Sangue escrita por Salomé Abdala


Capítulo 53
Capítulo 51 – Pequenos shows.




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/78767/chapter/53

—Flavinho, Michel e eu estamos indo! Diz pro Chico que adoramos tudo, depois conversamos! – disse Natasha – Você fica bem aqui sozinho?

—Sim, sim. Logo o Fip deve aparecer. – respondeu.

—Tchau Flavius. – disse Michel saindo de mãos dadas com a amiga.

Flavius despediu-se dos dois e continuou sentado no mesmo lugar. Chegou a procurar com os olhos institivamente por Felipe a fim de se sentir mais seguro, mas, como esperado, não encontrou nada. Deu de ombros, julgou que o melhor a fazer era prestar atenção ao que acontecia no palco. Talvez assim tempo e a ansiedade terminassem mais rápido.

Difícil controlar a ânsia de estar com Fip nessa hora. Na ultima vez que se viram o menino era todo insegurança, agora que a apresentação foi um sucesso como estaria? Teria ele considerado a apresentação um sucesso? Para Flavius com certeza havia sido! Mas, como Fip gostava de frisar, ele não entendia nada do assunto... mas pouco importa. Gostaria de lhe dar um abraço de parabéns, ver seus olhos piscando, pedindo uma opinião. Queria relatar a ele a empolgação pescada nos olhos de Natasha, suas impressões sobre tudo! Sentia um formigamento no estômago... como se encontrariam? Não tinham combinado esse detalhe...

Pensar nisso aumentava sua insegurança. Sentia algo entalado na garganta, o tempo a se arrastar. Cada coreografia uma eternidade entediante... um abismo que o separava do seu menino. Talvez fosse melhor assim. Sentir-se ansioso dessa maneira às vezes podia ser bom!

Quando a apresentação terminou havia pouca gente na plateia. Quase metade do que tinha no começo. Nenhum sinal de Felipe. Melhor assim. Era esse um momento dele e de Fip, não queria ninguém entre eles! Talvez saíssem para comemorar! Os dois, na capital! Sempre quis sair para se divertir nessa cidade! Sempre vinha com sua tia e isso, obviamente, impedia-o de conhecer o que de melhor a cidade tinha a oferecer. Mas hoje não! Hoje nada o impediria de ser feliz!

...

—Você foi incrível! – disse Fip a Manuel quando ele saiu do palco.

—Obrigado. – disse o rapaz – O ruim de ser o último é que não sobra quase ninguém na plateia.

—Idiotas. Não sabem o que perderam. Hey, vamos sair para comemorar a noite! Não quer vir com a gente?

—Para onde vão?

—Não sei. Vamos começar em qualquer bar ou pub desses que tem aqui perto e depois vamos para a casa do Jonas, acho.

—Nãããã obrigado.

—Você quem sabe. – disse Fip se insinuando – Pode perder grandes oportunidades essa noite.

—Acho que posso conviver com isso.

—Idiota. – disse com um sorriso.

Manuel respondeu com um sorriso e se dirigiu ao camarim:

—Vish que fora, hein? – disse Andressa pulando nos seus ombros.

—Deixe estar. Esse aí um dia vai ser meu. Ele vai comer aqui, na minha mão.

—Boa sorte. Então? Vamos beber?

—Vamos! Vamos!  - disse empolgado – Hoje eu quero me acabar!

—Opa! Então vamos logo que a galera já está toda lá fora!

Saíram do teatro pela porta dos fundos e ali ficaram conversando enquanto fulano ou beltrano terminavam de arrumar isso ou aquilo. Qualquer coisa sem importância. Reunir todos os amigos para uma noitada era sempre uma coisa demorada:

—Quem está faltando agora? – disse Jonas olhando para o relógio.

—A Marta foi buscar dinheiro no caixa eletrônico.

—Vamos rápido! Se demorarmos não conseguimos lugar no Porão.

—O Porão ainda existe? – perguntou Fip- Céus eu me lembro de quando entravamos lá com identidades falsas!

—Hoje ninguém mais precisa delas!

—E como anda o movimento por lá?

—A mesma coisa de sempre.

—Gente...  o Porão. – disse Fip com um brilho saudoso nos olhos – Olha lá, a Marta está vindo. Quem falta agora?

—O Gabriel.

—A não! Onde ele está?

—Deve estar lá na frente se despedindo dos pais dele.

—Eu vou lá busca-lo. – disse Fip.

—Eu vou contigo. – disse Andressa.

Caminharam abraçados até a saída da frente onde havia ainda um pequeno aglomerado de pessoas que conversavam animadamente sobre as impressões da noite. Flavius estava lá, olhando constantemente para os lados em busca de qualquer sinal de Fip. Ao vê-lo fez um aceno e correu em sua direção:

—Fip! Fip! Aqui!

—Quem é esse? – disse Andressa.

—É o Flavius! Meu namorado.

—Nossa! Você não disse que seu namorado estava aqui.

—Eu tinha me esquecido.

Ambos riram. Flavius chegou a tempo de pescar o último comentário, mas o ignorou parcialmente, deixou-se levar pela empolgação do momento:

—Fip parabéns! – disse abraçando o rapaz – Você foi incrível! Natasha e Michel não puderam ficar até o final, mas eles também gostaram muito!

—Legal.

—Nossa! Ainda bem que te achei! Eu estava meio perdido aqui fora! É tanta gente! Pensei que talvez não conseguisse te achar.

Andressa soltou um sorriso maldoso. Sentia algo de patético no rapaz: “O que o Fip está fazendo com esse palerma?” – pensou. E é certo que seu olhar deixavam transparentes seus pensamentos, de modo a fazer Flavius murchar seu sorriso e conter a empolgação. De modo a fazer com que Fip se envergonhasse dele:

—Eu estava no camarim.

—Imaginei. – disse Flavius sentindo na frieza de Fip um banho de água fria assassinando sua empolgação.

—Prazer, Andressa. – disse a menina estendendo a mão.

—Flavius. – respondeu já meio encabulado – Você também se apresentou hoje? – disse num esforço para parecer simpático.

—Sim. Eu estava no grupo que fez uma releitura conceitual de Graham.

Flavius olhou para ela sem saber como reagir. Obviamente não sabia do que ela estava falando e sabia também que ela o fizera de propósito, para humilhá-lo. Conhecia essa situação, vivia-a constantemente... podia não entender de dança, mas conhecia a peçonha humana como ninguém:

—O que você achou dela no palco? – disse Fip trocando olhares de uma cumplicidade cruel com a amiga.

—Tão igual quanto às outras. Não saberia diferenciar vocês se ficassem todas enfileiradas na minha frente.

—Uau. Ele me chamou de medíocre na minha cara ou foi impressão minha? – ela disse ao Fip como se Flavius não estivesse ali.

—Ele é mesmo de fazer esse tipo de coisa, não repare.

—Ele me lembra o... como era mesmo o nome daquele menino? Aquele que dançava mal pra caramba! Um todo esquisito!

—O Carlos?

—Siiiim!

Ambos gargalharam:

—Não! Coitado. – disse Fip – Que maldade a sua! O Carlos era um demente! Flavius não está nem perto disso!

—Se você está dizendo. Aquela ali não é a Wanessa? Você viu como ela foi péssima hoje?

—Só hoje?

Riram:

—Eu vou lá falar um oi.

E saiu. Flavius e Fip ficaram em silêncio por alguns segundos:

—O Felipe não veio?

—Não sei.

—Que foi? Por que está com essa cara?

—Nada.

—Fala!

—Não.

—Anda logo, Flavius! Você sabe que vai acabar falando então para de fazer ceninha! O que aconteceu?

—Não aconteceu nada, eu já disse!

—Isso não vai dar certo se você não aprender a falar o que sente!

—O que eu sinto não cabe no que digo, nem no meu olhar. Mal cabe em um grito. Você jamais entenderia. O que eu sinto explode por dentro e assassina minha vontade de viver.

—Isso é ridículo! Você tem que aprender a explodir pra fora!

—Minha explosão não cabe aqui fora.

—Olha, tá bom. Hoje não, ok? Hoje eu não estou afim de transformar minha noite num dramalhão mexicano, pode ser?

Flavius não respondeu, ficou a encarar Fip:

—Escuta, nós vamos pra uma festinha na casa de um amigo. Pra comemorar a noite! Você quer vir com a gente?

—Eu não sei.

—Ok, então fica aí reclamando da vida. Eu vou indo porque o pessoal tá me esperando.

—Espera Fip! Vai me deixar assim? Sozinho? Eu nem sei voltar pra casa do Felipe!

—Ah, Flavius, vai me dizer que você não tem capacidade de pegar um táxi?

—Eu não tenho dinheiro!

—Toma! – disse lançando um maço de notas na sua mão – Isso deve dar. Boa noite!

Saiu:

—Eu nem sei o endereço! – disse, mas Fip não pareceu ter ouvido. Sentiu vontade de gritar. Tomar um táxi até a rodoviária e voltar para Alvinópolis! Mas não podia. Tinham as malas na casa do Felipe...  e fazer uma coisa dessas significaria uma ruptura... um fim... com certeza Fip não deixaria passar uma “ofensa” dessas... mas a pergunta era: o quanto isso realmente importava? O quanto Flavius deixaria passar ESSA ofensa? Por quanto tempo suportaria esse tipo de situação? Por que não tinha a mesma disposição para chutar o balde que Fip?

—Então você é o namorado do Fip?

Flavius se virou para encarar quem falava com ele:

—Não tenho certeza disso. – disse num tom ríspido – Por que?

—Desculpe a intromissão. É que eu ouvi meio sem querer o final da conversa e pensei em te oferecer uma carona. Pelo visto você não conhece bem a cidade e o ponto de táxi está cheio, pode demorar até você conseguir pegar um.

   -...

   -Ah, desculpe a grosseria. Meu nome é Manuel. – disse estendendo a mão e oferecendo um sorriso sincero – Prazer.

   -Meu nome é Flavius. Olha, desculpe, eu não estou com muita disposição para ser simpático agora. Não quero descontar em você uma situação que nem é culpa sua.

   -Que isso! Não precisa se desculpar. Façamos o seguinte. Deixe que eu te leve, no caminho a gente come alguma coisa, conversa um pouco. Talvez seja bom espairecer! Olha, eu conheço uma pizzaria aqui perto que é capaz de tirar o mau humor de qualquer um.

   -Obrigado, mas...

   -Bem, eu não quero forçar a barra. Se achar que prefere ficar sozinho fique a vontade. Desculpe por insistir.

   Flavius sentiu algo de sincero nas intensões do rapaz e pensou que talvez não fizesse mal aceitar a cortesia:

   -Tudo bem, eu aceito o convite. – esboçou um sorriso: “Estou sem dinheiro para comer fora, mas já que não terei que tomar o táxi posso usar o que o Fip me deu. Pensava em devolver o dinheiro, mas que se dane!” – Você foi o último a se apresentar, não foi?

   -Sim! Você assistiu?

   -Assisti!

   -E eu devo perguntar o que achou? – disse se dirigindo até o carro.

   -Foi uma das poucas apresentações que eu entendi, pra ser sincero.

                          Manuel deixou escapar uma gargalhada. Mas nada humilhante, pejorativo, tinha na sua risada algo de cumplicidade:

                          -Eu entendo. Tem muita gente que pensa que dançar é rodopiar, saltar e subir as pernas. Com isso eles se esquecem que a verdadeira dança está no sentimento! Na emoção! Por isso muitas apresentações não passam de um festim técnico que só vale para quem é do meio.

                          -Talvez seja isso. – disse entrando no carro. Talvez não devesse agir tão imprudentemente entrando no carro de um completo desconhecido. Sua tia teria um infarto só de imaginar essa situação. Mas o que poderia fazer a vida valer a pena se não esses momentos de incoerência lógica?

                          -Olha. Eu vou ser bem sincero contigo! Depois de tudo que eu já vi e vivi no meio da dança, eu te considero um herói por ter assistido a noite de hoje do inicio ao fim! Francisco tinha que te dar um prêmio...

                          -Posso te pedir um favor?

                          -Claro.

                          -Não quero lembrar que o Fip existe nas próximas horas. E falar nele não ajudaria muito.

                          -Tudo bem, desculpe. A discussão foi feia, pelo visto.

                          -Não é questão disso. A questão é a repetição desse padrão de comportamento. Fip é muito egoísta! Ele é incapaz de enxergar um palmo à frente do seu nariz! Sei lá! Ele criou essa imagem de que eu sou dramático, que eu me faço de vítima e ele usa tudo que pode pra jogar isso contra mim! É desgastante! Porque ele criou uma barreira contra mim, entende? Tipo ele tem uma imagem pronta de mim e tudo que eu faço só serve pra ele jogar na minha cara que estava certo! Eu acabo ficando sem ação! Por que às vezes eu fico me perguntando se ele não tem razão, entende? Ele sacaneia comigo e eu ainda saio achando que quem estava errado era eu! Sei lá, eu acho que ele não foi muito delicado comigo. Eu vim de Alvinópolis até aqui só pra ver ele dançar! Porra, eu passei o pão que o diabo amassou esse último mês por conta dessa apresentação! Aguentando todos os pitís dele! Assistindo todos os ensaios! Ouvindo ele reclamar que eu não entendo de dança e mimimi! Depois peguei com a minha tia um dinheiro que ela nem podia me dar pra vir até aqui! Pra estar com ele! E ele não demonstra a mínima consideração com isso! Não sei, eu posso estar sendo dramático idiota de ficar chateado com uma coisa dessas! Afinal são os amigos que ele não vê faz tempo e tudo mais... ele está empolgado e tal... mas eu queria um pouco mais de... sensibilidade eu acho. Ah, enfim. Eu disse que não queria falar sobre isso e acabei despejando isso tudo. Desculpe.

                          -Não. Tudo bem! Você tem todo direito de estar chateado, eu acho. Falar é bom.

                          -Eu não gosto muito de falar. – mas por alguma razão se sentia a vontade para fazê-lo agora.

                          -Sabe, quando eu tinha mais ou menos a sua idade eu tive um namorado muito parecido com o Fip. Eu entendo bem o que você está falando. E vou te falar uma coisa que talvez não sirva muito de consolo, mas eu demorei muitos anos pra me livrar dele. Tipo, desse sentimento que você está falando.

                          -Eu imagino.

                          -E sabe quando eu consegui me livrar disso? Olha! Sente esse cheiro! – disse manobrando o carro na frente da pizzaria – Essa pizzaria é divina, você vai me agradecer pelo resto da vida por ter  trago você aqui. Então, como eu estava dizendo, sabe quando eu consegui me livrar disso? Quando eu me toquei que eu não merecia passar por esse tipo de coisa. Quer ajuda pra fechar a porta? Ela às vezes emperra. Sabe a gente reclama das pessoas nos tratarem assim, mas no fundo é a gente que deixa. Mas enfim, você não quer falar sobre isso, vamos mudar de assunto.

                          -Obrigado. Eu acho que você tem razão. Eu não estou com cabeça pra pensar nisso agora, mas vou guardar o que você disse.

                          -Sei que vai. –sorriu – Você prefere sentar aqui fora ou lá dentro?

                          -Aqui fora.

                          -Imaginei.

...

Eu sempre fui uma pessoa sozinha, triste, amargurada demais para a minha idade. E tinha me acostumado bem à ideia de ser alguém assim. Lembro-me de fazer o caminho de volta da escola todos os dias, com aquela sensação dolorida no peito. O sentimento de não ter ninguém, de enfrentar mais um dia.., passar o tempo isolado no meu quarto, com as minhas musicas, minhas coisas. Lembro de analisar a letra das musicas e, na minha imaginação, dividir minhas impressões com amigos inexistentes e da sensação angustiante de me empolgar com a descoberta de um artista novo sem ter com quem comentar a novidade. A sensação entalada na garganta de ter de engolir o que tem a dizer por não ter ninguém por perto capaz de tentar entender.

Sentia como se falasse um idioma próprio, incapaz de ser ouvido por outras pessoas. Nunca entendi o que os outros diziam o que faziam e por que agiam de maneira tão diferente da minha. Por que davam tanto valor a coisas com as quais nunca me importei? Por que perdiam seu tempo vivendo naquele mundo que eu não entendia, não conseguia participar! Ser o mais bonito, o mais forte, estar com os cabelos arrumados, a roupa sem defeitos... tudo isso parecia tão ilusório... tão desnecessário. Era como se eu fosse um alienígena.

E claro, os outros sentiam o mesmo estranhamento. Olhavam-me como seu fosse contagioso, asqueroso. Torciam os narizes, davam risadinhas, não respondiam quando eu lhes dirigia a palavra. Uma pessoa vazia, um boneco oco, incapaz de ser alguém. Com isso a dor se tornou parte de mim, um pedaço de mim com o qual me acostumei a conviver. Pois eu sabia, que mesmo que ninguém conseguisse perceber o meu valor.... ainda que nenhum ser humano se dignasse a me dirigir a palavra... que ninguém acreditasse em mim, eu acreditaria! Tinha aprendido a fazer isso! A conviver somente comigo mesmo! E a gostar disso!

Mas agora me impuseram a convivência, o amor, o relacionamento. Eu demorei a pegar o jeito da coisa, mas me esforcei, pois todos pareciam tão felizes compartilhando suas vidas que achei que era preciso experimentar. Que bobagem! Na ânsia de ganhar algum brilho para os meus dias e um motivo para o meu sorriso... na busca por um formigamento no estomago e um suspiro na alma acabei por perder o meu amor próprio e desaprendi a acreditar no meu próprio valor.

Hoje estou aqui, atirado ao nada me perguntando por que ele não me ama o suficiente. O que tenho de errado? Por que não sou diferente? Olho para mim e odeio quem sou, daria tudo para ser outro, ser diferente. Porque outro agradaria mais às pessoas, outro seria mais fácil de amar... sinto saudades do tempo em que meu próprio amor bastava. Tempo sem volta em que eu não precisava de ninguém... hoje preciso deles, mas nenhum deles precisa de mim.

Manuel foi muito cortês. Exigiu o direito de pagar a conta e ficou quase meia hora rondando pela cidade até eu me lembrar direito onde ficava o apartamento do Felipe. Foi como um suspiro de alívio nessa noite macabra. Não tivesse ele aparecido não sei o que teria acontecido. Nessas horas ouso acreditar na existência de deus. Ouso concordar com o fato de que ele talvez me ame...

Era quase meia noite quando cheguei. Felipe, para minha surpresa, estava acordado:

—Flavius? – disse num susto quando entrei- Você veio sozinho?

—Fip me deixou para trás. Saiu com os amigos.

—Como sempre.

Desde quando sou um mero “como sempre” na vida do Fip? Em que momento ele passou a me tratar do mesmo modo que sempre tratou qualquer um? Julgava que o sentimento que nutríamos um pelo outro era único... especial:

—Faz tempo que ele não vê os amigos, é natural que queira se divertir. – disse mais para não assumir a derrota do meu relacionamento.

—Ele te trouxe até aqui pelo menos? Ou se contentou em te mandar de táxi?

Talvez Felipe tivesse razão. Eu tinha me tornado mesmo um “como sempre”:

—Vim de táxi.

—Típico. E você não se incomoda? Em não ter ido? Em imaginar que ele possa estar ficando com outros caras agora?

Na verdade eu não tinha imaginado isso até esse momento:

—É um direito dele, não?

Na verdade não! Sentia todo meu corpo ser possuído por uma descarga elétrica:

—Jamais conseguiria ser igual você, Flavius.

—Na verdade eu também não.

Estava estilhaçado. De repente imaginar Fip a flertar e se engraçar com todos aqueles meninos idiotas me fez sentir nojo. Não propriamente pelo fato de ele estar ficando com outros caras. Aparentemente isso me incomodava em um segundo ou terceiro plano. Era a qualidade moral desses caras que me incomodava. Imaginar que Fip pudesse se sentir atraído por esse tipo de gente e, de certo modo, que se identificasse com eles! Isso me fazia pensar que provavelmente Fip não fosse o cara que eu conhecia. Talvez eu não tenha me apaixonado pela sua verdadeira face, mas sim por uma faceta de sua personalidade que só existe em Alvinópolis, longe de toda essa babaquice que transborda por aqui.

Talvez se eu e Fip tivéssemos nos conhecido aqui ele não teria sido diferente desses idiotas que sempre me trataram como lixo. Longe de Alvinopolis, onde só existimos nos dois, ele não é diferente da maioria das pessoas e chega a se envergonhar de mim! Levantar essa possibilidade me enfraqueceu a alma. Fez-me querer correr para casa, para o meu quarto, minha tia! O velho sentimento de querer me isolar... me perder... afogar-me ...

—Você está bem? – disse Felipe.

—Claro que não.

Ele passou o braço pelo meu ombro. Olhava para mim com um olhar complacente. Eu conhecia suas reais intenções. Ele me queria, faz tempo que sei disso. Tenho fingido não perceber para não ter que tomar uma posição, mas talvez agora eu quisesse dar uma lição no Fip:

—Você não merece isso! Não merece ser tratado dessa maneira! Francis precisa aprender a te valorizar! Precisa conhecer a maravilha que você é!

Suas palavras batiam e voltavam sem causar nenhum efeito. Não acreditava 1% na veracidade delas. Mas hoje eu queria me dar ao luxo de me iludir. Gostaria de me deixar levar por essa ilusão de que alguém sabia reconhecer meu valor. Felipe era parecido comigo nesse aspecto, estava também sempre rebaixado ao segundo plano da vida. Talvez nisso houvesse alguma sinceridade do seu sentimento... talvez ele levasse essa identificação mais a sério que eu.... pode ser que ele me ame de verdade... como saber? “Você só vai se livrar disso quando se tocar que não merece ser tratado dessa maneira” – Manuel me disse – “Quando se der o direito de ser amado mais do que se dá a obrigação de amar.”... talvez ele esteja certo... talvez valha a pena tentar...

—O que eu mereço então?

—Alguém que te ame, que te dê valor. – disse se aproximando para um beijo.

Não avancei em sua direção. Mas também não tentei recuar. Ele veio até mim, alcançou-me mesmo sem eu tentar lhe facilitar o caminho... de certo modo, lutou por mim. Beijamo-nos. "Hoje nada vai me impedir de ser feliz" - pensei mais cedo. Manuel... Felipe... é engraçado como a vida pode nos revelar diferentes formar de realizar o que pensamos...


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Sangue" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.