Sangue escrita por Salomé Abdala


Capítulo 61
Capítulo 59 – Alvinópolis.




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Flavius e Sofia esfregavam o chão da sala enquanto cantarolavam canções do passado:

-E o casamento? – perguntou o sobrinho de súbito – Vai bem?

-Tem seus altos e baixos. – comentou a mulher – Mas não está ruim.

-E como as pessoas da cidade têm reagido a vocês?

-Pensam que somos primas. Duas solteironas encalhadas. Penso que por aqui é melhor assim. Estamos pensando em nos mudar. Beatriz passou em um concurso em Brasília...

-Bom...

-Sim.

-...

-...

-E o seu casamento? Como está?

-Não sei se saberia falar sobre isso agora. – respondeu o menino se sentando em uma poltrona.

-Problemas?

-Ah isso tudo tem me deixado muito confuso. A morte do Fip, essas entrevistas, conviver com Michel, Natasha. Te ver. Estar aqui no Brasil tem me feito perceber o quanto sinto falta das pessoas que amo.

-Mas e o Gabriel? Você não o ama?

-Eu não sei exatamente o que significa amar alguém.

-Vish. Me passa o desinfetante? Esse canto aqui está bem sujo! Mas o que você quer dizer com isso? – disse pegando o desinfetante – Amar alguém significa amar, ué! Quere estar junto! Dividir planos.

-É isso. Eu não me vejo querendo estar perto de ninguém. Digo, eu estou contente de estar aqui com você agora. Estou contente por estar perto do Michel, da Natasha. Mas estar perto dessas pessoas que eu gosto... bem, parece que... a longo prazo me faz mais mal que bem.

-E com Gabriel? É diferente?

-Não. Às vezes eu o odeio.

-É... casamento tem disso. A gente convive todos os dias, a pessoa acaba virando um pé no saco. Mas nessas horas a gente tem que procurar, cavar, até encontrar quais foram os motivos que nos levaram a escolher aquela pessoa.

-Esse é o problema. Eu odeio o Gabriel. Odeio mesmo. Eu só fui viver com ele porque... bem, porque ele podia me levar para longe do Fip. Mas agora que o Fip está morto eu...

-Você não tem mais do que fugir.

-Eu percebi que mesmo longe eu nunca deixei de estar com ele.

-É complicado.... é complicado. – disse se apoiando ao rodo – Bem, acho que aqui é só passar mais um pano e está limpo! Depois é só pegar nos quartos e a casa está pronta!

Flavius encarou as escadarias e tentou puxar da memória qualquer resquício de vida, de boas lembranças... Mas nada encontrou. Aquela já não era a mesma casa, não tinha nela nenhum escombro daquelas memórias. Tentou buscar por aquele menino que subia e descia essas escadas com uma empolgação quase infantil, com aquela esperança de que as coisas tivessem sentido... mas nada. Aquele menino, aquele Flavius cuja inocência e esperança depositavam naquele mundo, naquela relação uma chance de encontrar seu lugar no mundo, estava morto.

“Onde foi que o mundo começou a desabar? E com o que eu estava ocupado? O que estava a me distrair quando aconteceu para que eu não tomasse nenhuma providência?”. Caminhou até as escadas e subiu devagar. Ele e Fip viveram tantas coisas ali. Em um mundo, em um lugar no temo e no espaço em que não restava tempo nem espaço para nada além dos dois. Uma redoma de companheirismo onde não havia nada além do amor dos dois. Além dos seus planos, suas piadas, suas brincadeiras. O tempo a escorrer lá fora, como se o mundo fosse um sonho distante e a única realidade fosse ali, dentro daquelas paredes, diante daquele olhar. Quando foi que lhe tiraram isso? Em que momento da trajetória a magia os abandonou?

Qual foi o acontecimento que transformou essa relação numa simples espera. Uma tentativa frouxa de retomar os tempos de amor pleno? Foi quando ele (Flavius) flagrou Fip e Michel na cama? Foi quando Fip o abandonou em Alvinópolis? Qual foi a decepção que rompeu os laços? Qual foi o momento que transformou essa perfeita simbiose em uma nostalgia compartilhada?

Impossível perceber. Talvez esse fosse o tipo de coisa que não acontecia de uma vez. O desgaste do tempo vem à conta gotas e não dá para perceber quando o copo deixa de estar vazio. Subiu até o quarto e abriu a porta devagar. Temia não poder conter as lágrimas quando visse aquele lugar, mas, para sua surpresa, a vida não era um filme de cenas óbvias e nada aconteceu. Os sentimentos, as nostalgias, já estavam ali, e a visão do quarto de nada interferiu no processo.

Sentou-se à janela, como Fip costumava fazer, e ficou a contemplar aquela cidade. O lugar onde nasceu, cresceu... agora parecia um sonho distante... Houve um tempo em que não existia mundo lá fora, e tudo parecia girar em torno daquelas ruas e suas casinhas pequenas. Essas pessoas e seus olhares desconfiados. Sentia certo aperto no peito: “Aquilo era um inferno!” – pensou enquanto calculava o quanto sua vida poderia ter sido diferente se jamais tivesse conhecido esse lugar! Essas pessoas e sua crueldade arcaica! “Teria sido uma pessoa mais feliz... uma pessoa possível! Não essa interdição amarga de sentimentos abafados.”. Pensou na capital, em Buenos Aires. Teria sido uma pessoa normal naquelas cidades, mais um invisível em meio a tantas diferenças. Aqui não. Aqui Flavius foi a atração principal, um banquete gratuito para a mesquinharia humana... o centro do palco... um horror.

E essa posição, os olhares tortos, os comentários maldosos à meia luz, mesmo que perdidos em meio às sombras de um passado distante continuavam impregnados em sua essência. Continuavam a impedi-lo de ser gente. “Alvinópolis. Eu odeio você!”. Pensou tentando segurar as lágrimas. “Odeio os amigos que você me negou. Odeio todas as vezes que você zombou de mim, que você jurou que eu jamais seria alguém.... Odeio cada filho de uma puta que respira nessa cidade. Odeio toda a vida que você criou!”

...

Michel chegou um pouco atrasado, por isso tive tempo para comprar a revista que estava folheando quando ele apareceu ao longe. Estava bonito, mais despojado, cabelos bagunçados. Um pouco diferente daquele menino certinho que eu ficava admirando na escola: ele tinha um olhar expressivo, um sorriso real! Era uma coisa bonita, quase encantadora. Acenei para que ele me visse no meio da multidão e ele logo chegou:

-Demorei?

-Nada.

-E ai? Como está? – disse me abraçando – Faz tempo que não te vejo!

-Pois é...

-Veio pra ficar? – disse se sentando.

-Ainda não sei.

-E sua tia? E a escola?

-Pois é! Tem isso. Minha tia disse que a gente pode me transferir de escola. Que se eu quiser mesmo vir pra cá ela tenta arrumar um emprego e tal.

-Ué! Mas você não vai morar om o Fip?

-Então. Minha tia não quer. Ela acha que não ia fazer bem eu depender dele.

-Arruma um emprego também, ué! Você não vai depender dele! Vamos morar todos juntos, dividir as contas.

-Bem, eu tenho que pensar em tudo isso. O que sei é que estou disposto a ficar com o Fip. E sua vida como está?

-Nada mal... mas também nada bem. Desculpe mudar de assunto, mas estou morto de fome. Já sabe o que vamos comer?

-Ainda não. Deixei para decidir quando estivéssemos juntos.

-Bem, aqui estamos. O que você prefere?

...

     “-Então você disse a ele que estava ensaiando?

-Disse. Ainda não sei como contar.

Manuel ficou me olhando com aquela cara de ‘Você não pretende arrastar essa mentira por muito tempo, né?’. Eu tentei evitar o seu olhar. Fazia certo tempo que eu havia perdido as esperanças de Flavius aparecer e nesse meio tempo as coisas começaram a rolar entre a gente. E... bem... Dar uns pega no Manuel é uma coisa que eu sempre sonhei. Jamais deixaria que essa oportunidade fosse embora, né?

O foda é que a coisa foi acontecendo de um jeito que, quando percebi já estava meio... fora do controle. Digo, Manuel era um cara mais legal do que eu imaginava e acabamos realmente dando certo... Não tão certo quanto eu e Flavius, mas ainda assim muito certo.

Flavius chegou de surpresa e eu não tive tempo de colocar um fim nessa história. Já tinha combinado um almoço na casa do Manuel e não queria faltar. Estávamos deitados na cama, comendo queijos enquanto víamos um filme antigo. Manuel ainda não tinha se vestido quando comecei a falar sobre a chegada do Flavius:

-Sabe. – ele disse – Eu gosto do Flavius, gosto mesmo. Ele parece um bom menino. Talvez não seja certo fazermos isso com ele.

-É... talvez não. Mas eu nem sabia que ele viria. Pensei que estivéssemos terminado.

-Mas e agora? Como vai ficar?

-Eu ainda não sei.  – disse vestido a camisa – Talvez eu volte mais cedo pra casa. Vou resolver tudo com ele.

-Não senhor. – Ele disse me puxando pelo braço – Você vai passar o resto do dia comigo.”

...

-Por aqui está tudo pronto. Você vai jantar em casa hoje? – perguntou Sofia limpando as mãos no avental

-Acho que não tia. –Respondeu Flavius – O pessoal deve estar para chegar, acredito que vamos passar o resto da noite fazendo entrevistas.

-Bem, faça como achar melhor. Vou deixar a chave da casa com você. Qualquer coisa que precisar eu estarei lá.

-Obrigado.

-Tudo bem meu lindo. – Ela disse beijando sua bochecha – Boa entrevista, até mais.

 Não demorou muito para que todos chegassem. Pierre foi o primeiro a entrar:

-Então essa é a casa? Engraçado é quase idêntico ao modo como eu a imaginava.

-Eu já tinha imaginado tudo diferente. – disse Rebeca observando os móveis e tentando imaginar o tamanho da loucura que era tudo aquilo. Emergir nas lembranças de alguém... O que falta em nossas vidas para que precisemos nos alimentar da vida dos outros?

Michel entrou em seguida como que pedindo licença. Era esquisito se sentir um estranho dentro daquela casa onde viveu tanta coisa. Não reconhecia o lugar, mesmo que estivesse tudo exatamente igual. Natasha, ao contrário reconhecia cada centímetro, cada segundo vivido ali. Era como se Fip fosse descer das escadas a qualquer segundo e dizer:

-Heeey, como estão vocês?

Mas lembrar-se de que isso não aconteceria feria seus sentidos. Fip havia sido, até então, uma das pessoas que mais tinha amado na vida... Lembrar que ele estava morto fazia um pedaço dela morrer:

-Então... – ela disse – Aqui estamos de novo.

-Aqui estamos. – disse Michel lhe reservando um sorriso.

-Então? Mostre-me tudo. – disse Pierre a Flavius enquanto tirava da bolsa uma câmera fotográfica.

Rebeca percebendo o mal estar de Natasha a segurou pela mão e disse:

-Vamos até o jardim. Você não precisa ver isso.

-Não precisa... é só que... é meio estranho ver a casa sendo documentada desse jeito.

-Eu entendo. Vem comigo, quero ver o jardim. – insistiu Rebeca.

Mas logo percebeu que não tinha sido uma boa ideia. Do jardim não restava nada ao invés de uma sombra mórbida de beleza. As rosas mortas, os muros cobertos de musgos, a grama crescida deixavam uma decrépita certeza de os dias dourados haviam passado. Ao vislumbrar essa decadência Natasha se sentou no chão e começou a chorar:

-Por que ele fez isso? Por que?

Rebeca abraçou a menina e disse:

-Porque ele não suportaria perder vocês.

...

Flavius me olhava de um jeito estranho:

-Tem alguma coisa errada? – perguntei.

-Não. Só estou te olhando. Você está diferente.

-Diferente como?

-Parece mais triste, mais forte... não sei.

-Talvez eu esteja as duas coisas. Não tem sido fácil a mudança, mas tem valido a pena.

-Toda mudança é assim.

-É.

-...

-...

-E como estão você e o Fip? Soube que o Felipe tentou atrapalhar vocês.

-É... ele tentou... mas não teria conseguido se o Fip não fizesse a parte dele.

-Como assim?

-Ah,  o Fip dá muita rata. Ele não precisava ter me deixado em Alvinópolis daquele jeito!

Nisso Flavius tinha sua razão. Fip fazia muitas coisas que uma pessoa apaixonada no nível em que ele alegava estar jamais faria. Mas Fip tinha seu jeito peculiar de lidar com as coisas e às vezes era meio difícil entender seus propósitos. Mas Flavius parecia um pouco cansado de lidar com isso e, visto seu olhar, a coisa entre os dois não parecia muito bem:

-E como você lida com essas ratas?

-Eu não sei. Parece que tá cada vez pior. Não as ratas que ele dá, mas  o jeito que eu reajo.

-Vocês brigaram?

-Não. Esse é o problema. Nem brigamos. Achei que nem valia a pena.

-É... isso parece tenso.

-Sei lá... As vezes eu tenho minhas duvidas se quero continuar. Mas é que já foi tão bom... quero dizer, quando está tudo bem é tudo tão bom...

-Que chega a valer a pena essas horas de crise?

-Às vezes eu penso que sim, às vezes eu penso que não.

Não sabia que posicionamento tomar. Meu lado amigo do Fip pedia que eu intercedesse a favor da relação, mas conhecendo o Fip como eu conhecia... sei lá, começava a achar que ele não era mesmo bom para o Flavius. Mas como dizer isso? Como tomar esse posicionamento se o menino tinha acabado de vir de Alvinópolis para que ambos ficassem juntos?

-Se você veio de Alvinópolis pra cá deve ser porque vale.

-Poisé... eu pensei que valia. Mas quando cheguei.... sei lá... senti tudo tão diferente.

-Dá um tempo. Você chegou ontem, ainda estava confuso por causa das coisas que o Felipe disse. Talvez melhore. Se tipo, em uma semana você sacar que não melhora você vai embora.

-É o que eu estou pensando mesmo em fazer...

Ficamos nos encarando algum tempo. Algum clima estranho rolou, mas não quis tomar nenhuma atitude, Flavius estava confuso, fragilizado. Seria muita filha da putagem tanto com ele quanto com Fip me aproveitar disso. Flavius me olhava com aquele olhar de: “Se você tomar a iniciativa eu correspondo”. Por isso desviei meu olhar e disse:

-Tem um parque ali do lado de fora. Que tal irmos até lã?

-Parece legal.

Fomos. No caminho ele me olhava meio constrangido, falava do Fip, dos dois. Depois perguntava pela milésima vez como eu estava. Quando chegamos ao parque e nos sentamos, ele finalmente falou:

-Michel, desculpa perguntar isso. Mas você acha que se eu não tivesse o Fip... sei lá... você acha que rolaria alguma coisa entre a gente? É que sei lá. Aquilo que rolou entre a gente... foi muito legal, sabe? Não dá pra fingir que não aconteceu. Tipo, como você lida com isso?

-Eu não penso muito nisso. Sei lá. Você e o fip são namorados, vocês dois são meus amigos, eu não quero estragar a relação de vocês.

-Eu sei, mas... as vezes você ainda pensa... tipo... no que rolou?

-As vezes sim...

-Tipo eu não to dando em cima de você... eu só... sei lá... acho que a gente tem liberdade pra falar a respeito. Não é?

-Claro! – concordei por cortesia, mas em verdade não me sentia a vontade para tocar no assunto.

-É que... ah, sei lá. Eu só não queria que ficasse uma barreira entre a gente.

-Não tem nenhuma barreira entre a gente.

-Eu sinto.

-Sério?

-Sério. Então fala. Às vezes passa.

-Eu não sei bem o que falar. Acho mais que eu queria ouvir.

-Ouvir tipo o que?

-O que você acha. A respeito do que aconteceu.

-Sei lá. Naquele tempo você e o Fip ainda não namoravam, era diferente. Vocês até estavam meio brigados e tal. Mas ai a gente ficou tal e no outro dia você chamou o Fip pra namorar, eu não entendi bem.

-Eu fiquei meio confuso com tudo.

-Eu também. Mas agora tá de boa. Acho que vocês fazem um casal bonito.

Ele abaixou a cabeça e depois disse olhando para trás:

-Talvez.

-E hoje eu descobri que você, além disso, também é um grande amigo.

Ele sorriu. Continuamos a tarde conversando frivolidades.

...

“Cheguei em casa eram quase sete da noite. Mesmo com todos os banhos que tomei na casa do Manuel continuava a cheirar camisinha e lubrificante barato. Por isso cheguei e caminhei direto para o chuveiro. Por sorte Flavius não estava em casa. Ele chegou um pouco depois que eu sai do banho:

-Posso saber onde o senhor estava? – perguntei.

-Caminhando com o Michel. Ficar nesse hotel é um porre. Como foi o ensaio?

-Foi bom. Só estou um pouco cansado. – disse beijando o rosto dele.

-Imagino. Você vai ter ensaio todos os domingos?

-Acho que sim. – menti.

-Entendi.

Observei seus olhos, ele não parecia desconfiado de nada. Senti certo alívio. Ele chegou e sentou ao meu lado na cama:

-Desculpa por ontem. Eu estava um pouco confuso. – ele disse.

-E quando você não está?

-Quando estamos bem.

-E estamos bem agora?

-Eu acho que sim.

Senti um comichão me subir pela barriga. Ele sorriu daquele jeito bonito, singelo. Do modo como meu Flavius sempre faz. Senti em meu coração que estávamos de volta ao lar. Beijamo-nos. Deixei a memória de Manuel para trás. Não ia largar Flavius por aquele banana... não hoje... talvez jamais.”


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