Sangue escrita por Salomé Abdala


Capítulo 66
Capítulo 64 – Guie-me...




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–O que aconteceu? Ligaram ele na tomada? – sussurrou Natasha nos ouvidos de Fip enquanto observavam um Flavius que falava incansavelmente enquanto gesticulava alegremente. – Nunca vi esse menino assim. Estranho, muito estranho.

–Deixa ele ser feliz. Pensávamos que jamais o veríamos assim...

–Sei não, acho que preferia antes. – disse a menina com um sorriso cumplice nos lábio – Mas e você? Está feliz?

–Muito. É bom estarmos juntos, todos nós.

–Isso é verdade. – disse ela observando a sala – Eu, você, Flavius... agora o Artur também. A família está crescendo.

Fip encarou Artur um pouco a contragosto enquanto tentava disfarçar sua insatisfação com a presença do rapaz:

–E como estão vocês dois? – perguntou quase que torcendo para que a amiga confessasse que havia algo errado.

–Estamos ótimos. Artur quer que eu vá morar com ele, mas eu acho que ainda é muito cedo.

–Você praticamente mora com ele. No fundo não faria diferença. – “Filho de uma putinha desgraçada! Vai roubar a amiga da excomungada dos infernos que te pariu!” – Sei lá. Eu não posso falar nada, afinal comigo e o Flavius foi igual.- “Você não vai! Não vai!” – Mas eu não sei. Você não disse que te incomodam algumas coisas no Artur? Talvez morando oficialmente juntos essas coisas piorem. Eu mesmo tenho dias que quero matar o Flavius. Morar junto é barra! – “Não vá! Não vá! Fique aqui comigo!” – Acho que você tem que pensar direitinho. Afinal aqui você tem muito mais conforto e espaço.

–É... não sei. Eu vou pensar direitinho. É que lá é mais perto do trampo e tal. Sei lá.

–Mas você trabalha de teimosa! Eu já disse que posso manter o apartamento sozinho, igual era lá em Alvinópolis.

–Em Alvinópolis era diferente, Chico. Lá a casa era sua, tu não pagava aluguel, eu tava toda quebrada, as contas lá eram bem mais baixas. Tem nem comparação. Além disso, a gente não pode viver a vida toda a suas custas né? Uma hora essa sua herança vai acabar. E sei lá Chico, eu o Michel, o Flavius, a gente precisa trabalhar né? Fazer uma carreira. Dinheiro não é assim tão fácil.

–Eu sei. Mas você podia aproveitar e fazer uns cursos, aprender umas coisas boas! Já que você tá gostando dessa coisa de gastronomia vai fazer uma faculdade!

–To pensando nisso. Faculdade não, mas tem um curso técnico lá na rua do Artur. É até barato... –“Com o dinheiro que eu gasto com o aluguel eu pagaria a mensalidade” –To pensando em fazer.

–Isso é uma boa. Te dou o maior apoio.

–Poisé... – ela disse um pouco constrangida. Internamente já havia se decidido a viver com Artur, mas estava preparando o terreno para dar a notícia. Fip com certeza não a receberia com alegria. Talvez fosse bom aproveitar a chegada de Flavius... talvez...

Artur e Michel conversavam calorosamente a respeito de algum jogo novo enquanto Flavius contava para Manuel coisas sobre sua vida:

–...E foi quando minha tia decidiu mudar para aquela casa.- disse terminando a narrativa familiar.

Manuel observava os lábios do rapaz com uma insistência desconcertante. Pareciam especialmente corados por causa do vinho, o que dava a seu tom pálido de pele um ar definitivamente sexy. “Fip tem razão” – pensou – “Algo nesse garoto soa extremamente atraente. Alguma coisa no seu modo de sorrir, de mover o corpo desajeitado... esse olhar fugidio que nos encara ao mesmo tempo em que desliza para a escuridão. Flavius é um vulcão adormecido cuja genialidade aguarda o momento de emergir. Não é e jamais será como os demais. É como um presente delicado que tentamos preservar no fundo de uma gaveta... Fip é um otário. Vive a reclamar que o menino não é um artista. Diz que isso o desmerece. Mas apenas um completo ignorante, pervertido e egocêntrico como o Fip para ignorar que gente como Flavius não nasceu para ser poeta e sim poesia. Flavius não é um artista, é matéria bruta que inspira a arte. Ele é dança quando se move, é música quando respira, poesia quando existe. O modo como suas dores aparecem expostas em seu olhar demonstram uma força de caráter rara: a de uma pessoa que, apesar de todo infortúnio, crê internamente que um dia seus dias serão melhores. Seu olhar de ferida exposta exala esperança e uma imaginação delicada. Ele é um gênio. ”

O menino encarou Manuel como que lendo seus pensamentos e ruborizou enquanto desviava o olhar para o chão:

–Estou te aborrecendo com essas histórias chatas né?

–De maneira alguma. – disse Manuel – Continue, por favor.

–O resto é chato. – disse com uma sombra lhe passando pelo olhar – Nada que eu queira contar. Mas e você? É verdade que dançou fora do país?

–Sim. Mas isso é igualmente enfadonho. São histórias que só interessam a quem não tem nada por dentro. Pessoas que precisam preencher seu vazio com grandes feitos externos. Você não merece ouvir isso. Você é mais profundo que essas historietas burguesas.

–Sou? E por que acha isso?

–Porque você é o tipo de gente que vive aqui dentro.- disse apontando para a própria cabeça – Aposto que ai dentro – insistiu no gesto – Já viveu coisas muito mais interessantes que eu.

–Sempre fui muito imaginativo. Mas é que passava a maior parte do tempo sozinho. Precisava encontrar algo para me preencher.

–Isso é absolutamente fascinante! Conte-me tudo!

–Não saberia por onde começar. – disse meio sem graça – São coisa tão minhas que não há modo de expô-las sem parecer ridículo.

–Diante dos meus olhos você não pareceria ridículo nem que se esforçasse muito.

Flavius soou frio. O modo como Manuel o encarava, as coisas que lhe dizia... tudo isso misturado ao efeito do vinho parecia devastador. Manuel era um homem definitivamente galante e se dar conta disso com Fip a poucos metros de distância parecia um tanto constrangedor. Fip por outro lado era autoconfiante demais para acreditar que Manuel poderia ter olhos para Flavius ... não enquanto ele fosse a primeira opção. Por isso conversava distraidamente com Natasha sem se preocupar com o pequeno jogo de flertes que parecia se estabelecer debaixo de seu nariz.

Michel por sua vez percebia o fato com um misto dúbio de sentimentos. Por um lado achava irônico que o amante de Fip estivesse a se interessar por seu namorado. Tinha um que de justiça poética na ocasião. Mas isso tornava Manuel uma figura ainda mais complexa e difícil de ler do que antes. Quais eram seus reais interesses? O pensamento se desvaneceu quando Artur o abraçou por cima dos ombros e disse ao pé de seu ouvido:

–Natasha está muito gostosa, não é?

Michel virou o rosto para o rapaz, de modo que seus lábios quase se tocaram e respondeu:

–Absolutamente.

Artur não desviou o rosto e ficaram assim, um diante do outro por algum tempo. Michel passou seu braço pela cintura do rapaz e Artur disse encarando o olhar de Michel:

–Eu morro de tesão quando vejo ela assim, conversando normal com outra pessoa.

–Acho que vou pegar mais vinho. Você quer?

–Por favor.

Michel se soltou do braço do rapaz e caminhou rapidamente até a cozinha. Essas intimidades súbitas que Artur se dava deixavam-no sem reação. Não conseguia ler suas intensões. Às vezes parecia-lhe uma simples camaradagem de amigos, outrora uma provocação sexual. Ficava sem reação... sem ar... lembrava-se de quando ele, Natasha e Artur dividiram a mesma cama... Residia nele (em Artur) algum desejo de que a situação se repetisse ou seriam essas intimidades físicas uma consequência da experiência sexual que tiveram? “Não importa. Natasha é minha amiga e mesmo que Artur me quisesse, eu jamais trairia minha amiga dessa maneira” – pensava forçando uma falsa convicção ao mesmo tempo em que se deixava imaginar dividindo a cama com o rapaz:

–Muito bem. – disse Fip se levantando de repente – Quero propor um brinde! Ei! Ei! Olhem para mim! Estou falando! Muito bem. Quero propor um brinde ao meu grande querido Flavius! Que ele seja bem vindo à capital e que nossos dias sejam gloriosos!

Flavius mordeu os lábios para segurar o sorriso que lhe explodiu na face ruborizada. Manuel ergueu sua taça e todos seguiram o gesto completando o brinde. Fip deixou seu corpo cair ao lado de Flavius e enlaçou o menino em um abraço caloroso:

–Eu te amo muito. – disse sussurrando em seu ouvido.

Flavius segurou seu rosto e beijou sua boca com ardor. Logo o mundo externo estava esquecido para os dois que se amassavam e se agarravam em cima do sofá. Artur e Natasha não demoraram a repetir o gesto na varanda onde ficaram conversando logo após o brinde deixando Manuel e Michel se entreolhando no meio da pequena festa:

–É... parece que estamos claramente sobrando. – disse Manuel.

–Parece que sim. Acho que vou lavar a louça.

–Eu te ajudo.

Caminharam em silêncio até a cozinha meio que tentando evitar o inevitável:

–Então, tem gostado da capital? – perguntou Manuel enquanto dobrava as mangas da camisa.

–Demais. Tudo aqui é muito incrível!

–E o curso de teatro? Como vai?

–Bem! Estamos montando uma peça!

–Legal! Me chame para assistir!

–Nãão... É uma coisa ainda muito iniciante. Nada que você vá gostar de ver.

–Ai que você se engana. Eu adoraria.

Michel encarou o olhar de Manuel profundamente, ele parecia desnudá-lo com os olhos:

–Você precisa MESMO ser sempre tão galante?

–Eu não consigo evitar. Tenho um dom natural para perceber o melhor de cada pessoa.

–O melhor de cada pessoa é? E qual o meu melhor então?

–Você tem um senso de justiça e de valores que eu gosto. Gosto do modo como você parece se empenhar no trabalho e no curso, com seus amigos e tudo mais. O jeito como você observa as coisas, como nada parece te passar desapercebido... enfim... Você é um cara interessante.

Michel deixou o prato que estava lavando sobre a pia e enxugou calmamente as mãos:

–Ok, você me deixou sem graça.

Manuel se aproximou de Michel pelas costas e disse segurando a cintura do rapaz com as duas mãos:

–E posso te deixar sem roupas também?

–Acho que o vinho não vai me deixar dizer não.

...

Acordei com dor de cabeça. Michel estava deitado na cama que outrora foi de Fip... braços abertos, dorso nu, cabelos desgrenhados. No rosto pálido um ensaio de barba começa a se esboçar. O corpo exibindo as proporções de um homem, muito diferentes do menino com quem me deitei há alguns anos... Seu peito, seu quadril parecem maiores, os músculos do braço ligeiramente mais definidos. Não que ele chegue a ser um homem definido, mas tem suas formas. Encaro o meu reflexo no espelho e não percebo em mim grandes diferenças. Ainda parece o corpo de um adolescente confuso. Será que minha mente continua assim?

Sento-me à janela, “como Fip fazia” (será que essa frase jamais sairá da minha cabeça? ...serei, a partir de agora, uma eterna lembrança?) e fico a observar a cidade. Tento evitar todos os pensamentos e comparações... Fip gostava dessa vista, foi dessa janela que ele viu Natasha. Daqui, sentado como estou agora, ele me observava dormir do mesmo modo que observo Michel. Tomar consciência disso, dessa pequena ironia poética, não me faz nada feliz. O que ele diria se me visse aqui, sentado em sua janela dividindo sua cama com Michel? Logo Michel de quem ele tinha tanto ciúme...

Estranha essa sensação dúbia que tenho em relação ao Fip. Sinto sua falta, esse é um sentimento absoluto. Mas também sinto que sua morte... deus me perdoe por pensar assim... tirou-me certo peso das costas. É como se a morte realmente colocasse um ponto final em nossa história e me libertasse para recomeçar... (recomeçar o que ? se minha vida nasceu quando nos conhecemos?) ainda penso que preferiria tê-lo ao meu lado... mas quando meus olhares escorrem pelo corpo de Michel sinto que estou finalmente no lugar ao qual sempre pertenci. Ah! Que sentimento funesto! Essa culpa que me invade o coração por buscar minha felicidade!

Às vezes penso que o mais justo com Fip, com sua memória, seria me enterrar ao lado de Felipe para sempre, vivendo uma vida de felicidades miseráveis e sorrisos previsíveis. Mas é trágico e basicamente insuportável imaginar-me longe dos braços de Michel mais uma vez! (E com isso penso, inevitavelmente, que toda e qualquer lealdade que eu devesse ao Fip dançou pela ultima vez, junto ao seu corpo, naquela noite nefasta) Ah, Fip! Por que sua memória insiste em me obrigar a ser infeliz? E imaginá-lo a me observar... invisível...lendo meus pensamentos e mirando a mais medíocre e cruel face de minha personalidade... aquela que sempre tentei lhe ocultar... oh isso me causa a mais profunda má impressão!

Ler esse diário, relembrar nossas brigas, desenterrar as pequenas dores que acompanharam nossa relação... tudo isso tem dado às lembranças de nós dois (que guardei com tanto carinho no relicário de minha alma) um tom amargo de realidade vivida... Uma torpe sensação de que jamais fomos felizes. Mas basta fechar os olhos e sentir o cheiro dessa brisa de Alvinópolis ( Essa brisa que nos acordava todas as manhãs) para me recordar da sensação de abrir os olhos e mirar sua existência, plácida, infinita, confortável. Sua existência era um lugar confortável. De tamanha imensidão de paz que fazia valer toda a turbulência pela qual passamos... toda infelicidade a qual nos condenamos... Sofrer com você era talvez mais feliz que qualquer felicidade longe de ti... E julgar que essa felicidade e plenitude eram únicas e insuperáveis faziam da lembrança de nós dois um presente especial!

... mas então surge Michel, surge esse acordar ao seu lado... e onde estão nós dois? Fip e eu? Onde está nosso amor, se mirar o sorriso de Michel me deixa as faces rubras e me enche o peito de vontade de chama-lo de “meu menino”? Em que cavidade obscura do meu coração se esconde a dor de sua perda quando sinto o cheiro do outro me invadir as narinas? Estaria você (meu amor) contente com minha felicidade, abarrotado de ciúmes ou completamente apagado e deletado de toda a existência? Por deus... por sua existência divina, dê-me um sinal... qualquer que seja, para que eu saiba. Estarei eu ferindo a memória de Fip ao levar essa história adiante? Estarei sendo um herege a profanar a memória sagrada de nosso amor? Ou será essa oportunidade uma graça divina que talvez eu mereça?

Não sou um homem religioso... por vezes nem mesmo considero que sou um homem... um menino perdido sem pai nem mãe, abortado às avessas em um mundo onde jamais deveria ter nascido... a viver sentado em uma janela... a sua janela (meu querido Fip)... esperando por um sinal que nunca vem... Será que seus pés estão a bailar nos céus? A enfeitar meu destino? Ou a ira de teu ciúme te condena ao inferno quando nos vê juntos? Por favor Fip... Deus... quem quer que possa me ouvir os pensamentos, guie-me... guie-me... guie-me...


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