Sangue escrita por Salomé Abdala


Capítulo 6
Capítulo 4 - Admirável Mundo Novo




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/78767/chapter/6

‘’Seus olhos brilhavam ao ouvir aquelas palavras. Parecia ser a primeira vez que ele recebia tamanha atenção. Flavius tinha cortado os pulsos do  jeito errado, o sangue estanca rápido e há grande resistência dos tendões, o que impede que o corte seja muito profundo e alcance alguma artéria. É evidente que ele não queria morrer, só estava gritando, pedindo atenção:

—Coma, antes que esfrie. – falei sorrindo – Fiz esse prato especialmente para ti. Espero que goste.

Entreguei-lhe o prato e, logicamente, ele comeu. Tudo bem que ele não tinha lá muita classe... mas quem disse que eu me importo com isso? Talvez o simples fato de reparar nisso revela que eu me importo, né? Enfim. Vê-lo comer me trouxe algumas recordações... Meu pai quebraria meus dedos se eu segurasse um garfo daquela forma... naquele momento eu percebi o quanto a minha vida havia sido medíocre até então. Flavius tinha liberdade, ele podia fazer o que quisesse sem medo de ser punido. Até nessas coisas pequenas, como segurar um garfo daquela forma, ou comer sentado na cama, sem se preocupar em manter a coluna ereta e um comedido tom de voz. Eu o invejava... mas não o suficiente para querer ser ele. Flavius não fazia idéia da sorte que tinha...

Não sei por quanto tempo fiquei parado o admirando, mas sei que o fiz por tempo o suficiente para incomoda-lo:

—O que aconteceu? Por que está me olhando desse jeito? – perguntou.

—Estou lendo seus olhos.

Ele desviou o olhar, como qualquer fraco faria. Provavelmente acreditou que eu realmente ler algo no seu olhar... ficamos um tempo em silêncio... até que ele falou, forçando um sorriso:

—Você mora sozinho? E sua família?

—Eu não tenho família. – respondi sorrindo.

—Mas você não é neto do velho Francisco?

—Eu não sou neto de ninguém!!

Flavius compreendeu, e não tocou mais no assunto...’’

...

—Quer dizer que ele negou ser neto do tal Francisco?

—A principio sim, mas logo ele percebeu que não poderia faze-lo por muito tempo.

—No diário, Fip afirma que você não tinha a real intenção de se matar quando cortou os pulsos. Isso é verdade?

‘’Mas que pergunta cretina! Isso é completamente irrelevante! É por isso que eu não queria trazer a Rebeca aqui! Ela vai destruir essa maldita entrevista!’’  - pensou Pierre enquanto olhava para Rebeca com total desprezo por sua ‘’sentimentalidade feminina’’. Ela, por sua vez, ignorou seus olhares e prosseguiu, esperando por uma resposta de Flavius que, sentado em sua poltrona olhou para frente com olhar inexpressivo e distante, perdido em seus próprios pensamentos. Depois de um tempo em silêncio e reflexão, respondeu:

—Sim, acredito que seja verdade.

—Segundo ele, aquilo teria sido uma tentativa de chamar a atenção daqueles que o cercavam. Isso é correto?

—Acredito que sim. Eu era só um adolescente naquela época...

Pierre, impaciente, interrompeu:

—Por favor, Rebeca, isso é totalmente irrelevante! Vamos parar com esse sentimentalismo! A biografia é sobre o Fip, e não sobre ele!

Rebeca contentou-se em reprimir o companheiro com o olhar e continuou a falar:

—Você era uma pessoa sozinha. Sentia que sua existência era vazia e que sua presença não faria diferença para ninguém. Gostaria que alguém se compadecesse de sua dor. Por isso disse a Fip que ninguém sentiria sua falta. Pois gostaria de dividir com ele sua solidão. Mas você o fez esperando que ele a ignorasse, como todos tinham feito até então. Mas Fip disse exatamente o que você queria ouvir, ele disse exatamente o que você esperou a vida toda para ouvir, não foi?

—Foi, este sempre fora o maior talento de Fip; dizer exatamente aquilo que queríamos ouvir. E quando a gente é adolescente essas coisas têm um impacto muito grande.

—Então me parece que uma eminente paixão por Fip seria inevitável, não?

—De certa forma sim, mas as coisas não são tão simples na adolescência...

...

    -Quer dizer que você tem uma paixão secreta? – perguntou Fip sorrindo com esforço para disfarçar a frustração – ‘’Mas que droga! Devo lembrar de retirar essa pessoa inconveniente do meu caminho!’’

—Bem, mais ou menos. – disse Flavius timidamente – Na verdade é bem mais que uma paixão. É amor de verdade. É o amor da minha vida!

‘’Amor da minha vida? Era só o que me faltava! Romantismo de esquina é mais do que posso suportar! Amor da minha vida? E não mereço uma palhaçada dessas! O jeito é mudar de assunto...’’

—Puxa, três dias desaparecida. Será que aconteceu alguma coisa com a sua tia? 

Flavius se sentiu confuso com a troca repentina de assunto. Mas não se incomodou demais, pois não sabia como aquela conversa havia parado ali, mas, definitivamente, não gostaria de continuá-la. Afinal de contas, falar sobre seu ‘’amor’’ poderia lhe causar problemas, e ele não gostaria de se arriscar. Por isso, sentiu-se aliviado por Fip ter perguntado sobre sua tia, e prosseguiu com o assunto:

—Acho que não. Ela faz isso as vezes, quando fica puta da vida, sabe? Ela some por uns dias, depois volta.

—Caramba. E como você faz quando isso acontece?

—Geralmente nada. Ela nunca me trancou lá dentro antes. Acho que ela queria evitar que alguém me encontrasse caso eu tentasse me cortar de novo.

—Mas você não vai fazer isso, né? – perguntou Fip, sussurando no ouvido esquerdo do garoto.

—Não... eu... não...vou... – respondeu Flavius um pouco constrangido com a proximidade dos corpos.

—Você promete?

—Si...sim...eu...pro..meto...

—Ótimo, estamos combinados. – e se afastou para poder mira-lo nos olhos  - Posso confiar em você?

—Pode...

—Ótimo, agora precisamos selar nosso acordo. Você jura que nunca mais irá tentar tirar sua própria vida?

—Juro. – respondeu Flaviu já sem paciência com aquele joguinho todo.

—Então feche os olhos.

O garoto fechou os olhos, esperando terminar logo com aquilo. Não gostava dessas encenações de Fip, e sempre perdia a paciência antes que elas terminassem. Fechou os olhos e ficou ali, esperando que ele dissesse qualquer coisa para que Flavius repetisse. Mas, ao contrário do que ele esperava, Fip não disse uma palavra, ao invés disso, segurou-lhe o rosto e lhe beijou os lábios. Flavius abriu os olhos assustado e viu Fip deitado no chão rindo:

—Por que você fez isso?

Ainda rindo, Fip, respondeu com dificuldade:

—Você precisava ver sua cara, Flavius. Precisava mesmo!!

—Você é louco!! Não devia ter feito isso!

—E por que não? – sentou-se no chão ainda rindo.

—Por...por...que....ah, Fip, alguém poderia ter nos visto!

—Quem? O fantasma da minha bisavó?

—Você é louco, Fip! Por que fez isso?

—Porque eu quis.

—E você sempre faz o que quer?

—Só quando alguém não quer que eu faça.

—Que besta você.

—Você que é um fraco. Quer mais vinho?

—Não, obrigado.

—Ok, então vou lá buscar mais.

—Tá. ‘’Mas eu não tinha dito que não queria?’’

Antes de descer as escadas, Fip se virou para Flavius e disse:

—Sabe, Flavius, é legal ter você aqui em casa. Vou sentir sua falta quando sua tia voltar.

—Eu também vou sentir falta de ficar aqui.

—Nunca pensei que encontraria uma pessoa tão legal em toda a minha vida. – antes que houvesse uma resposta, o jovem dançarino se virou e desceu as escadas, deixando seu novo amigo sozinho, a remoer aquelas palavras.

...

‘’(...) De certa forma, eu não vivo mais no meu mundo. Tenho que dividi-lo com alguém, e, a cada dia que passa os nossos universos se fundem de forma mais esdrúxula e empolgante. Sinto que estou perdendo minha individualidade, tudo o que existe nessa casa passou a ter um novo significado: o quadro que pintei para minha mãe passa a ser ‘aquele que o Flavius gosta’, ou o tapete onde ele tropeçou, a janela em que ele geralmente se senta, enfim. Nada nesse meu pequeno mundo é apenas meu agora. E nossos mundos tentam se sobrepor um ao outro de forma curiosa. Parece que estamos nos medindo e nos lapidando, tentando encontrar algum ponto de encaixe.

O gosto pela descoberta que esse mundo me proporciona, de certa forma, me é agradável... mas sinto que me perdi na descoberta e sinto falta do que eu era antes. Nunca havia me dividido dessa forma. E essa sensação me traz um desconforto agradável de não saber o que vai acontecer.

De certo modo se tornou impossível ignorar sua existência e presença. E isso me rouba os pensamentos, me desvia de minha rotina normal. Não sei se gosto dessa sensação, mas estou certo de que não quero me livrar dela. Não quero que essa sensação termine nunca, mas não posso dizer isso a ele. Por isso, não digo nada. Apenas olho seus olhos e sorrio... se ele for esperto, será capaz de entender...’’

...

—Meu filho, eu preciso falar com você.

—Entre.

—Eu sei que, para você, é difícil tocar nesse assunto, mas... Bem, sua mãe e eu estávamos pensando. Bem, meu filho, você anda tão sozinho. Não tem mais amigos que nos visitam em casa, não tem amigos na escola. Eu sei que falta nessa cidade gente do nosso nível, e sua mãe se recusa a deixa-lo ir para a capital. Eu devo dizer que eu, pessoalmente, também não gosto da idéia. Não gosto de pensar que não vou saber como você vai agir por aí sozinho. Mas então pensamos que talvez. Bem, o jovem Perez acabou de chegar a cidade, ele também deve estar se sentindo sozinho então pensamos que talvez, bem...

—Esqueça.

—Michel, nós só queremos...

—Vocês querem um aliado político.

—Menino! Que modos são esses? Eu lhe proíbo de falar assim, mocinho!

—Eu sei que vocês estão quase falidos. Precisam do apoio dos Perez, para não morrermos de fome. Querem me usar para reconstituir a aliança. Esqueça pai, eu não vou fazer parte disso. Saia do meu quarto.

—Como ousa falar assim com seu pai? Escute aqui, mocinho, você pode não gostar disso, mas eu ainda sou seu pai! Você me deve um mínimo de obediência! Por isso eu te digo! Vamos chamar o jovem Perez para jantar, e você será amigável! Não se fala mais nisso, enquanto você viver sob esse teto terá de fazer as coisas como eu mandar!

...

‘’Seus olhos brilhavam mais uma vez. Brilhavam com a mesma intensidade de antes. Eu odiava quando Flavius começava a falar sobre essa tal paixão secreta. Todas as minhas tentativas de cortar esse assunto, dessa vez, haviam falhado. O jeito era prosseguir e descobrir quem era essa pessoa inconveniente que se colocava no meu caminho. Digo isso, dessa maneira, proque a essa altura eu estava claramente apaixonado por Flavius. E eu sabia, pelo jeito que ele falava, que sua “paixãozinha secreta” era por outro rapaz. Ele estava relutante em me dizer isso. Talvez por medo de eu julgá-lo por isso. Então pensei que também seria hora de me divertir um pouco com a timidez do jovem Flavius:

—E onde se conheceram?

—Bem, nós nunca nos conhecemos de fato. Quer dizer, nunca conversamos muito. Estudamos juntos há muito tempo, na segunda série. Depois nunca mais nos aproximamos novamente.

Eu estava sentado na janela do meu quarto, no segundo andar. Ele, na minha cama, olhando para o chão sem coragem de me encarar. Acho que meu olhar também estava distante, fixo em algum ponto da cidade. Fazia calor naquela tarde, e o cheiro de nossos corpos, misturado ao das rosas de meu jardim se espalhavam pelo quarto. O tempo parecia estar parado naquela tarde. Quente e tranqüilo, sem vento, sem som, quase sem ar. A primavera começava a colorir a praça, mas não havia ninguém por lá. Era domingo. Era um bom dia para amar. O tempo estava parado, mas eu queria continuar, por isso, senti os ventos voltarem a soprar, mesmo que levemente, quando finalmente perguntei:

—É menino ou menina?

Acredito que o tempo em que ficamos em silêncio havia desligado seus pensamentos, por isso não houve uma resposta imediata:

—O quê? – perguntou ele com total desinteresse.

—A pessoa de quem você gosta.

—O que tem ela?

—É menino ou menina?

Ele levantou seu corpo rapidamente. Levantou-se com tanta pressa que acabou derrubando um dos meus vasos, e estava tão alterado que pareceu nem perceber o fato. Foi ai que obtive minha resposta. Fiquei aliviado, era menino mesmo. Nem tudo estava perdido para mim:

—Co...como... a...assim?Co...como assim....meni...no ou meni...na?

Creio ter sido cruel ao responder:

—Ué, se tiver piu-piu é menino, se não tiver é menina.

—Isso...isso eu sei, ué....ah Fip...você também....tem cada...cada...

—É menino.

—Co...como assim?

—Tem piu-piu, ué.

—Eu sei disso, Fip! Mas como assim você sai falando que é menino!

—Se fosse menina você já teria dito. Não teria ficado ai todo nervosinho sem saber o que dizer.

Era engraçado ver sua cara. Suas pernas tremiam tanto que era impossível acreditar que ele permaneceria muito tempo de pé. Mas, depois de um tempo de convivência com Flavius percebi que essa tremedeira exagerada nas pernas era normal. Depois de deixa-lo se perder em seu desespero por um tempo resolvi acalma-lo:

—Relaxe, você está entre amigos aqui. Está entre iguais. – me levantei e me aproximei dele, o fiz sentar-se novamente na cama, toquei seu rosto e disse – Esse será nosso segredo. Agora, que tal me contar tudo sobre ele?’’

...

—Desculpe, gente, mas eu preciso ir ao banheiro. – disse Rebeca olhando para Michel que interrompeu sua leitura.

—Então vá, nós te esperamos aqui. – respondeu o garoto.

Rebeca se levanta e sai do camarote. O silêncio se instala no local até que a garota volta e se senta:

—Prontinho. – diz – Podemos continuar.

...

’-Quer dizer que ele é de uma família importante? – perguntei tendo uma idéia.

—Sim, quase tão importante quanto a sua.

—A minha? O que tem a minha família?

—Você não sabe?A sua família ajudou a fundar essa cidade. O nome Perez é quase um nome santo por aqui.

— Jura? Eu sabia que meu avô tinha sido importante por aqui. Mas não pensava que a fama dele corria até hoje. Então é por isso...

—Por isso o que?

—É por isso que recebi tantos convites para jantar, e que as pessoas me olham como se eu fosse a própria Nossa Senhora. Eu pensava que era só porque eu sou novo aqui.

Flavius perguntou se eu não havia aceitado nenhum dos convites que recebi para jantar, eu respondi:

—Claro que não! Estou tão cansado desses burgueses estúpidos! Eu cresci no meio desses jantares e festas importantes. Não tenho a menor paciência para nada disso! Mas se seu amorzinho pertence a uma dessas famílias, é melhor eu dar uma olhada no lixo. Deve ter algum convite deles por lá.

Flavius não parecia nada animado com a idéia. Mas não importava, eu queria conhecer esse tal de Michel pessoalmente, para saber com quem estava competindo. Queria saber por que tipo de pessoa meu Flavinhu poderia se interessar. A carta, como imaginei, foi encontrada. Era recente, tinha sido colocada ainda essa manhã. E eu providenciaria uma resposta, mas antes eu precisava descobrir o que fosse possível sobre eles e a sua ligação com a minha família. Acho que era hora de ir atrás de alguém da família. Alguém entendido dessas histórias...’’


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Alguém me pare, estou me tornando um compulsivo por postar capítulos xD