Sangue escrita por Salomé Abdala


Capítulo 50
Capítulo 48 – as pequenas coisas da capital.




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   Eram nove da manhã quando a campainha tocou. Eu estava dormindo na sala porque tinha pegado essa mania. Desde que Michel foi embora eu só fico no vídeo game e na tv. Acordei assustada. O Flavius nunca chegava tão cedo! Levantei confusa e corri até a porta morrendo de raiva, odeio ser acordada tão de manhã:

—Porra Flavius, por que você não faz logo uma cópia da chave pra você? – eu disse enquanto abria a porta e encontrava, pra minha surpresa, o Artur, se cagando de rir de mim. – Ah é você! – eu disse tentando disfarçar a vergonha – Entra.

Ele entrou ainda meio risonho, eu estava na minha melhor forma de baranga, com o cabelo desgrenhado, a pior roupa que eu tinha e cheia de olheiras. Daquele jeito que nem tem como disfarçar, queria sair correndo dali, mas disfarcei bonita e fingi que estava totalmente à vontade:

—Desculpa, eu pensei que fosse o Flavius. Ele vem aqui todo dia e...

—Desculpa por ontem. – ele disse – Sai correndo e nem me despedi direito.

—Ah de boa.

—Desculpa vir tão cedo. É que eu mal consegui dormir essa noite.

—Eu dormi que nem uma pedra.

—Dá pra ver pela sua cara amassada.

Eu podia ter ficado sem essa, mas tudo bem. Ele continuou:

—Eu vim porque... porque precisava falar com você.

—Ué, parece que você já está falando comigo.

—Natasha, eu estou falando sério. Eu preciso falar com você.

—Eu também. Ou é mentira que você está falando comigo?

—Não. Eu estou falando contigo.

—Então, claramente estamos falando um com o outro.

—Sim.

—Então parece que o seu desejo de falar comigo já está sendo realizado.

—Sim, nós estamos conversando.

—Não parece incrível? Você entrou por essa porta dizendo que precisava falar comigo, mas, na verdade, você já estava falando comio, então você já estava fazendo o que entrou anunciando que precisava fazer!

—Sim. E agora você está falando sobre estarmos falando um com o outro e estamos conversando, mas, apesar de já estar falando com você, como você brilhantemente constatou, eu não estou falando o que eu vim para dizer, que era muito importante, por sinal.

—Ok, então diga.

—Eu vou dizer.

—Então diz.

—Estou dizendo.

—Não, você está dizendo que vai dizer, mas não disse.

—Ok, agora é sério, eu preciso te dizer uma coisa.

—Ok, agora é sério, me diga o que você veio dizer. Mas, vamos pro jardim, pra não acordar ninguém.

Peguei ele pelo braço e fui puxando até lá fora. O menino estava visivelmente transtornado, nervoso. Eu, talvez pelo efeito do sono, parecia invariavelmente tranquila:

—Pode falar.

—Calma. Nossa.... poxa, esse não é o tipo de coisa que se fala assim.

—Você está começando a me deixar nervosa. Desembucha logo!

—Ok, calma, calma. – Ele respirou fundo, ficava olhando de um lado para o outro, depois olhou pra mim – Poxa, você não torna as coisas mais fáceis... sabe...

—Quer que eu vire de costas? – disse já me virando.

—Não! Digo, sei lá. É só que... ah nem sei porque eu to aqui, mas é que... eu terminei meu namoro, faz três semanas. Queria que você soubesse, sei lá...

Qualquer vestígio de sono remanescente na minha cabeça desapareceu na hora. Senti meu coração palpitar como se eu tivesse cinco anos e me colocassem na frente de uma piscina de sorvete. De repente tudo parecia diferente. O dia tava mais bonito, as coisas mais animadas. Foi como se eu pudesse voltar a ter esperanças! Se ele veio aqui me contar é porque alguma coisa sente por mim! Talvez agora pudéssemos ter alguma coisa juntos! Virei de frente pra ele e disse:

—Poxa que chato.

—Não... não tava dando certo... digo... não depois de ter conhecido você.

—O que eu tenho a ver com isso?

—Porque eu to gostando de você sua panaca! Eu não tinha como continuar com ela pensando em você o tempo todo! Não era justo nem comigo, nem contigo e nem com ela... Eu sei que você nem deve lembrar que eu existo, que eu não devo significar muita coisa pra você mas... sei lá, o que eu sinto por você é diferente! É como se nos conhecêssemos há anos! Sei lá... desculpe... eu estou confundindo as coisas...

Achei fofo perceber que ele também estava totalmente inseguro. Às vezes a gente acha que isso só acontece na nossa vida:

—Larga de ser besta, menino. É claro que eu penso em você. Eu gosto de você também... tipo desse jeito ai que você falou... me sinto a vontade do seu lado e tal... Mas e aí? O que vai ser agora? Você continua morando longe... sei lá... sua namorada não era a única coisa que impedia a gente de... sei lá.. tentar qualquer coisa...

É engraçado como a gente fica com medo de demonstrar qualquer interesse de compromisso nessas horas:

—Você pode mudar pra capital comigo! Tem espaço no meu apartamento! Volta comigo pra casa!

—Você tá louco menino? A gente mal se conhece! Eu não ia ser doida de.... – ai eu lembrei que quando vim morar com o Chico mal sabia o nome dele - ... é... talvez eu seja sim... mas calma... Isso não se decide assim.

—Isso quer dizer que você está disposta a pelo menos pensar no assunto?

—Pensar... pensar eu vou...

Eu nem terminei a frase e ele já tinha se atracado em mim. Eu me derreti toda, fazia tempo que estava louca pra sentir o cheiro dele, os braços dele! Ai céus, como aquele menino mexia com o meu fogo! De repente nada mais importava! Em poucos segundos já estávamos no quarto... sem roupa... incendiando a casa com a nossa vontade de ficar juntos!

...

Era de noite  Fip, Felipe e eu estávamos assistindo filme no sofá.  Tínhamos passado um dia preguiçoso, gostoso. Sem stress do Fip por causa da apresentação (na verdade ele passou o dia todo sem tocar no assunto), sem briguinhas bobas. Só assistindo filmes e fazendo piadas idiotas, como nos bons tempos! Não é que eu desaprovasse o fato do Fip dançar. Ao contrário... eu gostava da ideia de ele retomar a carreira. Mas ele ficava tão chato... virava um cara diferente daquele por quem me apaixonei...

—Falei com o Michel hoje. – disse Felipe do nada. – Ele falou que a casa já está em ordem pra nos receber.

—E ele ainda está namorando aquele carinha? – disse o Fip enquanto pegava mais pipoca.

 Meu corpo pareceu perder a gravidade. Senti como se todos meus órgãos dessem uma pequena cambalhota:

—Na.. morando? – eu perguntei tentando disfarçar o nervosismo.

—Parece que ele esta todo encantadinho com um menino lá da capital. – ele disse sem prestar muita atenção.

—Quem é esse menino? – perguntei pro Felipe – Por que eu não fiquei sabendo disso?

—É um ator que ele conheceu numa festa, sei lá. Mas não é bem um namoro. Eles ainda não têm nada firme, eu acho.

—AINDA. – disse o Fip num tom que me pareceu um tanto sádico. Pareceu-me que ele queria esfregar esse possível namoro na minha cara.

—Que bom. – eu disse pra encerrar o assunto – O Michel precisa mesmo de alguém.

Cruzei os braços e tentei ao máximo disfarçar meu descontentamento. Michel namorando, eu sabia que isso ora ou outra aconteceria mas... ainda assim... pensar no assunto me fazia querer morrer. Julgava que esse já era um assunto superado, mas pelo visto estive enganado. Senti como se estivesse prestes a adoecer, estava desconfortável, como se a raiva quisesse explodir:

—Adoro essa parte do filme! – disse o Fip comendo pipocas.

De repente tudo o que ele fazia me irritava, como se  estivesse tirando sarro com a minha cara. Evidente que ele não estava, eu sabia disso, mas era impossível evitar a sensação. Olhava para sua cara, seu meio sorriso, até o brilho nos seus olhos. Tudo parecia me desafiar! Era como se seu espírito dissesse: Vê? Seu Michel está com outro... ele nunca foi seu!

E eu não duvidaria que  Fip realmente estivesse se sentindo ao menos aliviado com o fato de isso estar a acontecer. E também não tirava sua razão... mas ainda assim a notícia me chocava e o fato de ter sido ele, Fip, quem a anunciou, fazia-me sentir por ele um ódio descontente e injusto que eu não podia evitar. Por sorte as atenções estavam todas voltadas ao filme e eu não tive que me esforçar muito para disfarçar meu estado.

De resto nem li as legendas do filme. O tal menino não me saia da cabeça: como ele seria? Muito mais bonito que eu? Que tipo de pessoa ele é? O que faz? Do que gosta? Por qual tipo de pessoa Michel se apaixonaria? Foi quando percebi... conhecia muito pouco de Michel. Era incapaz de imaginar por qual tipo de pessoa ele se encantaria... seus sentimentos eram pra mim um mistério... Quem é o Michel? De que tipo de pessoa ele gosta? Com o que sonha? Que tipo de pessoa ELE é? Essa dúvida me perturbou... continuaria apaixonado por ele mesmo que tivesse essas respostas? Ou seria o Michel que eu sempre amei uma personagem criada na minha cabeça? E Fip? Continuaria apaixonado por ele por mais quanto tempo...?

Natasha passou pela sala com o menino que ela estava ficando. Eu nem sabia que os dois estavam aqui. Foram para a cozinha. Fip olhou para ela e soltou um sorriso bobo, os dois trocaram aquele olhar entre amigos que não quer dizer nada, mas diz tudo que ambos precisam saber. Aquilo me tocou de alguma forma, senti uma compaixão eterna pelo Fip. Segurei sua mão e me aproximei do seu corpo. Senti-me acolhido ao seu lado. Inexplicável assim... por alguma razão aquela singela troca de olhares, a fração de felicidade sentida por ele ao ver a amiga contente, fez-me amá-lo como nunca o havia amado antes. Fez-me amar um menino que se importava com seus amigos...

...

“Flavius e Felipe caíram no sono na metade do quarto filme. Estávamos assistindo “All about Eve” ou “A malvada” em português... nunca gostei do título que o filme ganhou no Brasil, fazia-o parecer idiota... redutivo. Enfim, estava tomando um delicioso creme de chocolate feito pelo tal Artur quando me dei conta de que os meninos tinham dormido. Em outra situação teria me enfurecido com o fato, sempre me ofendi quando as pessoas dormiam na metade de filmes bons. Era como se estivessem desprezando meu gosto... isso não se faz!

Mas hoje não me dei esse direito. Tínhamos assistido quatro filmes consecutivos, alguns bem densos... já eram mais de duas da manhã... e esse filme, mesmo que bom, pode ser um tanto quanto... monótono. Achei natural que dormissem. Na verdade eu também não estava muito disposto a vê-lo até o fim. Sabia seus diálogos de cor. Estava ansioso para que o Artur fosse embora, para poder perguntar pra Natasha o que tinha acontecido. Por isso ele mal saiu pela porta e eu já corri até a cozinha para xeretar a situação:

—Pode me contar tudo!

Ela mordeu os lábios de leve (bom sinal) soltou um sorriso e disse:

—Ele terminou o namoro.

Reagimos os dois como duas garotinhas de treze anos trocando confidencias,  com direito a gritinho, pulinho e tudo mais:

—Disse que não conseguia parar de pensar em mim! Terminou o namoro por minha causa!!! Pelo menos foi o que ele disse!

—Poderosa você, hein?

—Ai, Chico, nem to acreditando! Que sensação estranha!

—Mas e agora? Como fica?

—Sei lá. Ele me chamou pra ir morar com ele, mas eu não sei.

—Claro que não! – Eu respondi por instinto – E eu?

—Você não me come, Chico.

—Mas... mas... ele que mude pra cá, ué!

—Ahahahahha, e fazer o que nessa cidade?

—Sei lá, mas pra lá você não vai!

—Calma, é só uma ideia.

—E uma ideia muito ruim!

—Tá com ciuminho, tá?

—Tô.

Cruzei os braços e lá fiquei. Nem queria ouvir mais nada! É lógico que a Natasha não ia. Não tinha nem o que discutir. Imagina só:

—E a apresentação? – ela disse – Tá preparado?

—Hoje eu não ensaiei nada. Mas não estava afim. Precisava descansar.

—Fez bem. E as coisas com o Flavius? Andam bem?

—Sim. – disse esticando o pescoço para olhá-lo no sofá.

Estavam deitados encostados um no outro, Felipe e ele, senti uma sensação funesta de que os dois formavam um belo casal. Meus dois meninos, pareciam combinar juntos. Não senti isso com ciúme... não naquele momento... foi uma espécie de... premonição... sei lá. De alguma forma encarei aquilo com uma naturalidade cortante. Felipe e Flavius, essa combinação me pareceu lógica:

—Estamos muito bem... – disse perdendo a convicção.

—Que bom. Já estava na hora de vocês se entenderem.

—E então?

—Então o que?

—Pode me contar todos os detalhes!

Ela riu. Iluminou todo seu rosto com aquele sorriso puro. De repente me senti um besta por não querer que ela fosse. Esse menino a fazia feliz era lógico! Feliz como eu jamais faria . Evidente que, se tudo desse certo, ela deveria ir. E eu? Eu também sentia há muito que meu tempo nessa cidade estava se esgotando... talvez fossemos juntos... talvez... Flavius me passou pela cabeça... e se ele não pudesse ir? Ainda tinha que terminar os estudos... será que isso me seguraria?”

...

   -É tão engraçado ler isso! – Disse Rebeca – Fico tão ansiosa para saber o que virá no futuro... como se eu não soubesse... Como se torcesse para que tudo acontecesse diferente.

Os meninos ficaram em silêncio. Flavius e Michel se entreolharam... onde estariam os resquícios do que acontecera na noite anterior? Tiveram uma noite juntos, mas hoje agiam como se nada tivesse acontecido. Por que? Por que ainda perdiam tempo negando o que sentiam? Do que tinham medo?

Natasha abaixou a cabeça... talvez concordasse com Rebeca. Ler o diário a fazia se lembrar de como se sentia na época, de quais eram seus sonhos, seus planos... Encarar agora o modo como a vida se concretizou parecia um tanto... cruel. Se ela soubesse... se naquele tempo pudesse imaginar que as coisas correriam assim, como teria reagido? As vezes se permitia sonhar, sonhar como nos seus tempos de adolescente, onde tudo podia ser possível...

Na maior parte do tempo tentava esquecer que Fip estava morto, não pensava no assunto. A morte faz o peso da realidade recair sobre nós. O inevitável... o irreversível... Para todo o resto o sonho dá jeito, arruma-se solução. Mas essa maldita não. Ela arrasta o sonho para um universo paralelo e se impõe sobre nós com fatídico peso incontestável... Se eles soubessem.... se tivessem consciência de que a morte tão precocemente os viria abraçar, teriam perdido tanto tempo com brigas inúteis? Teriam deixado de se encontrar naqueles dias de preguiça? Teriam colocado o trabalho, os namoros em primeiro plano? De certo que não... Talvez jamais tivessem se separado... A vida... talvez fosse bonito se ela pudesse ter um final diferente...

—Posso prosseguir? – disse Rebeca.

—Claro. – Respondeu Natasha como que acordando de um sonho.

—Uau, partimos para o dia da apresentação! Estava tão ansiosa por esse dia! – disse a menina.

—Eu não. – respondeu Flavius com um ar sinistro... – Eu não... – disse tentando afastar as memórias.


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