorriu de todo o coração quando seu olhar se encontrou ao de Artur... Havia encontrado um caminho para seu lar.

...

–E como andam as coisas? – perguntou Raíque se sentando ao seu lado com um sanduíche nas mãos.

–Como sempre estiveram... eu acho. – respondeu Flavius – Por que?

–Você tem me parecido triste nos últimos dias.

–Tive umas brigas com meus companheiros de quarto.

–Normal. Também brigo muito com meus irmãos.

–Mas irmão é diferente. Irmão você sabe que vai continuar a amar não importa o que aconteça... eu acho. Mas quando você briga com um amigo não. Você sabe que alguma coisa se rompe e não pode mais voltar atrás.

–Bobagem.

–Não... a briga foi feia. Bati nele, gritei, disse coisas que não devia. Depois disso não voltei mais para casa. Tenho ficado de favor na casa de um outro amigo. Mas não posso continuar lá por muito tempo. Meio que não sei pra onde ir.

–Eu poderia te chamar pra dormir na minha casa por uns dias. Mas acho que você tem que resolver isso. Não vai poder ficar pulando de casa em casa pra sempre. Se eu fosse você ia até lá e pedia desculpas... sei lá. Você tá arrependido?

–Mais ou menos. Ele meio que mereceu, mas eu exagerei.

–Não existe isso de merecer ou exagerar. Pessoas brigam. Você deve ter tido seus motivos. Então vá lá e coloque os pingos nos is.

...

–Agora respire e relaxe – disse o professor.

Michel fechou os olhos para sentir melhor a musculatura se soltar. O chão de tablado exalava um cheiro molhado, cheiro de vida antiga. Algo que o fazia se lembrar do seu casarão em Alvinópolis. Sua antiga casa... há quanto tempo não a visitava?

As coisas com seus pais pareciam se endireitar aos poucos, mas a verdade é que ele ainda não se sentia pronto para reatar esses laços. O que eles haviam feito estava muito longe da sua capacidade de perdão, e ele não queria manter com eles relações de aparências.

Abriu os olhos e respirou mais uma vez. A sala estava cheia de amigos. Companheiros de palco. Pessoas das mais distintas idades e histórias que dividiam esse espaço sagrado com o coração aberto. Possivelmente não se relacionariam em nenhum outro lugar, mas sob a luz do teatro qualquer relação lhe parecia possível. Ali, sobre o tablado frio, todos os sorrisos eram sinceros e todos abraços acolhedores. Formavam uma irmandade.

O corpo suado dos exercícios anteriores se deixava relaxar devagar. Podia até morrer ali, entre os seus. Eram como seus irmãos. É certo que, terminados os ensaios, as aulas, os espetáculos, cada um seguiria sua vida, seu destino. Alguns talvez jamais tornasse a ver. Mas o teatro efetiva entre as pessoas uma espécie de vínculo universal que Michel jamais conseguiu compreender... o laço construído com aquelas pessoas seria indestrutível... mágico. Sentia que poderia encontrar qualquer uma daquelas pessoas daqui a vinte, trinta anos, e, por mais distintas que tivessem sido suas vidas, ainda haveria algo no encontro do seu olhar cuja cumplicidade não poderia ser sentida por mais ninguém. Pois ambos haviam experimentado juntos a mágica. Haviam entregue suas almas ao momento, e estariam para sempre encantados.

Fechou os olhos e respirou mais uma vez. Por toda a vida encenou o papel do filho perfeito, do menino de ouro, da boa cria. Por toda a vida interpretou um papel que lhe havia sido entregue. Mas decidiu abandonar todas as máscaras para encenar a verdade. A verdade de sua vida. E agora, sobre os palcos do destino, havia encontrado uma forma sagrada de mentir. Decidiu que seguiria a vida encenando, mas de maneira distinta da que encenava antes. A partir de agora encenaria com orgulho e verdade. A partir de agora começara a viver.

...

Quando cheguei do ensaio ele estava lá. Sentado no sofá. Tentei me fazer de durão e fingir que não estava feliz em tê-lo de volta. Mas a verdade é que meu coração voltou a sorrir.... ok, sério que eu escrevi essa breguice? Meu divino pai eterno, onde eu fui parar! Mas bem, foi mais ou menos isso que aconteceu mesmo. Passei dias infernais sem saber onde Flavius estava, se estava comendo, dormindo, se estava sendo bem cuidado. Não sabia se ele ainda estava na cidade ou se tinha voltado a Alvinópolis... se um dia ia voltar a querer me ver... Simplesmente passei um inferno. Rondando entre a preocupação comigo mesmo, o medo de perde-lo e o medo de que algo de grave lhe pudesse acontecer perdido por ai... pela cidade... sem rumo...

Mas agora ele estava ali, diante de mim, com aquele olhar de quem pede desculpas. Eu poderia dizer que quem lhe devia desculpas era eu, mas dessa vez ambos fomos longe demais. Por isso me forcei a secar o sorriso e disse com a máxima frieza que conseguia dissimular:

–Veio buscar suas coisas?

Ele me encarou um pouco desconcertado e disse:

–Se você preferir assim posso arrumar minhas malas.

–Tanto faz.

Que mentira! Jamais desejei que ele fosse embora, meu desejo verdadeiro era me sentar ao seu lado, abraça-lo e permitir que tudo voltasse a ficar absolutamente bem. Mas quando se trata de relacionamentos gostamos de fazer esses teatrinhos de ego, para manter o orgulho em dia:

–Bem... então é isso? – ele disse – É um fim?

–É o que me parece, não? Ou por acaso você já não tem mais onde ficar e resolveu tentar recuperar seu teto?

–Não é isso... eu vim, sei lá... tentar resolver as coisas.

–Que coisas? O que temos pra resolver? Pra mim ficou tudo bem resolvido, ficou bem claro o que você pensa de mim. Pra que insistir nisso?

O que diabos eu estou fazendo? Não é bem assim que se resolvem as coisas, né? Mas eu sinto um prazer macabro em ver as pessoas me pedindo perdão, mesmo quando eu estou errado. Há algo de errado nisso?

–Fip, você sabe que não é bem assim. Eu... eu estava nervoso e...

–E deixou a verdade escapar. Foi só isso. É simples.

–Não é bem assim.

–E como é então?

–Eu estava machucado, queria te machucar de volta. Acabei falando demais... foi isso... sei lá.

–Bem, é isso. E agora? O que você quer?

–Queria pedir desculpas... eu sei que exagerei.

–Está desculpado.

–...

–É só isso?

–É. – ele disse num tom definitivo e se levantou – Quer dizer... era. Sei lá! Vim pedir desculpas. Não vim rastejar e implorar perdão. Você bem que mereceu uma boa parte daquilo e sabe disso. O recado está dado. Se quiser aceitar minhas desculpas ótimo. Se não vou embora.

Nesse instante eu percebi que também precisava descer um pouco do pedestal para que a coisa funcionasse:

–Senti sua falta.

–Eu também.

–Então vamos deixar de besteira e vamos nos entender logo?

–Por favor.”

...

–Sabe de uma coisa? – ele disse enroscado em meus braços – Entrei com a papelada esses dias, vou comprar esse apartamento pra gente.

–Do que você está falando?

–Vou comprar esse apartamento, pra nós dois. Ele vai ficar no nosso nome, como se estivéssemos comprando em sociedade. Será nosso. O que acha?

–Você está louco, Fip? Não pode desperdiçar assim o seu dinheiro!

–Comprar imóvel nunca é desperdício de dinheiro, meu amor. De um modo ou de outro o dinheiro sempre acaba compensando. Mas não é isso que importa agora. Estou te perguntando o que você acha...

–O que eu acho do que?

–Não importa o quanto briguemos, o quanto nos irritemos um com o outro, essa casa sempre será de nós dois. E se um dia alguém tiver de sair daqui, esse alguém serei eu. Não quero imaginar você vagando por ai nessa cidade sem ter onde ficar. Quero te dar um lugar para chamar de seu.

Fip era a espécie de pessoa mais absurdamente insana que eu já conheci. Com essas sincopes de generosidade que vez ou outra explodiam dele. Que despropósito esse de comprar um apartamento! Ou talvez eu que fosse demasiado pobre para conceber que alguém pudesse assim, simplesmente decidir comprar um apartamento, como quem decide comprar um pão de manhã. Por mais que ele tivesse herdado uma fortuna, eu não conseguia conceber que ele pudesse ser tão rico! Isso me assustava um pouco:

–Fip, isso é loucura!

–Loucura é deixar-te partir. – disse me dando um beijo no rosto – Natasha talvez vá se mudar para viver com o Artur. Se isso acontecer você fica com o quarto dela.

Mirei seus olhos com olhar de espanto, como que me respondendo ele disse:

–Claro que sim. Por que não? Você precisa ter seu canto. Eu fico me lembrando do seu quarto, na sua casa em Alvinópolis. Era tão cheio de você, da sua personalidade. Aqui nada tem a sua cara. É preciso que esse lugar tenha um aspecto seu, afinal é sua casa. Não se esqueça disso, entendeu? Essa é sua casa. Não importa o quão feia a coisa fique entre a gente... você nunca, nunca vai precisar sair daqui com uma mão na frente e outra atrás como fez nesses dias.

–Fip...

–Está decidido. Vou preparar nosso café da manhã.

E lá fiquei eu plantado digerindo a nova informação. “Um lar” essas palavras soavam com um gozo inesperado. Nunca planejei ter nada de meu na vida. De repente senti que era um pouco mais alguém. Soava um tanto inacreditável, absurdo e quase blasfemo, mas talvez fosse verdade: eu teria algo meu. Fip constantemente me fazia lembrar o porque de eu estar tão ligado a ele. O porque de eu amá-lo. Residia nele essa faceta oculta. Por mais que ele passasse a maior parte do tempo preocupado com o próprio umbigo, ele as vezes nos surpreendia com essas atenções. Como quando acolheu Natasha, Michel... eu... ele o fazia sem ressalvas. Entregava seu lar a estranhos sem demonstrar o mínimo desconforto. Há uma grandeza nisso. Uma grandeza que nunca conheci em mais ninguém. Fip era um grande homem, um homem como jamais serei. Ele era meu lar.


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