Sangue escrita por Salomé Abdala


Capítulo 72
Capítulo 70 – O que quero então?


Notas iniciais do capítulo

Pessoal, me desculpem pela eterna demora. Estive a me mudar de cidade e estado. Agora moro em Santa Catarina. A mudança me tomou bastante tempo e, fora isso, estive alguns meses sem internet... fora outros contratempos que demoraria para explicar. O fato é que agora estou de volta e prometo retomar essa história com a seriedade que ela merece. Obrigado a todxs que acreditam e acompanham esse pedaço de mim.



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Abri a porta devagar para não acordá-los. Flavius, Natasha e Michel dormiam aninhados uns aos outros em meio a bagunça da sala. Por qualquer razão aquilo me incomodou: os copos jogados, as manchas no chão, a bagunça... Aliás... a bagunça de nada me importava na verdade. Estou tentando enganar a quem? Nunca fui de organizar coisa alguma. Mas então o que me fazia o sangue ferver? Seria a expressão desavergonhadamente feliz dos três? Imaginar esses filhos da putinha dançando, brincando e cantando enquanto eu estava fora? Em uma cumplicidade que não pertencia a mim...

Bem, para dizer a verdade, imaginar essa palhaçada me deixava mesmo possuído. A ponto de querer armar um escândalo. Mas sinceramente, o que eu queria?... Bem sei, queria encontrar um Flavius abatido, desgraçado e desolado. A minha espera. Humilde e complacente, com suas pernas trêmulas e olhares fugidios. Mas meu menino já não age como um menino... está tomando ares de senhor do próprio templo.

Mas um senhor verdadeiramente sem vergonha! Todo aninhado ao Michel. Já foi buscar consolo em outros braços. Mas bem sei que mereço. Por mais que o sangue me ferva o sangue preciso aceitar. Mordi a raiva com as forças que tinha e fui até a cozinha preparar um chá. Mexendo com as panelas não tomei qualquer cuidado em poupar os dorminhocos. Barulho fiz o que pude. Deixei panela cair, esbarrei em prateleiras, derrubei prataria. Fiz tudo que estava a meu alcance, mas nenhum filho da puta acordou. Pelo sono pesado que tinham, haviam realmente passado da mão na noite anterior... Putos desgraçados!

Com o chá na mão fui para o quarto mordido de raiva. Flavius, aparentemente, não chegou a se incomodar com minha ausência.... Mas sinceramente... o que eu queria? Tomei o chá quase que de um só gole, e me revirei na cama por algumas horas antes de cair no sono. Todo esse turbilhão me invadia a cabeça. Michel, Flavius, Manuel. Eu...

Eu estava mesmo a ser um puto, não é? Mantendo esse romance as escondidas de Flavius por tanto tempo. Estava brincando com a sorte. Sei que entraria em colapso sem meu menino, então por que me entregar assim a essas brincadeiras? Sei que não me arrependo nem um pouco que seja. Nenhum segundo que passei com Manuel foi digno de arrependimento. Estar com ele era algo que eu necessitava de toda alma.

Manuel é um bailarino experiente, um homem e artista feito. Alguém que almejo ser no futuro. Estar tão intimamente ligado a ele me fez firmar o chão abaixo dos meus pés e consolidar o sonho que tenho de dançar. Tudo nele me inspira a buscar ser um profissional cada vez melhor. Ao lado de Flavius, por sua vez, sinto-me desleixado, passo dias e dias sem treinar, ensaiar, nem me preocupar com nada a não ser estar a seu lado. Flavius é um lar. Em seus braços sinto que não preciso de mais nada. Mas com Manuel sinto o quanto preciso ser eu.

As vezes penso que Flaviuse eu nos tornamos tão íntimos, tão próximos, tão um do outro, que, quando me olho no espelho não sei qual de nós dois vejo. Quando ele anda pela casa, de cuecas com sua camiseta cumprida, não sei se são deles ou minhas as pernas que o sustentam. E essa relação quase simbiótica acaba por me impedir ou me fazer esquecer quem sou.

Ao lado de Flavius esqueço de me orgulhar de minha técnica, meu sonho, esqueço de almejar ser o primeiro bailarino da companhia. Desejo que as turnês não se realizem, para que eu não tenha de dormir em outras camas que não a dele. Odeio ter de ensaiar todas as tardes em um tablado onde ele não está. Ao lado de Flavius odeio tudo que sou. Porque toda essência que me torna eu acaba por me afastar de seus braços.... acabam por secar nosso amor.

Com Manuel, por outro lado, vejo-me através de meus próprios olhos. Vejo o bailarino que quero construir para agradá-lo e, talvez até superá-lo. Vejo as ambições me subirem as faces e o desejo de jamais abandonar a sala de ensaio me preenche por completo. Ao lado de Manuel almejo por um corpo melhor, um plié perfeito, uma pirueta bem finalizada. Ao lado dele encontro um companheiro de jornada, não um lar.

E o que me inspira mais? Um leito aquecido ou uma estrada que desaparece no horizonte? As vezes ouso odiar Flavius por amá-lo tanto. Ao seu lado meu coração descansa. Mas sinto-me deveras jovem para repousar desse modo. Viver assim é como morrer. Mas essa morte é melhor que qualquer vida que já vivi... o que quero então?....

...

Fip acordou quando sentiu o movimento no colchão. Era Flavius quem se deitava ao seu lado, cabelos molhados, corpo cheirando a banho. O calor que vinha das paredes denunciava que já passava do meio dia. Por isso o bailarino pensou que talvez fosse hora de se levantar. Ao seu menor movimento Flavius abriu os olhos e o encarou longamente:

–Boa tarde. – disse.

–Boa tarde. – respondeu Fip – Que horas são?

–Quase quatro.

–Sério? Puta que pariu! Dormi muito! Natasha e Michel estão ai?

–Natasha foi para casa do namorado. Michel saiu com uns amigos.

–Hmmm. Então estamos sozinhos? – disse Fip colocando a mão do garoto em seu membro que jazia ereto por debaixo dos lençóis – Veja como acordei.

–Não ouse tocar em mim. – disse o garoto friamente enquanto tirava a mão do falo do rapaz – Se acordou assim que chame seu outro garoto, seja quem for, para saciá-lo. Pelas marcas que ele te deixou me parece que ele sabe fazer isso muito bem.

–Meu amor. Eu não queria machucar você.

–Vai pra puta que te pariu, Fip. Vai pra puta que te pariu!! Não me venha com essa conversinha de que não queria me machucar! Você bem sabia qual seria o resultado de tudo isso! Não venha se fazer de vítima a essa altura da história!

–Não estou me fazendo de vítima eu só...

–Cala sua boca! Você foi se deitar com ele! Depois de tudo que conversamos! Depois de tudo você foi de novo se deitar com ele! Você não dá a mínima pro que eu sinto! Você não dá a mínima pra ninguém! A única porra que te interessa é ter um lugar pra enfiar essa merda! – disse acertando um chute no meio das pernas do bailarino que soltou um urro de dor enquanto se contorcia pela cama – Você é um bosta, Fip! Um bosta! Eu odeio você! Odeio! Você vive falando do cretino do seu pai, do quanto ele era hipócrita, safado, que ele vivia traindo sua mãe e tudo mais! E você é diferente dele em que? Acha que porque somos dois garotos a sua traição é menos cafajeste? Você continua a ser um animal egoísta exatamente como o seu pai! Muito me admira que vocês dois não sejam grandes amigos! E quer saber de outra coisa? Antes eu até te sentia alguma dó quando você me contava o quanto seu pai malvado te batia e tudo o mais! Já cheguei até a ter ódio daquele velho, mas quer saber? Hoje eu penso mais é que ele tinha razão! Porque é humanamente impossível conviver com a merda que você é sem querer te enfiar uma porrada nas fuças de vez em quando! Seu bosta!

Fip tentou formular qualquer resposta, mas a dor lancinante que vinha de seu membro o impedia de respirar. Flavius saiu do quarto como um relâmpago e ambos não voltaram a se ver pelo resto do dia.

...

–E depois? – perguntou Manuel – O que você fez?

–Sai de casa. – respondeu Flavius – Estava me sentindo sufocado lá dentro. Desculpe ter te ligado. Mas eu não tinha com quem conversar. Sei lá, não queria ser repetitivo com Michel ou Natasha e não tenho outro amigo por aqui.

–Imagine. Você fez bem. Se quiser pode passar a noite aqui. Imagino que não vai querer voltar para casa hoje.

–Estive pensando se ia querer voltar para lá algum dia. Mas eu não tenho escolha sabe? Ou é isso ou Alvinópolis. E deus sabe que eu não quero voltar para lá. – sentiu um calafrio – Não... nunca mais. Mas como eu vou fazer? Eu não tenho trabalho nem nada. Não tenho como pagar um lugar pra mim, mas também não quero voltar a morar as custas do Fip... eu...

–Calma rapaz. Uma coisa de cada vez. Ainda é cedo para ir tão longe. Primeiro coloque sua cabeça no lugar.

–O Fip deve estar puto comigo. Pelas coisas que eu disse, sei lá.

–E você ainda está preocupado com ele? É você quem deve estar puto com ele e não o contrário!

–Mas sei lá. Eu exagerei. No fundo eu fui meio idiota.

–Não Flavius, você reagiu. É normal. E se o Fip está com raiva problema dele! Você foi atacado primeiro.

–Mas não justifica o que eu fiz. Estou me sentindo mal. Sei lá, eu gosto dele.

–Não, não. Não fale mais nada. Estou começando a ficar com raiva de ti. Pare de pensar que quem está errado é você. E tome esse leite antes que esfrie.

–Obrigado, mas o leite não está me caindo bem. Quando fico nervoso meu estomago fica mal. Desculpe.

–Não se desculpe tanto. É um direito seu não querer.

–Mas é que você está sendo tão legal comigo. Sei lá. A gente mal se conhece e você me acolheu aqui, tá me ouvindo tem um tempão, tentando me ajudar... eu não vou me esquecer disso, Manuel. Sério, vou ser pra sempre grato.

–Não é necessário. De verdade.

–Mas sabe o que mais dói? Nem é ele ter tido esse caso por todo esse tempo e tal. É estranho, mas isso nem me incomoda tanto. Me dói ele ter ido atrás do cara ontem a noite. Porque tipo, antes quando eu não sabia e ele saia com o outro... é estranho falar isso; “o outro”, soa meio esquisito, né? Mas enfim, quando ele saia antes com o outro cara, não era como se ele estives querendo me machucar. Sei lá. Eu não sabia de nada, então não me incomodava, entende? Mas quando ele foi atrás do cara comigo já sabendo de tudo... eu não sei, doeu mais. Foi como se ele realmente tivesse me traído. Como se ele não desse a mínima pro que eu sinto.... Sei lá, ele nem fez questão de disfarçar. Mas por outro lado eu prefiro que ele seja sincero... Mas não sei... não sei... tá tudo muito confuso.

–Calma, você está com um nó na cabeça agora. Tente não pensar tanto. Mas se você quer um conselho; não vá embora. Você e o Fip se gostam. Ele ama você de verdade. Não digo que você tem que aceitar as aventuras dele, mas se você mesmo diz que entrou nesse namoro sabendo que seria assim... bem, então que seja. Ele não vai mudar. Então mude você a perspectiva que tem das coisas. Comece a ter suas próprias aventuras também.

–Não sei. Isso não é muito do meu feitio. Também penso que o Fip não aceitaria.... Ah, sei lá. Não quero pensar muito.

–Apenas pense no seguinte: no fim das contas o que pesa mais? A dor que está sentindo agora ou a felicidade que ele te traz?

–Agora a dor. Talvez amanhã o amor... se o rancor não for nublando o que sinto por ele.

–Pois bem, é isso que você tem que avaliar nesse momento. O resto só pode ser ajeitado por vocês dois.

–Você tem razão, Manuel. Agora acho que vou deitar um pouco, minha cabeça está girando com tanta coisa. – disse se levantando – Ei. Manuel. Posso te fazer uma pergunta?

–Quantas quiser.

–Você sabe quem é, não sabe? O outro garoto.

Manuel engoliu em seco e disse:

–Isso faz diferença agora?

–Não sei. As vezes penso que eu queria saber. Outras vezes penso que é melhor deixar assim mesmo. Me sinto estúpido em ser o único que não sabe.

–Você não seria estúpido nem se tentasse garoto. Agora vá deitar um pouco. Minha cabeça também começou a girar.

...

–Alô? Gabriel? – disse Flavius pendurado ao orelhão – Preciso falar rápido antes que o cartão acabe. Não, eu quebrei meu celular, não tenho como ligar dele. Escuta. Estou ligando para avisar, eu não vou voltar pra casa. Não. Não vou. Decidi ficar. Sim, isso é um adeus. Lamento que seja desse jeito, depois te explico tudo melhor. Mas por enquanto é só o que tenho a dizer. Não me espere de volta, está decidido.

Desligou o telefone antes que o rapaz respondesse. Pensou que deveria sentir medo, deveria estar inseguro, mas não. Seu peito não tinha tempo para medo ou qualquer arrependimento que fosse. Seu peito só tinha tempo para pulsar Michel. Os erros e as dores do passado de certo serviriam para guia-lo por um futuro melhor. Isso lhe era merecido. Não importa o que houvesse, ele tinha as armas necessárias para fazer com que isso desse certo.

“Está feito” – pensou – “Está na hora de tentar.”


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