Sangue escrita por Salomé Abdala


Capítulo 70
Capítulo 68 – Laços partidos.




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Logo assim que o almoço terminou voltei ao teatro para meu curso de interpretação. Flavius foi para casa de carona com Artur. Fip e Manuel voltaram ao ensaio, dessa vez ensaio de verdade, e, em questão de segundos me vi sozinho. Aproveitei que estava adiantado e segui caminhando até o teatro. Sempre gostei de caminhar pela cidade, principalmente no frio... Coloca meus pensamentos em ordem:

–Michel! Me espera ae!

Olhei para trás, era André, um amigo do curso. Ele vinha correndo do seu modo desengonçado tentando evitar que a mochila caísse enquanto corria. Trazia um sorriso besta na boca enquanto seus cabelos, metade na altura dos ombros e outra metade quase raspados, sacudiam ao vento:

–O que aconteceu com seu cabelo? – perguntei.

–Comecei a cortar e deu preguiça no meio do caminho. Deixei assim.

Ele deu de ombros com se todas as pessoas do mundo costumassem fazer isso. André tinha disso, uma excentricidade natural que me enchia os olhos. Não tinha nele aquele ar de querer parecer “louco” para chamar atenção. Tudo no seu jeito estranho era, perdão pela repetição de termos, estranhamente natural. E isso fazia dele um cara muito interessante:

–Ficou bom. – menti com um fundo de verdade. Havia algo no conceito daquilo que me atraia, mesmo que não fosse verdadeiramente bonito.

–Valeu. Indo mais cedo pra aula?

–Almocei com uns amigos, aproveitei que tava perto pra já ir.

–Entendi.

Ele tinha uma tatuagem na nuca, um peixe alado. “Sou um peixe voador” – ele dizia – “Porque aprendi a viver fora d`água sem sentir dor.” Ri ao lembrar disso. Tinha uma poesia sinistra na frase. Algo que eu gostaria de aprender. Como uma pessoa podia ser tão desprendida do desconforto que sua estranheza causava às outras pessoas?

–Preparou algo pra hoje? – perguntei.

–Não, tinha que preparar alguma coisa?

–Não sei, acho que era pra começar a escolher um texto pra cena que vamos montar.

–Vish, nem olhei isso.

–Também não tive tempo.

...

“Flavius estava sentado no sofá lendo algum dos seus livros bobos. Fiquei me perguntando como ele conseguia passar o dia todo emergido nessa inércia cretina? Lendo, escrevendo, ouvindo música, pensando... não é a toa que ele é tão deprimido, passa muito tempo dentro de si, isso não pode fazer bem. Gostaria que ele se aventurasse mais, saísse mais desse casulo, isso talvez o tornasse uma pessoa mais interessante:

–De novo esse livro? Já não leu esse? – perguntei.

–Sim, mas não tinha mais nada pra ler.

–Então por que não foi fazer outra coisa?

–Tipo cuidar da minha vida?

–Wow, parece que alguém aqui está ficando arredio.

–Só estou cansado de você sempre me criticando.

–To gostando de ver. Antigamente você se sentaria no chão e choraria.

–Isso foi o esboço de um elogio?

–Isso foi um elogio. Fico feliz em ver que está aprendendo a se defender. Assim vai se machucar menos.

–Rebater um golpe não faz com que ele doa menos.

–Mas ainda é melhor que guardar a dor pra si.

–Discordo. Acho que aprender a rebater só muda o modo como as pessoas me veem, mas não muda o modo como eu me sinto.

Talvez ele tenha razão. Ser forte não é um mérito do qual tenhamos que nos orgulhar. Acabamos sendo obrigados a encontrar força quando a situação exige. Mas, por trás de toda fortaleza reside uma angústia de potência maior ou igual à muralha que a protege. Flavius está aprendendo isso, mas talvez isso não mude nada. Eu sou um idiota ao acreditar que o estou ajudando. Olho para dentro de mim e sou obrigado a reconhecer, talvez eu seja tão ou mais frágil que ele. O fato de eu esconder minha dor não a impede de existir... Flavius não é mais frágil que eu... simplesmente é mais honesto... E percebi isso como quem leva uma bofetada. Talvez ele tenha mais a me ensinar que eu a ele:

–Desculpe.

–Pelo que?

–Por só te criticar. Juro que vou tentar mudar.

–Faça esse favor a nós dois.

Senti certo ar de estafa em seu olhar. Ele está se cansando de mim. De repente me lembrei de meu pai, sempre criticando meu jeito de andar, falar, pensar, agir. Era esmagador! Poderia eu estar a colocar o mesmo peso sobre as costas do Flavius? Meu pai... parece que quanto mais o odeio mais tendo a agir como ele. Penso em Manuel... meu pai também era cheio de amantes. E eu o odiava por isso, por sua hipocrisia, por mentir para minha mãe. Por sua cara de pau... Estarei sendo um grande hipócrita? Talvez eu devesse contar tudo ao Flavius... ser honesto com ele ao menos:

–Tenho sido um péssimo namorado, né?

–Você é uma péssima pessoa, Fip, mas já aprendi a lidar com isso.

Dessa vez recebi a frase como um soco no estômago:

–Como assim uma péssima pessoa? Oque eu faço de tão mau?

–Você é egoísta, é mesquinho, exige que o mundo gire em torno de si e tudo o mais. Você fala e faz coisas para machucar. Não é porque você queira que eu seja forte ou porque você acredite que está ajudando. Na verdade você faz pra machucar, porque isso te dá algum tipo de prazer. Sei lá, acho que te faz se sentir superior.

–Nossa! Jamais! Eu não faço isso! É assim que você me vê?

–Eu e quase todo mundo.

–Então por que está comigo?

–Eu gosto de você e pronto. Não é o tipo de coisa que se possa explicar.

–Mas se você gosta de mim tem que ser pelo que eu sou! Se você não gosta do que eu sou como pode gostar de mim?

–Ai Fip, sei lá! Ninguém é perfeito, você tem seus defeitos, eu tenho os meus, é assim!

–Simples assim?

–Simples assim.

Como pode? Os defeitos do Flavius me irritam profundamente! Passo o tempo todo a tentar muda-los. Como ele pode simplesmente aceitar e conviver com os meus? Não é justo! Ele não pode ser tão superior! Algo em mim deve incomoda-lo!

–Mas você não quer que eu mude?

–Larga de ser besta, Fip! Se você mudar você deixa de ser você! Eu estou namorando você e não uma ideia abstrata do que você poderia ser.

Aquilo me fez pensar instintivamente: e eu? Que espécie de Flavius eu namoro? O Flavius real ou um tipo de Flavius que só existe na minha cabeça? Será que mereço mesmo que ele goste de mim?

–Mas Flavius... eu... eu não estou sendo justo com você. Acho... acho que estou te fazendo mal.

–Isso quem decide sou eu. Não você.

–Você não pode decidir isso sem saber de tudo.

–Tudo o que?

–Estou te traindo.

Soltei a frase como um tiro. Arrependi-me de tê-la dito no mesmo instante em que a disse. Mas, visto sua expressão percebi que não podia voltar atrás. Mas eu devia isso a ele. Devia-lhe a verdade, para que pudéssemos continuar juntos sem ressalvas... SE ficássemos juntos:

–Co... como assim?

–No tempo que você passou em Alvinópolis... eu... sei lá. Pensei que você não fosse voltar... Pensei que era o fim. Acabei me envolvendo com outro cara. Meio que.... sei lá... pra não pensar em você.

As palavras que saiam da minha boca eram totalmente diferentes das que eu imaginava na minha cabeça. De repente me vi mentindo, encobrindo, contando meias verdades para me justificar. Não é o tipo de reação que eu me imaginava tendo, mas na hora aconteceu. Sua expressão era um misto de surpresa, dor e raiva que eu não conseguia ler. Seus lábios perderam a cor e suas pernas começaram a típica tremedeira que tanto me irritou em outros tempos:

–Mi... Michel? – ele perguntou em um tom lívido.

–Não! – respondi prontamente – Michel não! Nenhum de nós faríamos isso a você!... De novo... Quer dizer, quando ficamos eu e você ainda não namorávamos e... bem, depois que namoramos eu e ele não ficamos mais, juro!

Menti, mas julguei ser o melhor a se fazer. Sua expressão pareceu amenizar. Ouso dizer que seus lábios voltaram a cor natural. Ele quase sorriu quando levou a mão ao peito num sinal de alívio.

–Ai Fip. Sei lá. Estávamos longe! Nem eu mesmo tinha certeza se estávamos juntos. Tudo aconteceu tão rápido... não sei, talvez eu não tinha tido nada com ninguém porque estava em Alvinópilis e... bem... você sabe, lá não tem ninguém. Mas talvez se fosse o contrário... sei lá... pode ser que eu tivesse tido alguém também... Não sei.

De repente me dei conta; ele ainda gosta do Michel! Suas palavras soaram muito diferentes do que sua expressão inicial sugeriu. Ele estava lívido, enfurecido! Ao saber que não o traí com Michel pareceu nem se importar mais com o assunto. Sequer desejou saber quem era o outro! Isso porque, talvez, ele não sinta ciúmes de mim, mas sim dele! Talvez ele nem mesmo goste de mim de verdade...

–Não é tão simples, Flavius. Não foi algo que eu tive e que passou. Ainda estou com ele.

Seus olhos se arregalaram. Seus lábios tornaram a perder o rubor... talvez ele se importe, talvez se importe um pouco com nós dois:

–Então... isso é.... isso é um fim?

–Um fim?

–Você gosta dele é isso? Está me descartando?

–Não! Não! Eu amo você! Eu quero você!

–Então por que está me contando?

–Como assim? Porque não quero mentir pra você! Quero que você saiba!

–Pra que? Você pretende terminar com ele? Pretende terminar comigo e não tem coragem ou está com medo que eu descubra sozinho e tire minhas próprias conclusões?

–Eu quero ser honesto com você!

–Ser honesto comigo? Agora? Faz quanto tempo que você está com ele? Um, dois meses? Por que se incomodou em me contar só agora? Com qual propósito? Quer me descartar, é isso?

–Como assim? Por que não quero te fazer de bobo! Eu não quero terminar com você! Mas não acho justo que você continue comigo sem saber!

–Você já me fez de bobo!

–Mas quero arrumar as coisas... posso?

–Ok, suponhamos que eu acredite em você. Agora eu sei, você suuuuper se redimiu, e daí?

–E daí eu pergunto a você. Como ficamos?

–Como você quer que fiquemos?

–Eu não sei! Isso quem tem que decidir é você!

De repente me dei conta que realmente não sabia onde queria chegar com isso. Iniciei uma conversa que provavelmente não terminaria tão cedo... e já estava cansado dela. A expressão de Flavius era fria como uma estátua de mármore. Por que fui mexer nisso? Se estava tudo bem, para que estragar as coisas?

–Eu? Decidir o que?

–Se vamos continuar juntos ou não.

–Não seja ridículo, Fip! Ao que me parece já não estamos juntos há algum tempo!

–Claro que estamos!

–Claro que não! Se você está gostando de outro cara é porque já não existe nada entre nós!

–Não é nada disso! Eu ainda gosto muito de você! Eu quero ficar com você!

–Você está comigo! Ou estava, sei lá. Se isso é tudo o que você quer então por que está procurando algo com outro alguém?

–Não é que eu esteja... só... sei lá, aconteceu. Quando eu vi a situação estava fora de controle.

–E agora você está tentando controlar?

–É!

–Ok, e ai? E agora? Você me contou, ok. E se eu disser, ok, Fip tudo bem. Esse tipo de coisa acontece, vamos seguir juntos... Você pretende terminar com esse cara?

–Sei lá! Se você quiser, talvez.

–SE eu quiser? – ele riu – O que você imagina? Que eu diga: ok fique com nós dois ao mesmo tempo, não vou me importar!

No fundo era isso que eu queria sim:

–Não! Eu só quero que...

–E se eu terminar com você!? Vai ficar com ele?

–Não! – talvez... não sei se gostaria de ter Manuel como namorado, não o suportaria – Eu quero ficar com você!

–Comigo você já está.

–Quero continuar com você! Se você quiser continuar comigo...

–O Michel e a Natasha sabem disso?

–Do que?

–Que você tem outro cara?

–Isso faz diferença?

–Se não fizesse eu não estaria perguntando.

–Sabem.

Ele esmurrou o sofá, fez menção de atirar o abajur, mas se conteve. Por fim se levantou:

–Me deixa em paz por um tempo!

–Flavius...

–Me deixa! Me deixa sozinho! Não fala comigo enquanto eu não falar com você! Preciso de um tempo! Enquanto isso você some da minha vista!

Ele cerrou os punhos. Estava juntando suas forças para não me esbofetear. Foi até a varanda, fechou a cortina e a porta e lá ficou. E eu de cá fiquei ponderando as coisas. O que sua reação significava? Se eu o tivesse traído com Michel não haveria perdão, tenho certeza disso! Se Michel e Natasha não soubessem que eu o estava traindo com certeza teria sido perdoado mais facilmente. No fundo o que importa é o Michel. Ele nem se dignou a saber quem era meu “amante”.... acho que no fundo pouco importa... desde que não seja Michel.... Michel, Michel.... sempre Michel. Flavius jamais irá esquecê-lo. Ele alimenta essa paixão como um refúgio, um lar! Mas por que eu me importo tanto? Se na real sou eu quem dorme e acorda ao seu lado? E por que hei de me importar se também reservo alguns dos meus pensamentos a Manuel? Talvez essa história de amar uma pessoa só seja uma grande mentira que nos contam. Uma grande farsa. É perfeitamente possível amar Flavius e Manuel simultaneamente, cada um a seu modo, cada um em seu lugar. Então por que não pode funcionar do mesmo modo com ele?

Talvez eu esteja sendo duro demais. Talvez seja até melhor saber ou imaginar que Flavius nutra uma paixão por Michel, assim me sinto menos culpado para nutrir sentimentos por Manuel... Mas na real não funciona bem assim. Eu bem que gostaria de ser o único a habitar sua mente. Mas com que direito posso exigir isso? Se não o trato com a dignidade devida?

Eu não sei bem onde queria chegar com isso. Digo, com essa história de contar tudo a ele. Não é bem o perdão ou a benção de Flavius que eu queria... será que ele está certo? Poderia eu ter feito tudo isso simplesmente para machuca-lo? Não... creio que não. Talvez eu quisesse ficar em paz comigo mesmo.... Não isso tampouco é verdade. A verdade é que tive medo que Michel me entregasse e então eu ficaria em maus lençóis. Se acaso Michel desconhecesse meu “caso” eu jamais me incomodaria em contar ao Flavius.... Viu? Mais uma vez Michel. Sempre ele, não é? Coitado, ele não tem culpa, mas hora ou outra meu relacionamento acaba por esbarrar na sua existência. A questão é, eu precisava contar antes que Flavius descobrisse, caso contrário poderia ser o fim.

Mas Flavius foi astuto, levantou um ponto que me tocou profundamente... e agora? Estaria disposto a abandonar Manuel para voltar a ser só dele? E se não? Como fazer?

Talvez fosse mais fácil manter tudo como estava, em segredo. Mas nunca fui homem de viver do modo mais fácil... então, talvez eu só quisesse um pouco de movimento... Ora a quem estou tentando enganar! Fui um idiota! Coloquei minha relação com o Flavius em perigo! E perceber que posso perde-lo me serviu de parâmetro para ver o quanto o quero. Julgo que me habituei a observar mais claramente seus defeitos, estou subestimando o que sinto por ele. Preciso aprender a valorizar o que sinto por esse garoto, ele merece que eu seja um namorado melhor do que sou... mas e eu? Conseguirei ser esse tipo de companhia?.... Michel com certeza seria capaz.... e pensando nisso eu não poderia culpar Flavius por manter o rapaz em algum lugar dos seus sonhos....

Mas isso não é algo que deva me preocupar. Por mais que Michel habite os sonhos do meu menino, sou eu quem vive sua realidade. E Flavius sabe disso, sabe que só eu posso fazê-lo feliz. Ele me ama, caso contrário não estaria aqui. Isso é inegável. Ficará chateado com essa história do Manuel por um tempo, é natural, mas isso não dura mais que uma semana. Flavius é meu e ninguém mudará isso.”

...

–Contei tudo a ele. – Disse Fip encarando Manuel nos olhos.

–Uhuu... sério? E como foi?

Estavam sentado em uma mesa de bar, Fip havia telefonado para o amante exigindo um encontro:

–Não sei. Ele está chateado, ao que parece, mas não tanto quanto imaginei.

–Isso é perigoso.

–Por que?

–Porque provavelmente ele vai digerir a história lentamente. O pior ainda está por vir.

–Você acha?

–Tenho certeza.

–Tomara que não.

–Mas e então? Como fica agora?

–Ainda não sei.

–Bem. – ele disse calmamente – Uma hora ia acontecer, não é. Talvez seja melhor que demos um tempo nisso, não acha?

–Ainda estou confuso. Penso que preciso de uma posição dele. Ele disse que não quer falar comigo por enquanto.

–É... acho que você fez bem. Afinal não era justo o que estávamos fazendo com o rapaz. Mas agora não sei com que cara vou olhar pra ele.

–Ele não sabe que é você.

–Como assim?

–Ele não quis saber.

–Isso não dura. Logo irá perguntar.

–E o que eu faço? Digo a verdade ou minto?

–Mentir pra que?

–Sei lá, ele vai com a sua cara, sabe que convivemos no grupo. Se ele pensar que o “outro” é uma figura abstrata, talvez seja mais fácil superar.

–Acho insustentável, ele vai querer saber.

–Tenho medo que ele crie algum tipo de neurose. Que fique sempre achando que estamos nos pegando. Você sabe, vai ser complicado, ensaiamos juntos, vamos viajar juntos. Isso pode gerar nele uma espécie de ciúme neurótico.

–Como o que você sente pelo Michel?

–Eu não sinto um ciúme neurótico pelo Michel!

–Não mesmo?

–Não!

–Vai me dizer que, no período em que você está aqui comigo, não passou pela sua cabeça nenhuma vez que eles podem estar sozinhos em casa agora? E que Flavius pode tentar alguma coisa para se vingar...?

–Claro que não!

Manuel encarou o garoto como que duvidando de suas palavras:

–Natasha está lá. – Fip confessou segurando o riso de quem não quer admitir que perdeu o duelo – Pedi para que ela fosse.

–Está vendo! Você sente um ciúme doentio por Michel!

–Ah tá bom, talvez. Mas não tem uma razão de ser? Flavius foi apaixonado por ele a vida toda! Uma hora pode rolar, se é que já não rolou!

–Sim, mas e ai? Se rolar, como vai ser?

–Não quero falar nisso não! Credo!

Manuel riu:

–Então você pode, ele não?

–Não é que ele não possa, mas sei lá, me incomoda imaginar isso.

–Mas você o perdoaria?

–Por que está insistindo nisso? Você sabe de alguma coisa?

O garoto tornou a rir:

–Por Deus Fip! Não! Só estou especulando!

–Então pare de especular! Esse assunto me incomoda.

–Mas vá pensando nele. O menino foi traído, pode ser que ele queira dar o troco. Flavius é esperto, ele sabe que pegar o Michel vai ferir você... Eles moram juntos, você não pode ficar de olho o tempo todo... Michel está chateado contigo por causa do nosso lance, pode muito bem querer te dar uma lição também... é melhor estar preparado.

–Vou espalhar câmeras pela casa!

–Para assistir a traição de camarote? É tão voyeur assim?

–Você é cruel menino!

–Sou realista.

–A realidade é cruel, logo você também é.

–Mas admita, há certa razão no que eu disse.

–Sempre há. Mas prefiro imaginar que não vai acontecer.

–Pois que viva no seu mundo da imaginação. Quando a realidade bater na sua cara não venha reclamar que foi pego desprevenido.

Fip ficou pensativo:

–SE acontecer. – disse por fim – Não terei outra alternativa se não perdoá-lo. Afinal... né? Quem sou eu pra exigir alguma coisa....

–Na teoria soa bonito, vamos ver na hora acontece assim.

–Vou me esforçar para que aconteça. Flavius merece isso.

–Tá certo.

–...

–...

–...

–Bem, e agora? Vai ficar esse clima estranho entre a gente?

–Espero que não. Mas acho que você tem razão sobre dar um tempo, pelo menos por enquanto.

–O relacionamento é seu. É você quem decide.

–...

–...

–... talvez uma despedida? Que acha?

–Como disse... você decide.

–Acho que Flavius não vai querer que eu durma em casa essa noite. Vamos encerrar essa história com uma noite que valha a pena lembrar daqui a vinte anos!

–Acho a ideia boa!

...

–Flavinho? – eu disse abrindo a porta da varanda com o chá quente nas mãos – Posso entrar?

–Pode. – ele disse secando as lágrimas e recuperando sua compostura.

–Então? Como você tá?

–Sei lá. Meio confuso.

–Saquei. Fiz um chá pra você, é de camomila, quer?

–Obrigado. – ele disse estendendo a mão para pegar a xícara.

–O Chico me ligou, ele vai dormir no apartamento do Artur essa noite, pra você pensar melhor e tal.

–Bom.

–Eu só espero que os dois não se peguem, se não vamos ser nós dois com a cara inchada de choro amanhã.

Flavius soltou uma gargalhada gostosa, ainda tinha senso de humor, a coisa não estava tão ruim assim:

–Olha, desculpe dizer, mas nesse caso acho que ficaria com mais inveja que ciúme.

–Ahahahaha! Eu não sei o que vocês três veem de mais no Artur. Serião.

–Claro que sabe, você transa com ele todo dia!

–É verdade, eu sei sim. Mas ele é tão diferente de vocês, do tio de meninos que vocês geralmente se interessam, eu não entendo.

–Acho que é porque ele é hetero. Soa meio proibido, meio fetichista.

–Pode ser. E na escola? Como foi?

–Foi massa. O pessoal de lá parece gente boa.

–Algum gatinho?

–Alguns.

–Hmmm, e algum você acha que tem chance?

–Não sei. Talvez um. Um tal de Henrique lá. Ainda não deu pra sacar a dele, mas ele ficou puxando assunto demais, desconfiei.

–Hmmmm, entendi.... Aproveita e põe um belo par de chifres no Chico pra ele deixar de ser safado! No seu lugar eu dava pra escola inteira!

–Dá certa vontade.

–Pois faça. Olha, o Chico é meu amigo, mas nesse caso bem que ele merece.

Ele congelou o sorriso e ficou olhando o horizonte. Parece que o peso do que estava rolando voltou a pesar nas suas costas:

–Eu fui muito idiota de vir pra cá atrás dele?

–Não! Você não veio só atrás dele! Você também veio pela gente! Somos seus amigos! Além disso é bom você se preparar pro vestibular aqui, entrar na faculdade. Não pense só por esse lado!

–Sim... mas, querendo ou não, eu vim por ele. Não vou fingir que não. Eu fiz a coisa certa?

–Ah, quem sou eu pra falar alguma coisa, né? Eu fugi de carro com um carinha que eu mal conhecia. Ele me deixou no meio da estrada, depois eu fui morar com o Chico que eu mal conhecia e vim pra cá atrás do Artur. Não sou a pessoa mais indicada pra te julgar.

–Mas você se arrepende?

–De que?

–De tudo isso...

–Jamais! Se eu não tivesse feito essas coisas não estava aqui contigo agora! Não tinha vivido uma pá de coisa massa que eu vivi. O lance é não se fechar pro mundo! O que te motivou a vir pra cá foi o Chico, ok, massa. Mas tu não pode viver aqui em função dele, saca? Se der errado, se der merda, você tem uma cidade inteira pra dar certo. Ele não é sua única opção de vida. Então deixa a vida rolar. Eu mesma fico pensando, pode ser que eu e o Artur nem fiquemos juntos, mas e daí? Eu aprendi a cozinhar, aprendi uma profissão que eu to curtindo, to fazendo cursos, enfim. A vida oferece outras coisas que podem ir te preenchendo também.

–É... você tá certa... Mas sabe o que mais me dói? Nem é ele ter outro cara. Tipo eu não sou nenhum babaca inocente. Eu posso ser meio devagar, meio tapado, meio arredio, mas burro eu nunca fui. Eu sempre soube que o Fip ia ter outros caras, o Felipe cansou de jogar isso na minha cara. Mas tipo, saber que vocês sabiam disso tem um tempão, que todo mundo sabia disso e eu não, faz eu me sentir um idiota. Como se todo mundo tivesse rindo de mim pelas minhas costas. Eu to meio cansado de ser motivo de piada.

–Flavinho, você nunca foi motivo de piada pra nós. A gente sentia era raiva do Chico, isso sim! O Michel queria te contar! Ele queria muito! Mas o Chico não deixava, ele queria contar ele mesmo, entende? Só tava tomando coragem.

–No fundo não faz muita diferença. Eu fui enganado por todo mundo. É uma situação meio constrangedora... meio ridícula.

Eu não podia discordar. Mas como dizer isso sem machuca-lo ainda mais?

–É... eu entendo... desculpe não ter te contado...

–Imagina... foi melhor assim. No fundo foi mesmo melhor saber pelo Fip. Pelo menos faz parecer que ele se importa.

–Se serve de consolo. – menti – Ele se importa sim. Ele conversou altas vezes comigo sobre isso. Ele queria muito te contar, mas tava com medo de te perder. Ele não queria te magoar.

–Esse é o problema do Fip. Ele NUNCA quer magoar, mas isso não muda nada.

–Pesado... É... eu não sei o que dizer.

Ele soltou um sorrisinho forçado:

–Não precisa. Obrigado pela companhia. Eu sei que você tá faltando aula no seu curso pra estar aqui.

–Já sei. Vou preparar um jantar incrível pra nós! O Michel deve chegar agorinha morto de fome e você precisa de uma boa comida pra se animar! Vem comigo até a cozinha?

–Claro! – ele disse aparentemente animado com a ideia.

...


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