Sangue escrita por Salomé Abdala


Capítulo 58
Capítulo 56 – E julgas que me conhece?




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Capítulo 56 – E julgas que me conhece?

                Meu quarto um pequeno universo perdido em sua desordem. Na estante improvisada os restos de incenso queimado, as imagens (feitas toscamente de gesso) do sol e da lua. Livros de sabedoria duvidosa e roupas amassadas jogadas em qualquer e todo o canto.  Olhava para tudo com um misto de desprezo e adoração por mim mesmo. Aquilo era eu, aquelas coisas eram eu! Um recorte da minha personalidade, meus gostos. E eu gostava daquilo. Via em toda aquela cultura perdida uma beleza que só eu era capaz de entender. E havia certo conforto nisso. Como um lugar seguro, uma imensidão onde minha identidade era não fruto de chacota, mas motivo de orgulho!

                Estava ouvindo o disco do Saint Preux que o Fip me deu. Havia certa melancolia nisso, mas sem angustia. Apenas desfrutava do momento, da beleza intrínseca que há nas coisas tristes. Eu sou uma coisa triste. Não entendo porque as pessoas se incomodam tanto com esse fato, mas esse sou eu e sinto que não posso evitar. E quando estou sozinho posso sê-lo com excepcional liberdade, sem prestar contas de minha felicidade inexistente pra ninguém... há para mim, na solidão, uma sinceridade de assustadora liberdade.

                Fazia dois dias que praticamente não me levantava da cama. Minha tia insistia que se eu continuasse desse jeito perderia o ano na escola. Mas eu estava tão confortável em meu mundo isolado que me submeter à presença de outras pessoas poderia me arranhar a alma. Ela ficava à espreita, rondava meu quarto como um cão de caça... não a culpo, ela tinha medo que eu fizesse qualquer besteira. Mas ela não entende.. ninguém entende. O que sentia agora era diferente. A ausência que eu sentia agora era de forças. Não teria animo sequer para atentar contra minha própria vida. E isso nem sequer era necessário. Eu superaria a falta de Fip, cedo ou tarde, aprenderia a lidar com aquilo:

                -Flavinho... – disse minha tia entrando no quarto devagar – Flavinho, está tudo bem?

                -Estranhamente sim. – eu disse com um sorriso.

                -Escuta eu não quero incomodar você, mas é que eu tava voltando do trabalho e vi que tinha gente na casa do velho Francisco. Eu não sabia se devia ou não vir te contar, mas eu não sei... Talvez você devesse ir lá dar uma olhada...

                Meu coração acelerou: “Fip voltou? Ele sentiu falta de mim a ponto de voltar para me ver? Seria possível!?”:

                -Você acha? – eu disse tentando não demonstrar nenhuma empolgação.

                -Eu acho que você não pode viver com essa mágoa empoçada dentro de você. Se te apareceu uma chance de passar essa história a limpo você tem que aproveitá-la. Nem que seja para colocar um ponto final nisso.

...

                -Como eu estive? – ele perguntou tirando a parte de cima do collant revelando um corpo mais definido e bonito do que eu tinha visto pela ultima vez.

                -Você parecia ótimo. – eu disse tentando fingir que não estava reparando.  Mas eu não podia negar (nem a ele nem a mim mesmo) que a noite que passei com Fip tinha sido marcante (acredito que para ambos).  Lembro-me do jeito que ele me olhava na vez que ficamos eu Flavius e ele. Havia certo desejo de estarmos a sós.

                Existiu certa química e ele tinha um corpo espetacular! Eu tentava não pensar no assunto, por respeito a Flavius, por quem eu também sentia uma desconcertante atração, mas havia momentos em que era difícil evitar os pensamentos. Em verdade a minha posição era um tanto complicada. De repente me percebi, eu era o único solteiro do nosso grupo e tinha ficado com todo mundo (Natasha, Flavius, Fip... e até o Artur). E sentia vontade de ficar com qualquer um deles novamente.... senti-me um tanto... galinha ao perceber isso.  E confesso que não foi um sentimento ruim:

                -Sinto que estou acompanhando melhor o grupo. – ele disse – Estou pegando o jeito dessa coreografia.

                Os ensaios do ballet do estado eram no mesmo teatro em que eu trabalhava (na sala de ensaios que ficava na cobertura do teatro) e por isso Fip e eu estávamos nos vendo todos os dias. O que de certo modo não era novidade porque moramos na mesma casa. Mas era diferente encontra-lo em meu ambiente de trabalho (que, por sinal, era o seu ambiente de trabalho também), isso nos dava a oportunidade de conhecer uma faceta diferente de nossas personalidades. Estávamos ambos pessoas muito distintas dos adolescentes despreocupados com o mundo que éramos há meses atrás. Antes pensávamos simplesmente em bebida, falar besteira e fazer qualquer idiotice para passar o tempo. Hoje estávamos todos correndo atrás do futuro, elaborando planos...

                Almoçávamos com Natasha todos os dias no restaurante que ela trabalhava. Tínhamos um desconto especial por sermos amigos dela, uma cortesia do seu patrão que era um sujeito muito boa praça. E com isso estávamos reinventando nossa amizade... como adultos, se posso dizer assim:

                -Para mim você sempre esteve ótimo. – eu disse enquanto ele secava o suor do corpo com uma toalha.

                -Acho que estamos atrasados, vou deixar para tomar banho em casa. Estou fedendo muito? – Ele perguntou se aproximando de mim de um jeito desconcertante.

                -Sinceramente não.

                -Tem certeza? – ele disse quase encostando o pescoço na minha boca.

                -Absoluta.

                -Então ok. – ele vestiu a camisa e pegou suas coisas. – Vamos?

                -Vamos.

                Caminhamos lentamente pelo parque que separava o teatro do restaurante, Fip parecia apreensivo. Ficava calado, o que já não lhe é natural, olhando para os lados como se procurasse alguma coisa:    

                -O que está te incomodando? – perguntei meio já sabendo o que era.

                -Você não tem o telefone do Flavius?

                -Já disse que não.

                -Eu não consigo falar com ele! Isso tem me deixado agoniado.

                -Até hoje? Não achou seu celular?

-Não!

-E vocês terminaram?

                -Eu não sei exatamente. Talvez tenhamos terminado. Digo, depois desse tempo sem se falar ele deve estar pensando isso.

                -E como é isso pra você?

                -Eu não sei. É difícil sentir alguma coisa sem ter uma definição. Tenho medo de considerar que acabamos e ser precipitado. Também tenho medo de continuar considerando que estamos juntos e quebrar a cara.

                -Mas digo... o que você quer? Quer continuar ou terminar?

                -Não sei. Não quero voltar pra Alvinópolis. Não acredito em namoro a distância. Se ele não topar vir pra cá o jeito vai ser terminar.

                -Você não acha que foi precipitado em vir embora desse jeito?

                -Fui, mas olha quantas coisas boas aconteceram! Eu precisava tocar minha vida pra frente!

                -Isso é verdade.

                -E outra, fiz isso um tanto pela Natasha também. Não fosse por isso ela não estaria às boas com o Artur.

                -É... tem dessa.

                -Mas o Felipe foi pra Alvinópolis. Ele disse que vai conversar com o Flavius. Ele vai voltar com alguma resposta.

                -Vish...

                -Que foi?

                -É que a Natasha não gosta muito do Felipe. Ela acha que ele quer roubar o Flavius de ti.

                -O Felipe não é flor que se cheire. Mas ele não gosta do Flavius, ele gosta de mim! E o Flavius jamais me trocaria pelo Felipe... por você talvez, mas o Felipe? Ele nem tem graça!

                -Sua auto confiança é inspiradora!

                Ele ficou calado depois disso. Seu silêncio meio que disse que ele estava preocupado também.  Eu dei de ombros e continuei caminhando. Queria que os dois dessem certo. Queria que o Flavius se mudasse para cá, mas isso parecia um tanto impossível. É sempre triste ver um casal romper... mesmo que não tenha nada a ver conosco, acabamos compartilhando certa sensação de fracasso...

               

...

                Flavius caminhou lentamente até a casa do velho Francisco. Tinha medo da decepção que sofreria acaso não fosse Fip quem estivesse lá. Ou pior, acaso Fip estivesse lá e o tratasse com uma frieza inesperada. Afinal, devia haver algum motivo para seu silêncio. Não conhecia o carro que estava estacionado na porta, o que lhe causou certa insatisfação: “Não é ele” – pensou – “Evidente que não! Quando foi na sua vida que algo aconteceu do jeito que você esperava? Idiota!”. Fez menção de voltar para trás, mas algum impulso o obrigou a prosseguir. “Mas minha tia tem razão. Eu preciso tirar essa história a limpo! Mesmo que seja para termina-la!”.

                A porta estava aberta. Flavius entrou meio constrangido... estranha sensação, aquela casa até pouco tempo era um pouco sua e agora se sentia um estranho dentro dela:

                -Olá?

                -Flavius? – disse Felipe descendo as escadas com umas caixas na mão – Que bom ver você!

                O estômago do garoto se remexeu, de todas as pessoas que existem no mundo Felipe era aquela que ele menos desejava ver ali:

                -Ah, oi Felipe.

                -E ai? Como tem passado?

                -O Fip está aí?

                -Ah... não. – ele disse forçando uma cara de piedade – Ele... ele meio que me pediu pra buscar umas coisas pra ele.

                -Ele te pediu? Como assim ele te pediu?

                -Ele anda meio ocupado... sei lá. Ele disse que não queria vir. Você sabe como ele é! Ele não sabe lidar com esse tipo de situação.

                -Que tipo de situação?

                -Você sabe... esse rompimento entre vocês. Ele disse que não queria vir porque... ah deixa pra lá.

                -Fala!   

                -Melhor não Flavinho. Deixa isso quieto que é melhor.

                -Fala!

                -Não! Você não precisa passar por isso! Já basta tudo que ele anda falando por lá. Deixa isso quieto.

                Flavius caminhou em direção ao garoto, deu um tapa na caixa que ele carregava derrubando-a no chão, pegou-o pelo colarinho e o prensou contra a parede:

                -FALA AGORA! O QUE ESTÁ ACONTECENDO!?

                -Calma Flavinho eu....

                -CALMA O CARALHO! EU ESTOU AQUI HÁ MAIS DE UM MÊS SEM NOTÍCIAS! O FIP NÃO ATENDE MEUS TELEFONEMAS, NÃO ME DEIXOU NENHUM RECADO! NÃO ME MANDOU SEU ENDEREÇO NOVO!        

                -Flavius, o Francis tá em outra. Ele mal lembra de você. Se eu fosse você eu esquecia isso.

                -COMO VOCÊ PODE DIZER ISSO? COMO PODE INSINUAR QUE ELE ANDA DIZENDO COISAS SE VOCÊ ME DISSE QUE NÃO TINHA NOTICIAS DELE? EU CONVERSEI CONTIGO ONTEM! E ONTEM VOCÊ FALOU QUE NÃO TINHA VISTO ELE MAIS! COMO ELE TE PEDIU PRA VIR ATÉ AQUI!             

                -Flavius para de gritar. Eu não vou conversar com você nervoso desse jeito.

                Flavius atirou Felipe no chão e disse quase fora de si:

                -VOCÊ VAI COMEÇAR A ME EXPLICAR ESSA PORRA TODA! AGORA!

                -CALMA FLAVIUS! Tá bom! Eu vou falar! Olha, o Francis estava na minha casa. Eu não te disse nada porque queria te poupar. Ele anda meio esquisito. Esse sucesso do festival subiu a cabeça dele. Ele... ele bem. Ele não quer mais saber de você.

                -Ele disse isso?

                -Ele não disse, mas nem é preciso. Ele sai toda noite, fica com todo mundo, nem toca no seu nome. Ele foi aceito no corpo de baile do ballet do estado. Você imagina, ele recebendo toda aquela atenção, daqueles bailarinos... Enfim. Você sabe como ele é.

                Flavius olhou para Felipe como se o fosse matar, suas pernas, como de costume nessas situações, começaram a tremer:

                -Você não está falando sério! – disse com seus olhos se enchendo de lágrimas.

                -Eu adoraria estar mentindo, meu querido. Mas não estou. Eu já te contei a minha história, ele fez a mesma coisa comigo! Você não se lembra que...       

                -Mas comigo era diferente! O Fip me amava! Ele não ia me esquecer assim tão rápido! Não é possível! A gente viveu tanta coisa...

                -Flavinho... conforme-se, o Francis é assim.

                -MENTIRA! VOCÊ ESTÁ MENTINDO!

                -Por que eu mentiria meu bem?

                -Eu não sou seu bem! Eu sou o bem do Fip!

                -Não é mais! ACEITE ISSO!

                -NÃO! – disse pegando a caixa e jogando contra o rapaz .

                -Flavius, você está descontrolado!

                -ME DEIXA EM PAZ! SAI DAQUI! ME DEIXA SOZINHO! SAÍ!!!!

                Felipe tentou lembrar ao garoto que aquela não era sua casa, mas visto o seu transtorno decidiu simplesmente obedecer. Correu para o lado de fora da casa e esperou até as coisas se acalmarem. Flavius por sua vez estava tomado em fúria. Não podia ser mentira, tudo que ele e Fip viveram não podia ser mentira! Algo em seu coração lhe dizia que aquilo não era verdade, no entanto conhecia Fip o suficiente para saber que não era uma hipótese tão inverossímil. Sua vontade era quebrar tudo! Quebrar todos os malditos móveis daquela casa onde tantas de suas ilusões haviam sido construídas!  Mas seu corpo não se movia. Por mais que sua mente estivesse prestes a explodir, mesmo que o tempo dentro dela parecesse cavalgar com os ventos mais febris, seu corpo, inerte, recusava-se a executar qualquer movimento. Deixou-se cair apenas. Em choque, nem chorar parecia possível.

                “Como ele pôde? Ao menos se dignou a me dar um adeus decente...”

...

                -Aqui está! – eu disse colocando os pratos na mesa – Agora vamos comer que estou morta de fome!

                Sentei na mesa, Chico tava com aquela cara de quem comeu e não gostou, Michel tava meio aéreo. Olhei pra cara dos dois e disse:

                -Achei um apartamento legal aqui perto. Tem três quartos, é um pouco mais caro do que eu e o Michel podemos pagar, mas o Chico é pica grossa e disse que podia pagar qualquer coisa então acho que não custava olhar.

                -Ahahahaha! Eu pica grossa? – ele disse – Bem, lá na casa em Alvinópolis eu não pagava aluguel, então sobrava bastante dinheiro, aqui as coisas são diferentes. Mas tem os apartamentos que eram do meu tio. Eu já disse, é só a gente esperar algum deles desocupar.

                -Mas eles ficam todos longe Chico! Você tem carro a gente não!

                -Sabe que eu tava pensando em vender um daqueles apartamentos e comprar outro por aqui.

                -Ai é contigo. Eu não entendo de riqueza. Mas queria olhar esse ape, vamos? Eu não aguento mais morar com aquele seu primo!

                -Você quase não fica lá! Passa todo o tempo com o seu Arturzinho!

                -Exatamente por isso! Porque eu não gosto daquela cara de bolacha do Felipe! E tu abre o olho hein?! Esse menino vai aprontar lá em Alvinópolis, escuta o que eu to te falando! Se eu fosse você aproveitava o fim de semana e ia lá você mesmo!

                -Natasha, hoje é terça! Eu não quero esperar até o fim de semana!

                -Pois você fez uma grande merda! O Felipe vai cagar em tudo lá, escuta o que eu to falando! Escuta!

                -Tá! Mas o que eu posso fazer agora então? Ele já tá lá!

                -Agora tu chora e admite que é retardado! Porque o que você fez foi dá uma rata muito grande!

                -Chega Natasha! Eu não preciso ficar mais nervoso do que já estou!

                -Pega esse maldito telefone novo que você comprou e liga pro seu primo agora! Manda ele ir atrás do Flavius e só sossega quando tiver falando direto com ele!

                -Eu não vou fazer isso!

                -Ah vai! Vai sim! Se você gosta do Flavius você vai!

                -Eu não. Vai que ele nem tá lembrando mais de mim? Eu vou fazer papel de palhaço correndo atrás dele?

                -Aff, Chico. Você é muito idiota, credo!

                -Olha quem fala! Nem vou te lembrar o e-mail que você respondeu pro Artur! Se não fosse eu vocês nem tavam juntos!

                -Mas é diferente!

                -Diferente  o caralho!

                -É sim!

                -Chega vocês dois! – disse o Michel – Credo parece criança! Vamos almoçar rápido e ir lá olhar esse apartamento. Se der certo a gente aluga ele, se você decidir comprar outro, Fip, a gente muda de novo depois, pode ser?

                -Pode ser.

                Ele ficou me encarando de cara feia, o Chico não gostava quando eu falava mal do Felipe desse jeito. No fundo porque ele sabia que eu estava certa. Ele sabia!

...

                -Espera! – disse Rebeca – Para tudo! O Felipe fez inferninho entre vocês?

                -Foi. – disse Flavius – Tentou ao menos. Só que ele me conhecia muito menos do que imaginava.

...

                -Me leva pra capital. – eu disse saindo da casa.

                -O que? – ele perguntou atônito.

                -Eu quero resolver isso com o Fip pessoalmente! Me leva de volta com você!

                -Flavius, não se exponha a isso!

                -Eu não vou me expor a permitir que ele faça uma coisa dessas comigo e fique por isso mesmo! Se ele quer me descartar vai ter que fazer isso direito! Vai ter que falar na minha cara!

                -Eu não vou deixar você fazer isso!

                -Então eu vou sozinho. Vou de ônibus, eu me viro.

                -Flavius! Espera! Eu tenho uma ideia melhor! Eu vou receber um dinheiro legal de um trabalho que eu fiz ai. Estou com uma boa grana guardada. Nós podíamos ir embora juntos para bem longe daqui! Assim nós mostrávamos para o Francis que...

                -Felipe! Entenda de uma vez que eu não quero nada com você! Aquele lance que aconteceu entre a gente foi um... foi um mal entendido! Eu estava com raiva! Seria capaz de fazer qualquer coisa pra ferir o Fip! Acabei usando você, isso foi um erro! Foi um acidente!

                -Mas eu não me incomodo em ser usado Flavius! Eu não estou te pedindo para gostar de mim! Eu não quero que você me ame de verdade! Eu só quero que você fique comigo! Só isso! Eu vou cuidar de você! Eu juro que vou! Jamais faria contigo tudo o que o Francis te faz! Eu vou te fazer feliz! Juro que vou!

                -Felipe querido. Eu gosto muito de você, mas como amigo, só! Eu não posso fazer isso contigo! Não posso fazer isso comigo! Eu gosto mesmo do Fip e prefiro um dia cheio de sofrimento ao lado dele que uma vida inteira de paz junto com você. Desculpe dizer isso... não deve ser uma coisa fácil de ouvir... mas eu preciso ser honesto.

                Ele se ajoelhou diante de mim e disse segurando minhas pernas:

                -Mas você é minha última esperança Flavinho! Você é tudo que eu tenho! Eu te amo! Eu te amo muito! Não faz isso comigo! Me deixa te fazer feliz!

                -Você quer me fazer feliz? Me leva até o Fip.

                Ele me olhou com uma expressão dramática:

                -Isso eu não posso fazer.

                -Para com isso Felipe, por favor.

                -Por favor Flavius! Me da uma chance, só uma! Eu juro que não vou precisar de outra!

                -Felipe pelo amor de deus! Eu não te amo! Entenda!

                -Mas eu te amo por nós dois! Eu tenho amor o suficiente!

                -PARA DE SE HUMILHAR ASSIM! –Gritei  - Você não pode amar tanto alguém sem ter um pingo de respeito próprio!

                -E não é o mesmo que você está fazendo pelo Francis? Se humilhando?

                -É diferente! Eu não sou homem de terminar através de recado. Se o Fip não me quer mais ele vai ter que dizer isso na minha cara! E vai ter que me explicar porque! E se ele realmente disser que não me quer pode ter certeza de que eu desaparecerei da vida dele pra sempre!

                -Eu não vou te levar! Não vou!

                Sai da casa com raiva. Felipe gritou meu nome umas três vezes, mas se calou quando percebeu que estava chamando atenção. Seja lá o que tivesse acontecendo eu ia descobrir!

...

“Escolher o apartamento pareceu uma pequena tortura mental. Era como se aquilo me obrigasse a encarar a mudança! A casa em Alvinópolis, meus dias sentado à janela observando o nada, as noites deitado com o Flavius conversando sobre bobagens, rindo a toa, brincando a vida... tudo isso tinha ficado para trás. O que sobrava agora era um dia a dia prático, concentrado no futuro. Planos para amanhã! Ser um grande bailarino, estar bem na coreografia, ter um apartamento novo... tudo está por vir, está para chegar. A felicidade será amanhã... não reside mais no agora, no hoje...  foi ontem.... será depois...

Senti uma vontade desesperada de correr de volta para o Flavius,  para o tempo em que nada era importante... eu e ele juntos e o resto era lixo... descarte... A simplicidade daqueles dias em que acordar e passar manteiga em um pão dormido era o suficiente para garantia felicidade. Aquele menino dentro daquelas camisetas enormes acordando com os cabelos bagunçados, sorrindo meio sem graça, meio aprendendo a ser feliz. Com seu olhar incerto, indeciso de quem duvida do próprio brilho.... seu jeito incrédulo diante de qualquer elogio... Nada disso era melhor que estar com ele... nada...

Mal consegui me concentrar nas aulas da tarde. Perdia o tempo, desencontrava os passos, estava perdido em meu corpo, um relógio sem ponteiros. Era como se do nada tudo se tornasse vazio, insignificante, mesquinho. Ser um grande bailarino, participar de coreografias, alugar apartamentos... para que? Com qual propósito? Para agradar a quem? Por que nos movimentamos tanto se é no silêncio que se ouve as melhores poesias? Para que toda inquietação se é a quietude que nos aquece o coração? De que vale todo esse vapor, todo esse gás se minhas melhores lembranças estão deitadas em uma cama jogando carícias fora?

Existir é uma coisa bastante complicada. Por que é tão difícil aceitar a felicidade? Por que é tão difícil simplesmente se deixar viver do modo que nos faz bem? Que necessidade é essa de conflito, de sair da zona de conforto, buscar, buscar, buscar e jamais encontrar resposta/lugar/conforto/ felicidade alguma? Onde está essa paz interior? O bem estar? Onde vivem esses sentimentos? Onde?

Sai da aula cansado. Cansado de lutar contra a vida, contra a corrente... Por que nos movemos? Insistia em me perguntar. Por que? Por que nos movimentamos?  Caminhei até o carro e dirigi pela cidade, fiz um caminho mais longo para me permitir pensar. O movimento do carro me ajudava a pensar. Ver as coisas, a vida passando... isso me fazia refletir... sobre o que? Eu já nem sei. O que sei é que tive um lugar confortável onde repousar meu coração e o troquei por holofotes cantantes, por aplausos calorosos, por um glamour cuja existência pode ser contestada pelo mais tolo dos mortais. Troquei meu coração pela dança. E estranhamente não ouso a me arrepender.  

Cheguei em casa e estava quase anoitecendo. Flavius estava sentado diante da porta do apartamento:

-O porteiro me deixou entrar. – ele disse com aqueles olhinhos perdidos que pediam socorro com a mesma força bruta que diziam: ouse me ferir para ver como te posso devorar!

-Onde está o Felipe? – perguntei. Estava tão surpreso com sua presença que mal conseguia esboçar uma reação.

-Ficou em Alvinópolis. Ele se recusou a me trazer para vê-lo.

-E como chegou aqui então?

-Minha tia me trouxe. Ela inventou uma desculpa no trabalho e me trouxe. Você simplesmente sumiu. Eu fiquei sem saber o que tinha sobrado de nós... Desculpe se estou fazendo papel de ridículo, mas acho que depois de tudo que vivemos eu merecia ao menos um parecer... uma resposta.

- E... eu perdi meu celular... perdi seu telefone, não sabia seu endereço... quando me dei conta não tinha como contatar você! Flavius...? E... eu... não sei o que dizer!

-Diga que sentiu minha falta. Que não vive sem mim que eu juro que vou acreditar.

-Nesse instante sou capaz de dizer qualquer coisa para te ver sorrir.

-Então diz que ainda me quer. Porque eu ainda quero você.

-É claro que eu te quero seu ridículo! É claro que te quero!”


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