Sangue escrita por Salomé Abdala


Capítulo 7
Capítulo 5- As primeiras gotas de sangue




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...´´O dinheiro acabou, é hora de voltar para casa``...

Sofia feria a mesa de madeira com a ponta de sua chave. O dinheiro, vindo de seu trabalho em alguma recepção de qualquer partição pública, não era muito, e esse mês tivera muitos gastos com médicos. Já faltou muitos dias de trabalho, é certo que era funcionária pública, mas tantas faltas seguidas poderia culminar em algum problema. Estava com fome, mas o dinheiro falta. “Talvez seja melhor partir”:

            -Acho que está na hora de voltar para aquela bosta de cidade. -resmungou.

Oito dias... Sofia nunca ficou tanto tempo longe. Ela sempre dava suas ‘’escapadas’’ quando as coisas esquentavam demais, mas nunca se ausentou por tanto tempo. As coisas eram duras para ela em Alvinópolis; o humor indomável de Flavius, o olhar atravessado das pessoas na rua, as cobranças de sua mãe que, apesar de morar relativamente longe arrumava um jeito de dominar sua vida e, é claro, a solidão.

´´Como será que Flavius se virou durante esses dias? Será que ainda está vivo?... Meu Deus!! Será que ele tentou se matar de novo? E eu não estava lá para ajuda-lo!! Por Deus! Que tipo de monstro eu sou?...``- com a dificuldade imposta pelo excesso de álcool, Sofia se levanta da mesa, - ´´Agüenta firme, meu querido, a titia está chegando.``- lembranças... lembranças de quando Flavius era uma criança, de quando sua mãe morreu deixando-o sozinho no mundo- ´´Me desculpe por ter perdido o controle``-ela anda com dificuldade até alcançar o carro -´´Eu já estou voltando!``- em um arranque, Sofia abandona a cidade onde estava e se dirige de volta para Alvinópolis.

...

—Eu vou até a cidade comprar algumas coisas para a casa, acho que volto a noite. Tem comida na geladeira e as chaves estão na escrivaninha perto do piano. Eu vou aproveitar e deixar a carta de resposta aos Angoti na casa deles. Você se importa em ficar sozinho?

            Flavius, um pouco decepcionado por não ter sido convidado, faz um sinal negativo com a cabeça:

            -Claro que não. Eu não quero te incomodar. Pode ir. -sorriu- Acho que vou dormir um pouco mais.

            -Ótimo. Eu não demoro. Vou tentar ser o mais rápido possível. Você quer alguma coisa da cidade?

            -Minha tia.-riu.

            -Ah, isso eu não posso fazer. -se aproximou- Se ela voltar você me vai me abandonar.

            Flavius, já acostumado com a aproximação de Fip, responde com naturalidade até ser interrompido:

            -Imagina, é lógico que eu vou continuar te visi...

            Antes que o garoto pudesse reagir, a língua de Fip já estava em sua boca, caminhando por todos os caminhos que pudesse vasculhar. Seu beijo era bom, e Flavius retribuiu:

            -Tchau, Flavius. Até mais tarde.

...

            ´´Assim que Fip saiu de casa eu fui dormir. Deitei-me na cama dele, como já era de costume. Não consegui dormir de imediato, aliás, não sei exatamente se consegui dormir. Acredito que tenha apenas me perdido em meus pensamentos, como quase sempre fazia. Sentia-me triste naquela manhã, não sei exatamente o porque. Já fazia um certo tempo que isso não acontecia. A presença de Fip havia afastado os meus fantasmas, mas agora ele não estava aqui e eu sentia medo. Estava novamente inseguro, meu corpo tremia ... e se ele não voltasse? Por que não me levou com ele? Será que a minha presença nessa casa já não fazia mais sentido? Será que Fip já estava incomodado comigo e, por não ter coragem de me dizer, decidiu ir embora? Mas ele me beijou, ele não me beijaria se me quisesse fora. Ou será que sim?

  ´´Você foi um menino malvado, Flavius.``- lembro-me de ouvir minha mãe dizer. Lembro-me de seu olhar lunático fitando-me com uma certa maldade. -´´Você fez a mamãe chorar.``-ela dizia enquanto pendurava aquela maldita forca no lustre ´´Você fez o papai ir embora, e a mamãe ficou muito, muito triste com você. Agora a mamãe vai ter que ir embora também.``- enlaçou seu pescoço - ´´Menino mal, menino mal.Fez o papai ir embora. Fez a mamãe ficar triste.VOCÊ VAI PARA O INFERNO SEU BASTARDO!!!```- seu corpo pendeu... ela se debateu durante muito tempo, me lembro perfeitamente de como seu corpo lutava contra o laço que a prendia pelo pescoço... me lembro do silêncio que se espalhou após sua morte... Por que essas lembranças estavam voltando? Por que eu ainda podia ouvir seus gemidos? Por que eu estava com medo?

            Perdi o controle. Essas lembranças me faziam perder o controle. Tive certeza de que Fip não voltaria, e o odiei por isso! Ele era só mais um deles. Mais um bastardo que, mais cedo ou mais tarde, acabaria me abandonando! Desci as escadas e, irritado, quebrei tudo o que estava no meu caminho:

            -VOCÊ PENSA QUE VAI ME DEIXAR AQUI SÓZINHO, SEU MALDITO?! EU NÃO VOU FICAR SÓ!!!

            Quebrei coisas na sala e na cozinha, onde caí e chorei até a noite quando, para minha surpresa, Fip chegou.

...

—Você não vai mandar nosso filho para a Europa! - disse Caroline ao seu marido.

—Mas eu não sei mais o que fazer com esse menino! Desde que... desde aquele incidente... ele faz questão de nos desafiar!

—Desafiar? Ele foi um belo cordeirinho até agora, isso sim! Eu é quem me espanto com toda essa passividade, nem parece um Angoti! Até agora tudo o que ele fez foi nos obedecer de cabeça baixa!

—É, mas na hora em que mais precisamos que ele use aquela... aquela, anomalia...ele insiste em nos provocar!

O diálogo é interrompido pela entrada de uma terceira pessoa na sala, trata-se da empregada da casa, que, com um envelope nas mãos, diz:

—Err. Desculpe-me senhora, mas essa carta chegou para vocês. Parece que foi um garoto que a colocou na caixa de correio... Eu pensei em joga-la fora, mas... está lacrado com o brasão dos Perez.

Os olhos de Caroline pareciam querer saltar para fora de seu rosto. Rosto esse que ficava a cada segundo mais vermelho:

—Deixe-me ver essa carta! - disse a matriarca dos Angoti erguendo a mão esquerda. Depois de analisar o envelope, ordenou que a criada saísse e abriu o envelope, analisou-o com cuidado, leu em voz alta para o marido com certa euforia na voz.

...

Já se passavam das onze horas da noite quando Fip chegou em casa. Havia se distraído pela cidade. A porta estava aberta, a casa revirada e Flavius atirado no chão da cozinha. Um aglomerado de lembranças rondou sua mente...... pratos quebrados, gritos de dor, gritos de ódio, o sangue escorrendo pelas suas costas, a dor rasgando os sentidos, a humilhação nas festas de família, as noites trancado no porão...... Fip desmaiaria se pudesse se dar ao luxo, mas precisava socorrer seu amigo que chorava encolhido no chão:

—O que aconteceu aqui? -perguntou Fip, quase em lágrimas ao amigo ferido – Meu pai esteve aqui? Quem fez isso com você?

Flavius demorou a responder, sua voz não queria sair:

—E...eu...me desculpe...

Fip abraçou seu amigo tentando acalma-lo e perguntou com uma certa frieza:

—Quem fez isso? Alguém entrou aqui?

—Não...fui eu... me desculpa Fip... eu fiquei com medo...... me desculpa, me desculpa...você me deixou sozinho, e...eu tive medo que você não voltasse mais... pensei que você fosse me abandonar como... como o meu pai e... - antes que o garoto pudesse terminar suas súplicas, Fip desferiu-lhe um tapa no rosto.

...

            -Sua maldita! - gritava Sofia, sozinha dentro do carro. -Olha só o que você fez, sua piranha! Se você não tivesse se matado eu e seu filho não estaríamos com tantos problemas, sua safada!! O que mais você vai fazer para amaldiçoar nossas vidas? Sua bastarda, cretina!!

            Sofia ouviu um estrondo forte acompanhado por um baque em seu carro. Ela atropelou alguma coisa.´´Calma, calma. Foi só algum bicho. Calma.`` Ainda tremendo, ela desce do carro para descobrir o que aconteceu... -MEU DEUS! É UMA GAROTA!!! EU MATEI UMA GAROTA!!

            Seus cabelos vermelhos se confundiam com o sangue que escorria no chão... era uma garota jovem, bonita e mal vestida. Estava inconsciente, provavelmente batera a cabeça durante a queda. A perna esquerda estava quebrada.

            -De onde saiu essa menina? O que essa garota estava fazendo no meio da estrada a essa hora da noite, minha Nossa Senhora? .... AI MEU DEUS!... o que é que eu faço agora?! - seu corpo tremia.-Oque eu faço? Oqueeufaço oqueeufaço oqueeufaço oqueeufaço?

            Sem pensar, Sofia jogou a garota no porta-malas e prosseguiu sua viajem chorando compulsivamente.

...

            ´´            -Fip me interrompeu com um tapa no rosto. Eu estava fora de mim, senti medo que ele me abandonasse agora:

            -Eu fui um idiota?- perguntei.

            -Você é um idiota, Flavius.- a frieza de sua voz me assustou- É por isso que gosto tanto de você. -me ajudou a levantar.

            Eu ainda tremia muito, apoiei-me à mesa encostada na parede:

            -Me...me desculpa...me desculpa...

Outro tapa como resposta.

—Não peça desculpas.

—E.. eu tive medo... eu...tive medo...

—Sabe qual é o seu problema Flavius? - disse ele calmamente enquanto deslizava suavemente os dedos sobre uma faca de cozinha que estava na mesa. - Você é um garoto muito mimado. - Fip pegou a faca e, em um movimento rápido, ao aproximar seu corpo do meu, a apontou para meu pescoço enquanto segurava meu rosto com a outra mão. -Nunca sentiu sua vida ser ameaçada. -seu rosto estava muito próximo ao meu, tão próximo que era possível sentir seus lábios. –Não sentiu sua vida deslizar por um fio. Nem precisou implorar, nunca precisou se humilhar. Jamais arrebentaram com o seu corpo, nem fatiaram suas costas, não te queimaram com ferro quente ou te trancaram durante dias em um porão imundo. - a faca entrou de leve em minha carne. - Você nunca precisou dizer:´´por favor não me machuque mais``. Você não sabe o que é sentir medo. -Fip lambeu o sangue que escorria em meu pescoço- É isso o que eu penso. -seu rosto já estava tão próximo quanto antes e eu podia sentir seu corpo encostado no meu fazendo com que eu sentisse seu membro ereto roçando no meu corpo.

Meu corpo tremia, senti um forte calafrio, ele estava rasgando mais um pouco da minha pele. Estava com medo, mas para além do medo eu sentia uma intensa vontade de que ele me dominasse:

—Me mate então. Me mate se quiser. – eu disse.

—Eu não vou te matar, eu vou te fuder.


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