Sangue escrita por Salomé Abdala


Capítulo 59
Capítulo 57 – Nada ficou no lugar




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                -COMO ASSIM O FELIPE DISSE ISSO? – Fip gritou enquanto caminhava de um lado ao outro – FILHO DE UMA PUTA!

                -Às vezes foi o modo como ele interpretou as coisas... não?

                -Como se eu pedi para que ele fosse até lá te perguntar se estava tudo bem?

                -É... nesse caso parece que ele fez de maldade.

                -Parece? É óbvio que ele fez de maldade!

                -Enfim, Fip, o importante é que não funcionou e eu estou aqui.

                -NÃO! O importante é que ele é um filho da puta e isso não vai ficar desse jeito!- disse atirando o vaso de porcelana chinesa favorito do primo contra a parede.

                -FIP CALMA!!

                -Calma? Como posso ter calma?! Ele tentou separar a gente!

                -Mas já passou! Não estamos separados! Esqueça isso!

                -Não esqueço!  - disse chutando a mesa de centro derrubando todos os enfeites cuidadosamente colocados sobre ela – Esse patife vai se ver comigo! E você não ouse defende-lo!!!

                -EU NÃO ESTOU DEFENDENDO NINGUÉM! – gritou atirando a televisão no chão – Eu estou puto com o Felipe! Mas quebrar as coisas dele não vai mudar nada!

                -Mas vai nos divertir!

               

...

                -O que ta rolando aqui? – perguntei quando abri a porta e vi Flavius e o Chico tocando terror na sala.

                -Arruma suas coisas – disse o Chico – A gente vai ficar num hotel até arranjar o apartamento.

                -Como assim? O que ta pegando? Como o Flavius veio parar aqui? Cadê o Felipe? Pra que essa quebradeira?

                -O Felipe tá em Alvinópolis! Ele tentou fazer inferninho entre eu e o Flavius! Por sorte o Flavius....

                Não esperei ele terminar de falar, corri até o quarto do Felipe e peguei um daqueles tacos de golfe que ele morria de ciúmes e comecei a bater com ele na pia do banheiro:

                -Eu te avisei! – eu disse – Eu te avisei que aquele ali não valia nada!

                -Natasha! – gritou o Chico quando me viu no banheiro quebrando tudo – O que você está fazendo?

                -Eu sempre morri de raiva desse apartamento arrumadinho! Das chatices dele de “ai não pode isso” “ai vai sujar a prateleira” “mimimi”. – Eu disse arrebentando o box de vidro – Vi vocês quebrando as coisas na sala e pensei que podia descontar minha raiva também.

                -Caralho Natasha! Quebrar os enfeites de porcelana é uma coisa! Você fudeu o banheiro do cara!

                -O que eu posso fazer se eu sou mais hardcore que vocês?

                -Caralho é melhor a gente dar o fora daqui! – disse Flavius.

                -Que nada! O Felipe é um frouxo! – disse o Chico – Vamos dar uma lição nele!

                Eu dei um grito animado! Sempre tive vontade de fazer uma quebradeira dessas! Não ia perder essa chance por nada!

...

                -Vocês fizeram mesmo isso? – perguntou Pierre com uma expressão atônita.

                -Fizemos! – disse Natasha com um sorriso quase maníaco – Foi bárbaro!

                -Vocês são loucos?!

                -Éramos adolescentes! Parece que alguns vizinhos chamaram a polícia quando ouviram o barulho, mas quando eles chegaram nós não estávamos mais lá.

...

                -Então o Flavius está aqui? – perguntou Michel esticando as costas no banco da praça enquanto Natasha segurava seu copo de café expresso.

                -Sim, parece que ele veio pra acertar as contas com o Chico.

                -Nossa, ele tem coragem! Eu no lugar dele jamais faria o mesmo!

                -Nem eu!

                -Falar nisso, como estão as coisas com Artur?

                -Ah, tá tudo bem. – disse lhe entregando o copo – Eu só ando muito cansada por causa do trampo, mas tá tudo massa.

                -Nem me fale... nem me fale...                Mas então, Flavius vai morar aqui?

                -Eu não sei. Ele não trouxe malas nem nada, acho que ele vai voltar pra casa.

                -Entendi.... seria legal... se ele ficasse, né?

                -É... eu gosto do Flavius, mas sei lá. Eu não vejo futuro para os dois aqui. O Chico virou um cara muito diferente desde que chegou aqui, eu não acho que eles continuam compatíveis...

                -Você acha?

                -Acho.

                -Tomara que não.

                -Olá! – disse Artur se sentando ao lado deles – Como estão?

                -Oi meu bem! – disse Natasha beijando o menino – Não pensei que fosse chegar tão cedo.

                -A professora liberou a turma antes da hora. Tá rolando um congresso de não sei o que.

                -Eita! Vocês nunca têm aula direito nessa porra de faculdade!

                -Mais ou menos. ... E ai Michel? Bem?

                -Sim, sim, e você?

                -Ótimo.  – passou o braço por cima dos ombros de Natasha – E ai? Alguma novidade?

                -Flavius está aqui.

                -Como assim?

                -Parece que o Felipe foi até Alvinópolis e disse que o Chico não queria mais saber dele e ele veio tirar satisfação.

                -Como assim? Pensei que ele e o Chico estavam bem.

                -O Felipe tentou fazer inferninho entre eles, mas não deu certo.

                -Credo! Mas agora está tudo em paz?

                -Parece que sim. Mas aqueles dois nunca ficam em paz por muito tempo.

                Michel ficou observando o diálogo entre os amigos. Não sabia direito como se portar diante de Artur, ambos dividiram Natasha na mesma cama e agora que os dois namoravam Michel se sentia desconfortável em se lembrar do fato. Ainda existia nele certo desejo pelo rapaz que, hora ou outra lhe lançava olhares que pareciam duvidosos. Artur e Natasha, por outro lado, agiam com uma naturalidade tamanha que às vezes lhe colocava em dúvida se aquilo realmente havia acontecido: “Estávamos tão bêbados... às vezes eles mal se lembram.”. Mas, ainda assim, se sentia desconfortável, como se ele fosse uma barreira naquela relação... “talvez porque eu ainda o deseje... talvez porque eu quisesse fazer de novo... Natasha não se importaria... mas e Artur? O que será que ele pensa a respeito de tudo que aconteceu?”

                -E então? Vamos jantar? Estou faminto!

                -Vamos! Eu também estou morta de fome!

                -Então boa noite gente! – disse Michel se levantando.

                -Como assim? Você não vai jantar com a gente?

                -Não sei... eu tenho que...

                -Nada disso! – disse Artur segurando o rapaz pelo braço – Você vai com a gente sim!

...

                “A janela do hotel dava para uma rua cheia de prédios antigos. Luzes piscavam para indicar o estacionamento dos apartamentos enquanto alguns pedestres caminhavam tranquilamente. Flavius degustava a vista com um olhar maravilhado que me remetia a uma criança diante de um filme fantástico:

-O que há de tão interessante nessa vista? – perguntei.

-Os prédios! Acho-os lindos! Não tem prédios em Alvinópolis!

-É... eu me lembro disso!  E era o que eu mais gostava lá. – disse me sentando ao seu lado – Me sentar à janela e observar o céu... o céu limpo, sem nenhuma construção no caminho.

Flavius soltou um sorriso estranho:

-Somos muito diferentes, não é? Digo, viemos de mundos muito opostos.

-Não penso assim. Penso que viemos de universos desavergonhadamente iguais.

-Não sei. Antes eu conseguia ver entre nós muitas semelhanças. Você era o único cara que me olhava nos olhos e parecia entender o que via. Mas isso era lá em Alvinópolis.... aqui não. Aqui as nossas diferenças parecem gritar.

-O que você está querendo dizer?

-Nada meu bem. – ele disse acariciando meu rosto – Só estou constatando um fato. Antes parecíamos mais iguais.

-Como assim? – disse me levantando – O que você quer dizer?

-Nada Fip! Só estou comentando!

-Comentando por quê? Por que isso agora?

-Escuta, eu não quero começar uma discussão. Eu só quis dizer que...

-Eu entendi o que você quis dizer! Acho que você tem razão! Não temos mesmo mais nada a ver um com outro!

-Aff. Depois eu que sou o dramático!

-Que foi? Você veio até aqui pra isso? Pra jogar as coisas na minha cara?

-Fip, presta atenção! Dizer que não somos totalmente iguais não é o mesmo que dizer que não temos nada a ver um com outro! Temos nossas diferenças! E isso é bom! Não teria razão para continuarmos juntos se elas não existissem!

-Sim! Mas por que tratar disso agora? Que diferenças estão te incomodando tanto assim?

-Não tem nada me incomodando seu doido! Eu só comentei! Pronto não falo mais.

-O que mais Felipe disse a você? O que mais você não quer me contar?

-Felipe não me disse mais nada. É só que... sei lá... esse tempo que eu passei sozinho, o modo como você veio embora... As brigas que tivemos nos últimos dias. Isso pra mim evidencia diferenças entre nós que ainda não tínhamos percebido. Diferenças de caráter eu acho.

-Me explica isso melhor! – eu disse me sentando na cama, o coração palpitando, sentia que aquela conversa não acabaria bem.

-Sei lá. O jeito como você tem agido pra mim mostra suas prioridades. Você me deixou pra trás uma série de vezes para fazer coisas que seriam legais pra você. E nem pensou duas vezes antes de fazer isso. Eu não faria isso! Não colocaria as minhas vontades na frente de nós dois!

-Então se trata disso? De eu não ter ficado lambendo seu rabo ao invés de cuidar da minha vida? É isso mesmo? Realmente somos muito diferentes se você espera isso de um relacionamento!

-Não é isso que eu estou...

-Não! Agora deixa eu falar! Você está jogando na minha cara que eu devia ter ficado em Alvinópolis esperando você decidir o que queria da vida? Sério? Eu sou um artista Flavius! Eu tenho uma vida esperando por mim! Uma vida que independe de você! E eu preciso cuidar dela! Somos pessoas diferentes! Separadas! Não podemos viver na cola um do outro!

-Eu sei. – ele dizia com uma calma que não lhe era natural – Não estou reclamando de você ter vindo! Estou reclamando da forma como você veio! Eu jamais pediria pra você ficar enterrado em Alvinópolis por mim! JAMAIS! Mas... sei lá... também não esperava que você fosse tão de repente... tão sem dar a mínima...

-Ai coitadinho! O Fip mau não esperou a donzela se decidir!

-Ai tá bom Fip. – ele disse se virando pra janela – É impossível conversar qualquer coisa com você!

Deitei na cama e disse olhando para o teto:

-Falou o cara que quase quebrou meu nariz duas vezes.

-Ok, eu sei que eu também não sou das pessoas mais fáceis.

-Das pessoas mais fáceis? Que humildade é essa? Você é quase um elefante desgovernado!

-Suas provocações já foram melhores.

-É que você tem tirado minha inspiração.

-Sinal de que ela não era muito boa pra acabar tão rápido.

-Ué. Que respostinha foi essa?

-Andei aprendendo com você.

-Muito mal por sinal.

-Tive um péssimo professor!

-Idiota.

Ele riu:

-Sério Fip? Sério que estamos brigando por causa disso? Porra eu vim de Alvinópolis até aqui pra gente se resolver e vamos passar o resto da noite assim?

-Alvinópolis nem é tão longe assim.

-Então eu posso voltar pra lá agora?

-Claro que não seu trouxa! – eu disse me sentando – Agora que você veio até mim sua alma me pertence! Jamais poderá sair do meu lado de novo!

Olhei bem para o rosto dele. Nenhuma mudança de expressão. Antes Flavius ficaria ruborizado, sem jeito... agora nada. Minhas provocações não surtem o mesmo efeito.. eu não o atinjo mais. Por que? Ele aprendeu a se defender ou deixou de se importar?  Observo a sua figura parada diante da janela, tão impassível... busco nele a imagem daquele garotinho acuado, assustado, implorando para ser resgatado e não o consigo encontrar. Vejo um cara ardiloso, arredio, escorregadio. Ainda consigo perceber toda aquela sensibilidade latente e toda aquela auto piedade embutida em seus olhos, mas há algo diante dela: uma barreira de proteção. Uma amargura fétida que visa afastar qualquer predador desavisado. E eu, predador que sou, recuo diante do perigo: Flavius não é mais um joguete emocional nas minhas mãos. Ele mudou. Tornou-se um escudo repleto de estacas. Se antes o via como uma presa acuada, agora o encaro como uma aranha armadeira que quando ataca ao menor sinal de perigo. Uma figura desinteressada de tudo. Como se nada mais o surpreendesse. Será que eu o fiz ser assim? Será que estou exagerando?

-Acho que estou com sono. – ele disse – Me dá um espaço na cama pra eu dormir?

-Dormir? – eu disse o agarrando pela cintura – Tão cedo – disse sussurrando na sua orelha.

-É. – ele sorriu sem esboçar qualquer outra reação e se virou para o lado Com uma cara que deixava claro que não adiantava insistir.

Fiquei observando a cena por alguns instantes... talvez eu o tivesse magoado de verdade. Alguma coisa estava fora do lugar. Geralmente Flavius insiste em colocar os pontos, reclamar (até demais) e falar, falar, falar sem parar sobre tudo que o incomoda. Por isso seu silêncio pareceu chocante... algo estava apodrecendo dentro de seu coração e a sua não vontade de reagir diante disso sinalizava que ele pudesse estar cansado de lutar.... talvez fosse hora de eu ajuda-lo de verdade...”

...

                Acordei pouco antes do amanhecer . Fip estava dormindo de costas para mim. Dei de ombros. Estava feliz em tê-lo ao meu lado, mas algo não era como antes. Existia dentro de mim uma indiferença frente a tudo que não me era natural. Consigo me lembrar de dias em que acordar e encará-lo de costas para mim poderia trazer à tona centenas de pensamentos apocalípticos e um medo abissal de estar a perde-lo. Hoje sinto um leve não sentir. Uma sútil indiferença que nem me fere nem me cala. É como se nada fizesse diferença. Levantei-me e decidi caminhar um pouco na praça logo à frente do hotel. Sentei-me em um dos bancos e fiquei a observar o movimento do nascer do dia.

Às vezes a vida exige um esforço tamanho que o simples ato de respirar parece injustificado. E a sensação de não caber no próprio corpo se impõe como colossal sentimento sufocado na garganta. É o grito! O grito calado que nos afoga, o bruto movimento que de tão frenético paralisa. Monstruosa sensação de ser ninguém.

                Busco referências do que me resta da vida e nada encontro além de um sentimento vago de fracasso. Aqueles que a morte não levou tornaram-se um acúmulo de mágoas cuja presença mais arrasta o tempo que cura. É a solidão irremediável, o vazio que nos aguarda no fim da linha. Um convite à morte... escura vontade de não ser.

                Os pássaros cantam à minha volta, busco neles uma renovação que me faça conseguir encarar o dia. Penso no silêncio que seu vazio me deixou. No fundo é isso, não há adeus que não mate um bem querer viver...


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Notas finais do capítulo

Desculpem a demora. Nem tenho uma justificativa, simplesmente estava meio travado sem conseguir sentir essa história, espero que essa trava passe e eu possa voltar a escreve-la com fluidez. Mas não se assustem, não irei abandonar essa fic, prometo.