Sangue escrita por Salomé Abdala


Capítulo 55
Capítulo 53 – De volta pra casa.




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Pierre se levantou para buscar a pizza. Estavam todos sentados em volta do tapete.  Fazia frio e ninguém parecia disposto a conversar sobre o passado. Por isso decidiram se render à noite e falar distraidamente como amigos de longa data. Rebeca parecia especialmente disposta a conversar, estava particularmente risonha nessa noite e isso lhe dava certo ar radiante.  Natasha, por sua vez, mantinha-se pensativa, nervosa. Pierre chegou com as pizzas:

   -Aqui está! – ele disse – Vou buscar o vinho e os refrigerantes.

   -Eu te ajudo. – disse Michel.

   Flavius acompanhou aos dois rapazes com o olhar. Estava a sentir certo formigamento no estômago: “Estaria acontecendo de novo? A essa altura da vida me julgava incapaz de sentir algo assim.”, soltou um sorriso, talvez fosse uma boa hora para se permitir apaixonar. Mas e Gabriel? Talvez fosse hora de se separarem, deixar de viver nessa falsa margem de segurança e se deixar levar pelas fortes emoções. Não foi isso que fez durante toda sua vida? Por que estava agora a se contentar com tão pouco? Um apartamento bonito, um dia a dia seguro... era quase como se aposentar da vida, esquecer o essencial, a emoção! Não! Estava muito jovem para isso! “Muito jovem”, achou o termo engraçado. Em sua adolescência jamais o usaria para se referir a um homem de vinte de poucos anos. Mas é bem verdade, era ainda jovem e não podia se render ao nada! Merecia viver uma paixão!

   E Michel, sendo sincero, parecia mais bonito agora! Essa barba por fazer, os cabelos maiores... os ombros até pareciam mais largos! Tinha nele um ar de homem, mas não de velho, um charme diferente! Natasha também, com cara de mulher, mais bonita, elegante! Ele, no entanto tinha a sensação de ter mudado pouco:

   -Pareço mais velho? – perguntou de sobressalto.

   Natasha que pareia perdida em seus próprios pensamentos lhe direcionou um olhar de dúvida, Flavius repetiu a pergunta:

   -Pareço mais velho?

   -Como assim?

   -Você e Michel estão com cara de adultos. Mais charmosos! – acrescentou antes que amiga levasse o comentário para um lado negativo que as pessoas costumam dar à idade– Mas eu me olho no espelho e não percebo grandes mudanças. Eu pareço mais velho?

   -Você parece mais triste, isso te deixa velho. – respondeu Natasha – Esse cabelo arrumado não combina com você. Gostava quando você cortava ele todo torto, deixava um lado maior que outro, a frente maior que as costas! Dava uma personalidade! Agora, sei lá, você parece ter virado um pequeno burguês... como o Felipe.

   Rebeca arregalou os olhos. Aquilo não se parecia com uma coisa que algum amigo gostaria de ouvir. Por isso vidrou os olhos em Flavius esperando por uma reação sua:

   -Nossa. – ele disse – Não esperava por isso. Você acha mesmo? Acha que eu estou me enquadrando? Tipo, virando um adulto chato?

   -Acho.

   Flavius sacudiu a cabeça como que tentando afastar o pensamento:

   -Então por que não muda isso? – perguntou Rebeca – Ainda há tempo.

   -Não sei. Esse é o tipo de coisa que a gente acha que nunca vai fazer. Digo, se enquadrar. Mas a vida vai nos levando sorrateiramente e quando nos  damos conta lá estamos nós, agindo como idiotas.

   -Então aproveita que percebeu isso e dá uma reagida! – disse Natasha – Antes que seja tarde!

   “Mas e aí eu vou comer o que? Dormir onde? Ter um emprego não é tão fácil quanto parece na adolescência. Levar a vida exige certas habilidades... mas qual o preço? Qual o preço?”:

   -Não sei por onde começar. – ele disse num tímido ar de fracasso.

   -Querido. – disse Rebeca segurando sua mão – Quer um conselho de quem jogou TUDO fora para começar uma vida nova?

   -Quero.

   -Vale a pena! – ela disse- Vale MUITO a pena!

   O menino sorriu, Michel e Pierre entraram na sala com as bebidas:

   -Aqui está! – disse Michel – Vinho para as senhoritas e refrigerante para o nosso motorista. – disse lançando um sorriso bonito sobre o rapaz.

   Flavius se sentiu novamente encantado por aquele garoto, como em seus tempos de adolescência em que passava horas sentado à janela....pelo simples prazer de vê-lo passar.  Como se o fato de saber de sua existência fosse o bastante para alegrar seu dia. Sorriu de volta, agora com certa cumplicidade. Sabia que Michel, dessa vez, também estava envolvido. Rolou um silêncio, talvez por uns dois segundos, em que seus olhares se encontraram e disseram coisas... O mundo abaixo dos seus pés flutuou para outra órbita e o cosmo deixou de existir. Poderia passar uma vida inteira perdido dentro daquele olhar. Talvez Michel fosse alguém por quem valesse a pena lutar, mudar... se arriscar!

   Natasha abraçou seu braço direito e acariciou seu peito:

   -Mas você continua sendo o nosso menino! – ela disse – Um pouco mais perdido que antes, mas ainda nosso! Estaremos aqui sempre que precisar!

   -Mesmo se eu ficar sem teto e sem emprego?

   Michel  olhou de relance, em seu olhar uma faísca de esperança: “Está falando em largar seu marido?” – viu seus olhos perguntarem, um sorriso lhe escapou da face:

   -Principalmente sobre essas circunstâncias.  – Disse Michel.

   -Não... não seria justo parasitar a vida de vocês dessa maneira!

   -Parasitar? – disse Natasha num tom forçado de indignação – Está chamando eu e o Michel de parasitas? A gente viveu e muito tempo à custa do Chico! E não tinha nada de parasitagem nisso! O nome disso é amizade! E é a coisa mais bonita que existe!

   -Bingo!!! – disse Rebeca batendo palmas.

   -Que parte da conversa eu perdi? – disse Pierre.

   -Flavius quer largar o marido. – disse Rebeca.

   -Eu não disse isso!

   -Não com a boca! Mas com os olhos!

   Michel ergueu a taça:

   -Um brinde a essa decisão!

   -Ainda não está decidido! – contestou o menino com um meio sorriso na boca.

   Mas foi inútil, o fato foi brindado e a noite seguiu com certa animação.

...

   -Boa noite queridos! – disse Rebeca.

   Natasha e Michel estavam um pouco bêbados e caminharam na frente em direção ao elevador. Pierre estava morgado no sofá. Eram três da manhã. Rebeca abraçou Flavius e lhe disse com um ar de bêbada:

   -Aaaaaa. Eu sinto um carinho tão especial por você. – colocou uma das mãos no coração – Gostaria muito que você se mudasse para essa cidade! Ia ser bom ter você por perto!

   -Eu também sinto um carinho especial por você. – disse com sinceridade – Ter te conhecido foi uma das coisas mais gratificantes de toda essa situação. Foi uma doce surpresa.

   Abraçaram-se de novo e se despediram.

...

   -Sabe. – disse Natasha quebrando o silêncio do elevador – Eu ainda me nego a acreditar que o Chico morreu.

   Os meninos encararam seus olhos marejados e sua feição de quem segura o choro sem saber como reagir. Flavius instantaneamente começou a chorar “No fundo eu me sinto aliviado que ele tenha mesmo morrido” - pensou. Michel os abraçou.

...

   -Vim fechar minha conta no hotel. – disse Flavius à recepcionista – Estou voltando para casa. – sorriu.

...

   -Como ela está? – disse Flavius entrando no apartamento com as malas.

   -Dormiu. – respondeu Michel quase cochichando.

   -Onde eu coloco as malas?

   -Deixa ai no canto mesmo, amanhã a gente arruma.

   Flavius obedeceu. Natasha estava deitada no sofá, nunca a tinha visto chorar daquela maneira.  Os meninos levaram horas para acalmá-la. “É bom que ela desabafe.” – pensou – “Natasha tem dificuldade para se soltar.” O Sol surgia no horizonte, com ele a sensação de que tudo poderia começar a ficar melhor:

   -Que bom que concordou em vir para cá. – disse Michel segurando sua nuca.

   -Mas onde eu vou dormir?

   -No meu quarto. – disse com um sorriso sacana.

...

Natasha abriu os olhos e disse:

—Vou fechar o restaurante.

Levantou-se devagar, pois sua cabeça doía e caminhou até a cozinha onde uma mesa bem servida de café da manhã estava posta. Sobre a mesa um bilhete:

“Tive que ir trabalhar. Espero que esteja melhor. Também tem sido difícil para mim. Aproveite o café da manhã!

Ps: Flavius está dormindo no quarto.”

—Michel seu fofo. – sorriu – Preparou tudo que eu gosto!

Sentou-se à mesa, o coração dolorido, “Era assim que o Chico queria que as coisas acontecessem. Flavius, eu  e Michel juntos, ele vivia comentando que era o que ele queria que acontecesse se acaso ele partisse.” Desanimou-se. “Preferia que ele não tivesse partido. Filho de uma puta! Ele não tinha esse direito!”

Levantou-se com um pão de queijo nas mãos e caminhou até a porta do quarto:

—Flavinho, posso te acordar?

—Na verdade já estou acordado, só estou com preguiça de me levantar.

—Ótimo. – disse entrando no quarto e se sentando na cama.

—Está melhor?

—Estou. – por isso não gostava de demonstrar suas tristezas, odiava responder a essas perguntas – Foi bom colocar pra fora.

—A gente precisa. É muito difícil passar por isso.

—E só a gente entende né? O quanto aquele filho da putinha tá fazendo falta!

—É... Quer dizer, não sei. Eu obviamente sinto a falta dele. É claro que eu gostei muito dele. Mas, hoje, olhando para trás, não sei. Era uma relação que me machucava demais. É difícil falar disso com vocês porque ele era um grande amigo de vocês. Mas, eu preciso dizer, Natasha, o Fip me quebrou no meio.

—Gato. Eu amava aquele cretininho mais que tudo nessa vida. Ele era uma pessoa incrível. Mas eu não vou fingir que não vi o que aconteceu entre vocês. Eu entendo e respeito o seu lugar. Não quero justificar o que o Chico fez ou fazia, mas, sei lá. Ele também era uma pessoa muito quebrada né?

—Isso não justifica tudo que ele fez.

—Não, claro que não. Mas também, sei lá. Não anula toda a pessoa legal que ele era.

—Não.

—Sabe – disse mudando repentinamente de assunto - Eu vou fechar o restaurante.

—Que?

—Não faz sentido ficar lá. Não quero estar longe de nenhum de vocês quando vocês morrerem.

—Mas Natasha! Aquele restaurante é o seu sonho!

—Sonho.... sonho... de que vale aquele tanto de panela, aquele cheiro de comida, todo aquele stress. É bom fazer o que eu gosto, é bom ser dona de alguma coisa. Mas desde que o Chico morreu que eu tenho pensado nisso. Nada disso tem valor sem as pessoas que a gente gosta perto.

—É... acho que você tem razão.

—Você vai ter mesmo coragem de voltar pra Argentina?

—Eu não sei. Eu amo aquele lugar! Amo! Eu me sinto tão vivo lá! Tão... capaz de tudo! Mas esses dias que estamos juntos têm balançado as minhas certezas.

—É o Michel, né?

—Também.

—E o Gabriel? Como vai ficar isso tudo?

—Não quero pensar nisso agora. Não hoje.

—Eu entendo.

—Natasha...

—Diga.

—Eu ainda quero dizer algumas coisas. Eu sei que pra você tudo isso foi muito diferente do que foi pra mim. O tempo que passamos juntos em Alvinópolis, depois o tempo em que moramos todos aqui na capital... Sei lá, pra você foi tudo mais tranquilo, eu acho. Pra mim tudo isso machucou bastante! Eu meio que fui pra Argentina tentando apagar essas lembranças...

—Claro, eu entendo. Eu era só amiga de vocês. Pra mim foi a melhor fase da minha vida! Mas você teve lá toda aquela complicação com o Chico e tal. Essas dores de amor são difíceis de curar. Pra ser sincera eu fique bastante surpresa por você ter aparecido aqui. Pensei que não viesse.

—Pensei muito em não vir.

—E o que te fez mudar de ideia?

—Eu não queria passar o resto da vida fugindo disso.

—É corajoso da sua parte.

—Acho que eu não tinha escolha. Afinal eu não posso fugir do que vivi.

—Eu acho também. Acho também que não temos muito do que se arrepender. Bem ou mal, com sofrimento ou não,  a gente não passou em branco.

—É verdade.

—Não se culpe pelo que você sofreu, Flavinho. Só as pessoas que sentem grandes alegrias tem a capacidade de sofrer demais. Eu nunca acreditei naqueles que se gabam por ser apáticos, por não se abalarem com as coisas. Quem não sofre também não ama, não ri. Nós sofremos muito porque gozamos muito da vida e no fim das contas acho isso melhor que viver uma vida em segurança.

—Sabe o que eu acho?

—O que?

—Que devíamos você, eu, Michel, Pierre e Rebeca, terminar essas entrevistas na mansão em Alvinópolis!

—Você acha? Mas Michel tem que trabalhar!

—Ah! Qual é! Eu e você estamos há quanto tempo longe de nossas casas? Ele pode faltar no trabalho uma semana! Até porque a situação financeira dele já não está tão terrível, com tudo que herdamos do Fip.

—Será que eles vão topar? – disse com os olhos quase a brilhar.

—E por que não topariam?

—Nossa! Eu queria ver aquela casa de novo! Será que ela ainda existe? Ouvi dizer que tinha sido demolida!

—É claro que ela existe! Eu a herdei.

—Talvez fosse legal para Pierre e Rebeca passarem um tempo lá! Para entenderem as histórias que contamos!

—Sim! Por isso pensei nessa ideia!

—Ah, eu super topo! Vai ser como nos velhos tempos!

—Só que sem o Fip.

Natasha murchou o sorriso: “Então será tudo diferente”... Abraçaram-se e tornaram a chorar. “Que força estranha é a morte... Que poder ela tem de nos arrancar uma parte da alma...”


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