Sangue escrita por Salomé Abdala


Capítulo 68
Capítulo 66 – Um primeiro dia.




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–Acordado já? – disse Fip com os olhos semicerrados – Que horas são?

–Cinco e meia. – Flavius respondeu enxugando os cabelos. Sentia falta de quando eram maiores e seca-los demandava um tempo que não queria ter livre agora – Acordei ansioso e percebi que não conseguiria voltar a dormir, decidi me levantar de vez e começar a me arrumar.

Era seu primeiro dia de aula na escola nova. Ser aluno novato nesse período do ano com certeza faria recair sobre ele uma atenção que ele não desejava e a ansiedade que isso lhe provocava poderia leva-lo a loucura. Fip o observava com cuidado, sabia que o momento era delicado e qualquer palavra mal colocada poderia tirar o chão do menino. A preocupação lhe trouxe um sorriso no rosto: “Está perdendo o jeito Fip. Em outros tempos teria um comentário afiado para apimentar o dia, hoje se preocupa em se manter calado para não piorar a situação... será que estou, por fim, me tornando uma pessoa melhor?”. Lágrimas lhe teriam chegado aos olhos se não se forçasse a engolir o sentimento... Tornar-se uma pessoa melhor... o que realmente isso significa?

–Nervoso para o seu primeiro dia?

Flavius mirou seu rosto longamente, como se quisesse ler suas intensões. Parecia pronto para receber qualquer ataque e se preparava para defender-se. “Talvez seja isso.” – pensou Fip – “Outrora Flavius estaria todo retraído a espera do ataque, agora ele se coloca a disposição para me atacar de volta! Sinto que não exerço sobre ele aquele mesmo poder de antes... e isso é... é bom, acho! Irritava-me aquela fragilidade que hoje não vejo mais.”

–Não é bem isso. – mentiu – É que ainda não me acostumei com o barulho dessa rua.

–Venha cá. – disse abrindo os braços – Deixa eu te dar um abraço.

Flavius hesitou, algo em seu olhar parecia indeciso sobre confiar ou não na súbita bondade que parecia aplacar o parceiro, mas, por fim cedeu:

–Vai dar tudo certo. – disse Fip beijando-lhe o rosto – Eles vão gostar de você.

–Isso não faz realmente diferença. – tornou a mentir.

–Então você é mais forte que eu. No seu lugar estaria em pânico.

A afirmação não era bem verdadeira. Fip, ao contrário do parceiro, adorava ter todas as atenções sobre si. Adoraria estar no lugar do rapaz e logo se pensou imaginando quanta coisa faria em um primeiro dia de aula assim... quantas histórias inventaria? O que faria para brincar com a curiosidade dos veteranos? Quanto tempo levaria até que todos estivessem de quatro lambendo seus pés? Não importava, Flavius era um tipo diferente de criatura e jamais aproveitaria a situação como se deve. Por isso Fip preferiu se recolher dando lugar a um tipo de namorado que jamais havia experimentado ser: um rapaz compreensivo, disposto a enxergar um pouco além do próprio umbigo: “Talvez Manuel esteja a me ensinar algo sobre empatia.” – pensou enquanto ponderava na ironia cruel daquilo... seu amante estava a lhe ensinar a ser um namorado melhor... ficou a imaginar o que Flavius pensaria disso.

–Olha Flavius, isso não é Alvinópolis. Aqui as pessoas estão mais dispostas a aceitar pequenas diferenças que lá. Você vai perceber quando colocar os pés na escola que você não é, nem de longe, a pessoa mais esquisita de lá. Vai perceber que aqui ninguém liga se seu cabelo é torto, se suas roupas são pretas ou se você parece gay. Vai ter gente que vai te ignorar, pode ter um babaca ou outro que possa tentar pegar no seu pé, mas isso só vai acontecer se eles cheirarem sua fraqueza. Esses valentões são como cachorros entende? Eles sentem cheiro de medo e não vão te deixar em paz se sentirem isso em você. Por isso é importante que você mostre a eles que tem em suas mãos as rédeas da sua vida. Mas o mais importante nem é isso. O importante é que com certeza alguém gostara de você! Com toda certeza! Você é uma pessoa maravilhosa e não tardará que alguém perceba isso! Você tem que estar aberto para perceber que aqui é um lugar diferente. Aqui ninguém te conhece e você pode se reconstruir como quiser! Logo terá tantos amigos que me deixará inseguro e enciumado. Então brigaremos, eu acharei que um ou outro rapaz está interessado por você e toda essa insegurança não será mais que uma sombra remota nas suas lembranças... Ou não. Pode ser tudo uma merda igual era lá em Alvinópolis... Mas nesse caso lembre-se que você tem a mim, tem ao Michel e a Natasha. As coisas jamais serão como antes, acredita em mim?

–Na verdade, na verdade não. Mas saber que você se importa me ajuda a ficar mais calmo.

–Sei de uma coisa que pode te deixar bem mais tranquilo. – disse sussurrando ao pé de seu ouvido enquanto deixava sua mão escorregar maliciosamente entre suas coxas.

Flavius cedeu a brincadeira e logo se viu despido de toda a roupa, insegurança e falta de confiança que lhe cercavam minutos atrás.

...

Caminhei a passos curtos até a sala. Minhas pernas tremiam, mas meu coração teimava em parecer tranquilo. Fip tinha razão, a escola estava recheada de pessoas mais diferentes que eu, meninos de roupas rasgadas, gurias de cabelos coloridos, punks, metaleiros, e mais uma infinidade de estilos que eu não conseguia identificar. Muito diferente daquela massa homogênea de Alvinópolis, onde todos os cabelos eram comportados, todas as calças bem costuradas e todos os olhos comedidos. Aqui havia certa efervescência que me parecia confortável, mas, ainda assim, residia certo medo do que estava por vir.

Entrei na sala e fiquei a observar o movimento. Estava resolvendo o dilema de onde me sentar, não queria ocupar o lugar de ninguém. Esse é o tipo de gafe que pode marcar uma reputação... Mas foi enquanto tentava resolver essa questão que ele falou comigo pela primeira vez:

–Oi? Você não entrou na sala errada?

–Não sei. – olhei para o papel em minhas mãos – Aqui não é o terceiro B?

–Sim. – ele respondeu desconfiado.

–Então estou na sala certa. É que eu sou novo aqui.

–Ah, um novato. Bem... sei lá. Bem vindo então.

–Obrigado.

–Tem uma carteira vazia ali na frente da minha, se for isso que você estiver procurando. Quem sentava lá era a Glaucia mas ela se mudou pro Canadá.

–Meu nome é Raique.- disse estendendo a mão.

–Flavius.

Apertamos as mãos e ficamos nos olhando naquela sensação de não saber o que dizer em seguida:

–Bem, então é melhor eu me sentar, né? – eu disse me dirigindo até a carteira.

–Sim. – ele disse me seguindo – Então Flavius, você vem de onde?

–Avinópolis, conhece?

–Não faço ideia de onde fica.

–É no interior do estado, não fica muito longe daqui.

–Saquei. E era massa lá?

–De jeito nenhum.

Ele riu. Fiquei me perguntando se aquilo era o inicio de uma amizade. Mas era cedo para saber, eu e ele não parecíamos ter muita coisa e comum e talvez fosse só uma cortesia de primeiro dia. Dei de ombros, o melhor é deixar a coisa acontecer:

–Se mudou para cá por causa do vestibular?

–Foi. – respondi de súbito. Em verdade não era, mas julguei ser a explicação ideal para essa pergunta.

–Entendi. Seus pais vieram juntos ou veio sozinho?

–Eu já não tenho meus pais. Morava com uma tia em Alvinópolis. Mas não, ela não veio comigo. Estou dividindo apartamento com uns amigos. – não sei porque, mas me senti muito adulto dizendo isso.

–Nossa manin, foi mal... desculpa ae. Que paia esse lance dos seus pais. O que aconteceu com eles?

–Não se preocupe. Não é tão trágico depois que você se acostuma. – Na verdade é sim, mas tudo que eu não queria era ocupar, mais uma vez, a posição de vítima – Eu nunca conheci meu pai. Ele tipo engravidou minha mãe e desapareceu. – “tipo”? Desde quando eu falo desse jeito? - E minha mãe morreu de câncer quando eu era criança.

Ruborizei um pouco ao mentir. Na verdade nem sei porque o fiz, mas não queria sustentar a história do suicídio. Ela sempre atraia sobre mim uma atenção que eu não gostava, lembrei-me do que Fip disse, aqui ninguém me conhecia e era a oportunidade de criar uma nova história... então por que não?

–Nossa que barra... Nossa, nunca conheci um órfão antes.

–Nem eu. Mas não é assiiiim. Minha tia, irmã da minha mãe, me criou. E ela é como uma mãe pra mim. Eu não cresci em orfanato nem nada disso.

–Menos mal né? Mas e esses seus amigos que você mora aqui, são da sua cidade também?

–Um deles é. O Michel, é meu amigo desde criança. O outro é daqui, o Francisco – Não sei porque me senti ridículo em falar o nome Fip - mas nos conhecemos lá. Ele tem família em Alvinópolis e estava sempre lá nas férias.

–Deve ser massa morar assim só com amigos né? Deve rolar altas putaria. Hahahahaha!

Não entendi onde ele quis chegar com o comentário. Talvez fosse só um pensamento randômico, mas Fip sempre me dizia que um garoto jamais fala de putaria com outro sem uma segunda intensão. Eu não sei bem se isso é verdade, sempre via os meninos da minha sala conversando essas coisas e nunca me pareceu que eles quisessem algo um com outro. Mas a ideia me ruborizou. Instintivamente me peguei analisando se gostaria ou não que acontecesse alguma coisa entre eu e ele. Ele não era exatamente um rapaz bonito, mas tinha algo de atrativo nos seus olhos, no seu sorriso, sei lá. Vestia um uniforme três números maior que o seu, uma calça jeans rasgada nos joelhos e um monte de pulseirinhas de couro e tecido amarradas no braço. Tinha também um brinco na orelha direita e o cabelo tão bagunçado quanto um cabelo podia ficar. A voz era muito grave e ele usava aparelho. Não era tão magro quanto o Fip e nem tão encorpado quanto Manuel, estava em um meio do caminho entre ambos, os ombros um pouco mais largos que do Michel. Me peguei imaginando se seu corpo era malhado ou normal, ele não tinha cara de quem malhava, mas seus ombros eram muito largos para serem naturais... mas travei o pensamento, era cedo demais pra isso.

–É... eu diria que rola um pouco.

–Massa. – ele disse com uma empolgação estranha – Se eu morasse sozinho ia rolar putaria o dia todo.

–É.... mas quando se divide quarto fica mais difícil.

–Saquei.

A essa altura a sala já estava cheia. Repleta de pessoas interessantes, bonitas. Todos lançavam sobre mim um olhar curioso, mas nada exagerado. As pessoas na cidade grande costumam ser mais sutis ao encarar alguém. Algum tipo de etiqueta que as pessoas adquirem com o tempo, não sei.

–E você? Mora com os pais?

–Sim, meu pai, minha mãe e meus irmãos. Tenho dois, um irmão e uma irmã. O irmão é mais velho, tem vinte e um. A minha irmã é pirralha, tem nove.

–Sempre quis ter um irmão.

–Credo! Vira essa boca pra lá!

–Aahahhahahaha! Sei lá, deve ser bom ter com quem dividir as coisas. Sempre fomos só eu e minha tia lá em casa. Ela sempre viajou muito, era meio... – tentei escolher bem a palavra para não soar como coitadinho. Era irritante, mas sempre que ia falar algo sobre mim a voz do Fip martelava na minha cabeça: “Lá vem o Flavius se fazer de mocinha de novela mexicana!”. E eu não queria isso! Nunca quis esse papel! Estava cansado de todos a minha volta me lançando aqueles olhares de: “Coitadinho, deixa eu te ensinar a se defender.”. E essa era a oportunidade de criar novos tipos de relação. - ... entediante.

–Mas agora não né? Agora tá massa? Ou os carinhas que moram com você são chatos?

–Tá legal... A gente se dá bem.

O sinal tocou e todo mundo mudou de posição. O silêncio tomou conta da sala quando a professora entrou. Ela já sabia da minha presença, ao que me consta todos professores sabiam. E me fez as perguntas corriqueiras. Vi os olhares dos outros alunos satisfazerem suas curiosidades. De um modo reconfortante me senti bem vindo. Veio aos meus olhos certa vontade de chorar, mas segurei os ânimos. Estava feliz... feliz como não me lembrava de ter sido algum dia.

...

Flavius ficava estranhamente bonito com aquele uniforme. Ele estava usando um colar preto que dava um destaque sensual ao seu pescoço branco e fazia a cor dos seus olhos gritar. Artur parou o carro do outro lado da rua e buzinou, ele não nos viu. Estava conversando com dois garotos e tinha um sorriso distraído nos lábios. Abri a porta do carro e gritei por ele. Os três olharam para trás, Flavius me fez um aceno, despediu-se dos meninos com um toque de mão que os fez parecer velhos amigos. Senti um misto de alegria e ciúme e de repente percebi o quanto gostaria de me aproximar mais daquele menino. Tantos anos dividindo a mesma cidade, os mesmos espaços e jamais lhe havia prestado a mínima atenção, e agora, vendo-o cercado por novos amigos, percebo o quão interessante ele parece ser... irônico isso... Ele veio atravessando a rua correndo:

–Micheeel! Bom dia! – deu-me um abraço apertado que me permitiu sentir seu cheiro. Abracei-o de volta.

–Flavinho, como você está? – disse afagando seus cabelos.

–Estou bem, com um pouco de fome, mas bem.

–É... você parece bem...

–...

–É...

Artur falou de dentro do carro:

–E ai Flavius? Tudo bom?

–Tudo bem. E contigo?

–Beleza. Como foi o primeiro dia?

–Foi tranquilo. – ele disse entrando no carro – Estava com medo de não conseguir acompanhar as matérias, mas parece que não vou ter problemas.

–Você é muito inteligente Flavius. – Artur disse (e me deixou me perguntando de onde ele havia tirado que Flavius era inteligente... os dois nunca tinham trocado mais que dois minutos de conversa) – Não vai ter problemas não. E ai, já decidiu pra que você vai prestar vestibular?

–Ainda não tenho ideia.

–Eu to pensando em prestar pra artes cênicas no final desse ano. – eu disse de súbito – Que você acha de estudarmos juntos?

–Acho ótimo. – ele disse com um sorriso – E cadê o Fip? Pensei que ele ia almoçar com a gente.

Artur e eu trocamos um olhar desconfortável. Ambos sabíamos onde ele estava e compartilhávamos da opinião de que Flavius não gostaria de saber. Senti-me um lixo ao dizer:

–Você sabe como ele é. Ficou no teatro ensaiando uma parte da coreografia que na cabeça dele não está saindo bem.

–E nós vamos comer no restaurante da Natasha? – ele perguntou meio que não se importando com o Fip.

–É. – disse Artur – Mas ela não vai comer com a gente porque esse horário ela fica na cozinha. Mas a gente passa lá atrás e dá um oi.

–Ok então. – ele disse. Estava leve e pleno de um modo como eu raramente o via e, por isso, não parecia se importar com mais nada.

Seguimos até o restaurante (que não era longe) e ao chegarmos fomos direto para as portas dos fundos ter com Natasha. Henrique (um companheiro de trabalho da Natasha com quem eu estava mantendo um flerte de leve) estava na porta descansando quando nos viu:

–Hey Michel! Hey Artur! Esse rapaz eu não conheço.

–Me chamo Flavius. – ele disse antes que eu pudesse apresenta-lo.

–Prazer Flavius, sou o Henrique.

–Oi Henrique.

–Você também é amigo dos meninos?

–Sou namorado do Fip.

–Ué, o Fip está namorando agora?

–Na verdade já namoramos faz um tempo.

Henrique já tinha visto Fip com Manuel, por isso fez uma expressão de quem não estava entendendo nada. Eu fiz um sinal para que ele se calasse e deixei a entender que explicaria depois. Ele deu um sorriso que dizia: “Ok, já entendi tudo.” E disse:

–Natasha está lá dentro. Podem entrar, mas não se esqueçam de colocar as tocas, ninguém quer fios de cabelo voando na comida.

–Está certo. – eu disse.

Os meninos foram na frente, Henrique segurou minha mão quando passei por ele:

–Volta aqui mais tarde pra gente conversar. – ele disse.

–Hoje não dá tempo. Tenho que voltar rápido pro teatro, hoje tem apresentação.

–Ah, tudo bem. Outro dia então.

–Com certeza.

Mas a verdade é que estava me cansando dele. Tivemos uma coisa boba e casual, mas ao que parece (ao contrario de mim) Henrique queria mais. Não é que ele fosse um rapaz desinteressante. Tinha seus encantos, mas sua conversa me cansava. Ele não falava em outra coisa que não suas divas do pop e os clipes que tinha assistido na Mtv. Novos tratamentos de cabelo e aquela marca de roupa x que lançou uma ou outra coisas legais... Isso me entediava de certa maneira e por isso tentava fugir do rapaz. O tenso é admitir que a química entre nós era boa e sempre nos divertíamos quando não estávamos conversando.

A conversa com Natasha foi rápida e causal. Um oi para não dizer que não tínhamos a visto e ela voltou ao trabalho. Fomos até o salão pegar comida quando nos deparamos com Fip e Manuel sentados à mesa, ambos de cabelos molhados, com aquela clara expressão de quem havia acabado de dividir a cama:

–Olha só quem está aqui! – disse Fip – Que surpresa agradável!

Meus ossos pareciam gelados quando o encarei:

–Ué Fip, você não tinha ficado ensaiando?

–Tinha. – ele disse com uma convicção que quase ME fez acreditar que era verdade – Mas precisamos comer, não é? Que coisa boa encontrar vocês aqui! Pensei que só te veria a noite rapazinho. – ele disse apertando o nariz de Flavius – Então, como foi o primeiro dia de aula?

–Foi bom. Bem mais tranquilo do que eu esperava.

–Que bom.

Manuel não parecia tão confortável e confiante quanto Fip, por isso ficou plantado à mesa como uma estátua de sal. Flavius se sentou ao lado dele:

–E como estão os ensaios? – perguntou olhando diretamente a Manuel com um tom que me fez pensar se ele estaria ou não desconfiando de alguma coisa.

–Nada bem. – disse Manuel no mesmo instante em que Fip dissera: “Ótimos.” E ambos trocaram um olhar tenso.

O olhar de Flavius dançou sobre os dois e logo em seguida repousou sobre mim:

–Michel e eu vamos estudar juntos para o vestibular. Ele decidiu que prestará para artes cênicas, eu ainda estou indeciso.

–E está pensando mais ou menos em que? – perguntou Manuel.

–Estou em dúvida entre letras, jornalismo, filosofia ou história. Não quero ser professor, mas não me imagino estudando outra coisa. Psicologia talvez, mas é muito concorrido.

Fip fez uma expressão amarga quando disse:

–Todos cursos ruins. Não dá dinheiro. Não vale o esforço, melhor nem prestar vestibular se for fazer qualquer um deles.

–E ficar dançando o dia todo o deixará milionário, suponho. – ele rebateu quase instantaneamente – Se não fosse sua herança estaria contando moedas agora.

–Mas ao menos produzo algo de interessante.

–Interessante pra quem?

Fip o fulminou com o olhar antes de responder:

–Pra mim.

–Pois eu, com meus cursos, produzirei algo que me interesse. E assim está bom para todos.

–Não está bom pra mim se você não achar minha dança interessante.

–Engraçado, você não é o grande Fip a quem a opinião de mais ninguém interessa? Não deveria te fazer diferença.

–Mas faz. O mínimo que eu exigiria de um parceiro é que ele compreenda minha arte.

–E lamba suas botas como um cão submisso.

Artur, Manuel e eu nos entreolhávamos com uma expressão atônita, estava claro para todos que ninguém queria ficar no meio daquele fogo cruzado. Manuel interveio:

–Querem parar com isso vocês dois? Parecem crianças! Fip seu comentário foi desnecessário! Se você quer apoio tem que dar apoio de volta! São bons os cursos que está pensando Flavius. Por que pensa em letras? Gosta de escrever?

–Ando me arriscando com algumas coisas.

–Adoraria ler.

–Não. – disse Flavius desviando o olhar – Ainda é cedo para isso.

–Ah, não é justo! Você nos vê dançar, é justo que vejamos o que você escreve!

–Talvez, mas vocês me deixam ver o espetáculo pronto. Jamais fui convidado a assistir um ensaio. Logo não os deixarei ver o que escrevo até que esteja digno de ser mostrado.

–Ok, argumento válido. Mas deixo aqui meu convite. Acaso Fip concorde eu ficaria honrado que você participasse dos nossos ensaios.

–Não acho conveniente. – Fip respondeu num tom que me deixou em dúvida sobre o tipo de “ensaio” que estava a ser discutido de verdade.

–Que assim seja. – disse Manuel levando a comida à boca.

Pairou um silêncio quase incomodo. Flavius tinha os olhos atentos parecia estar pescando algo no ar. Talvez pressentisse que algo estava a lhe ser escondido. Tive o ímpeto de jogar toda a merda sobre a mesa, mas não achei que seria adequado expor Flavius daquela maneira. Se fosse conta-lo alguma coisa seria em particular, com muito cuidado e não sem antes avisar Fip sobre minhas intensões. Afinal eram ambos meus amigos e eu não queria me sentir em dívida com ninguém.

Artur puxou qualquer assunto para divertir a mesa e o clima ruim se dissipou rapidamente. Ao fim do almoço cada qual seguiu seu caminho e só voltamos a nos encontrar depois de anoitecer.

...

–Não há nada no diário que fale sobre esses dias. – comentou Rebeca folheando as páginas do pequeno livro.

–Acho pouco provável que Fip tenha se dado ao trabalho de escrever sobre qualquer coisa que não dissesse respeito exclusivamente a ele. – comentou Flavius num tom amargo.

Fip era para ele uma doce lembrança de um amor completo, mas quando se lembrava dessas pequenas farpas e confusões quase dava graças a deus por ele estar morto. A verdade é que havia um motivo para que eles estivessem separados e Flavius não podia se permitir esquecer disso. Ou estaria pensando desse modo para se permitir viver com Michel? Para se livrar da culpa? A mente tem seus subterfúgios para nos convencer das coisas e este bem que poderia ser um deles.

“Se for? Que problema há? Não posso viver uma vida em função de um morto... posso?”. Deixou seu olhar cair sobre Michel e algo voltou a queimar em seu peito. Há quanto tempo julgava ter perdido a capacidade de sentir essa sensação? Esse comichão, esse formigamento... pareciam ideias adormecidas em seu coração. Por que não se permitir? Qual o proposito de viver dentro de uma masmorra rodeado por muros? Talvez seja hora de se permitir arriscar... Michel não era um aventureiro qualquer. Seu coração sorriu... talvez seja merecido. Fechou os olhos e se permitiu admitir que estava perdidamente apaixonado.

Natasha quebrou o silêncio:

–Quem vota em pedir pizza levanta a mão.


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