Sangue escrita por Salomé Abdala


Capítulo 47
Capítulo 45- Ameaças, dessabores e outras dores.




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Flavius saiu na frente. Estava visivelmente animado nessa noite. Vestia uma jaqueta jeans preta e um sorriso sincero:

—Estou pensando em colocar um brinco, o que acham?

Michel e Natasha se entreolharam:

—O que foi? Está com saudade da adolescência? – perguntou Natasha.

—Estou com saudade de ser eu.

—Então vá em frente! Fure a orelha! – disse Michel.

O menino riu. “Gabriel com certeza não gostará disso. Mas que se foda, eu também não gosto dele!” – deu de ombros:

—Então vamos comigo? Amanhã cedo, antes de voltarmos à entrevista.

—Vamos. – disse Michel – Tenho um amigo que trampa com isso, ele é ótimo.

—Então fechou.

—Eu não posso. Tenho um compromisso. – disse Natasha.

—Hmmm, e podemos saber o nome do seu compromisso?

—Parem com isso, meninos.  Não é ninguém que vocês conheçam.

—Sei...

—Não vai me dizer que você e o Artur andam se encontrando de novo...

—Não, não... não é o Artur. É um cara aí, eu conheci esses dias, ele mora perto do hotel onde eu  tava ficando antes de ir pro seu ape. – disse para Michel – Ele me chamou para almoçar.

—Hmmm. E ele é bonito?

—É simpático.

—Que bom que estamos nos arranjando. – disse Flavius – Parece que finalmente voltaremos a viver.

Michel passou o braço por cima dos ombros do rapaz e disse enquanto caminhavam:

—Posso saber o motivo de tanta alegria, rapazinho?

—Eu não sei. De repente me senti eufórico.

—Isso é fogo na periquita. – disse Natasha – Mas bem, se vocês não se incomodam, eu vou indo para casa. Também tenho um jantar hoje.

—Nossa! Mas você tá que tá, hein?

—To mesmo. Ahahahahha. To perigosa. Tchau meninos. Beijos. – disse correndo em direção ao táxi.

Os dois ficaram a observá-la sumir:

—E então? O que vamos fazer hoje? – perguntou Flavius.

—Está animado para fazer alguma coisa?

—Claro! Fazia tanto tempo que eu não me sentia assim, solto na noite!

—Estranho, dizem que a noite de Buenos Aires é incrível!

—E é, mas Gabriel não gosta. Ficamos o tempo todo em casa.

—Credo. E ele não deixa você sair sem ele?

—Não é questão de deixar. Eu não preciso da autorização dele para fazer as coisas, mas eu não conheço muita gente por lá. Só os amigos dele... que são todos um porre! Sair sozinho eu não gosto. Acabo ficando em casa mesmo.

Michel observava ao garoto com cuidado. Era raro vê-lo falar de sua vida de casado. Na verdade nunca tinha visto a cara desse tal Gabriel. Estava feliz em ouvir seus relatos. Tinha ânsia de saber mais sobre sua vida, seus dias:

—Você não parece muito a fim de voltar pra lá.

—Ah, sei lá. Eu gosto do Gabriel... gostava... sei lá... Por um tempo ele pareceu perfeito. Seguro, tranquilo, calmo... Era tudo que eu nunca ia encontrar no Fip. Com ele eu pude ter uma relação estável, sabe? Sem tropeços, sem brigas.

—Sem paixão também.

—Talvez.

—Você não gosta dele, Flavius. Por que insiste nisso?

—Porque é cômodo. É bom ter alguém ao seu lado. Alguém pra dividir carinho... as contas, o dia a dia. Viver com ele é como estar de férias numa pousada. Você sabe que aquela tranquilidade não pertence a você, mas também sabe o quanto ela é necessária... eu penso que um dia eu vou espernear e jogar tudo pro alto... mas não sei... não vai ser agora. Ele precisa muito de mim também. Eu não teria coragem de fazer isso com ele...

—Mi mi mi mi. Blá blá blá blá. Tudo papo furado, Flavius. Você não gosta dele e ponto. Sua vida está um tédio e você não quer admitir isso!

—Tem suas partes boas!

—Mas não é melhor do que estar aqui.

—E eu ia viver como? De que?

—Você pode ficar na minha casa!

—Você mal consegue se sustentar! Eu ia ser um peso morto!

—Mas era só até você arrumar um emprego!

—E eu ia trabalhar com o que? Eu não sei fazer nada!!

—Você está inventando desculpas!

—Não estou não!  - disse se livrando do abraço do rapaz – Gabriel é uma boa pessoa. Ele fez muito por mim! Eu tenho o direito de não querer magoá-lo.

—Tem sim. Desculpe. Eu não queria me meter é só... que você parece infeliz.

—Eu sempre pareci infeliz, Michel. Mas isso antes não te incomodava.

—Claro que me incomodava. Eu me preocupava com você!

—Sei.

—É que antes você tinha o Fip pra cuidar de você.

—O Fip nunca cuidou de mim, Michel. Ele era a causa da metade dos meus problemas. Olha, eu posso ter amado o Fip mais do que qualquer um na minha vida. Mas isso não muda o fato de que ele me machucava muito! Não é porque ele morreu que eu vou fingir que as coisas eram boas! Eu fui para Buenos Aires jurando que jamais o veria novamente! E eu não queria mesmo! Também não queria que ele morresse! Mas sei lá, nós nunca teríamos futuro juntos! Ele me machucava, ele me fazia mal. Ele me sufocava! Ele me deixou doente!

—Eu sei disso. Eu sei... mas é diferente. O Fip você amava! Se prendia a ele mesmo com ele te fazendo mal porque vocês tinham amor um pelo outro. Já esse aí! Esse aí você não ama!

—Nossa que incrível! Eu poderia passar uma vida inteira com o Fip, mesmo que ele me fizesse mal! Porque eu o amava! Mas o Gabriel não! Ele me faz bem, me faz feliz, mas eu não posso viver com ele! Porque o que eu sinto por ele não é amor! Que porra de lógica é essa? Eu vou te dizer uma coisa: Eu prefiro mil vezes um relacionamento sem paixão que não me machuca que um amor profundamente cruel e sádico como o do Fip.

— Desculpe. Você tem razão. O Fip era meu amigo, eu o adarava. Mas é óbvio que ele nunca te fez bem. Você está certo, eu não sei o que deu em mim para dizer essas coisas...

—Eu sei! Eu vou te explicar! Você tem medo do que sente por mim! Tem medo da atração que eu te causo. Mas antes você tinha o Fip como escudo. Ele te protegia da sua insegurança porque ele era uma barreira sólida entre nós. Agora que ele está morto você quer se aproximar, mas Gabriel está na minha vida. Só que ele é uma barreira invisível, que você não sabe se deve levar a sério ou não. Por isso fica cheio de defesas, sem saber se pode sentir ou não o que sente por mim!

—Flavius, me faz um favor?

—O que é?

—Me deixa foder você a noite toda?

...

“Flavius estava dormindo na cama, corpo nu todo enrolado nos lençóis. Eu, sentado à janela observando as ruazinhas dessa cidade. Recebia as notícias de Michel, na cidade grande, uma vida de possibilidades, onde tudo acontecia. Arte, teatro, festivais... jazz. E eu aqui estacionado nesse espaço onde nada acontece.

Não sei onde estava com a cabeça quando decidi me mudar para cá. Aliás, eu sei sim. Foi necessário. Eu precisava de paz. E, do contrário, jamais teria conhecido Flavius, Natasha, Michel... Engraçado como o destino arma suas arapucas. Como teria sido a vida se eu tivesse decidido ir para outro lugar? Olho para o Flavius, não consigo imaginar uma vida sem ele. E nos conhecemos há tão pouco....

As estrelas olham para mim, elas me dizem que sou uma pessoa especial. A dança, essa coreografia que preparei... está tudo muito bom! Eu não tenho o direito de ficar aqui, inerte, desperdiçando meu dom! Não foi para isso que treinei tanto nos últimos anos. Não foi para isso que enfrentei tantas vezes o meu pai! Eu sempre quis mais! Sempre quis ser o melhor! E eu sou bom! Sei que sou! Por que não levo isso mais a sério?

Talvez eu precisasse de um tempo.... mas sinto que esse tempo passou. Flavius abre os olhos e, sonolento, pergunta se eu não vou voltar para a cama. Digo que mais tarde. Estou com vontade de andar. Dou um beijo em sua testa e saio do quarto. Antes de descer as escadas passo pelo quarto de Felipe, ele parece dormir tranquilo.

Desço. Natasha está vendo tv:

—Sem sono?

—Entediada.

Ela anda assim. Desmotivada. Michel lhe fazia muita companhia. E agora, sem ele, ela fica assim, prostrada na frente da tv, com essa cara de tédio. Mas não a culpo, eu fico a maior parte do tempo a ensaiar. Quando não estou fazendo isso estou com Flavius. E Felipe... bem, ele nunca foi boa companhia pra ninguém:

—Quer sair para andar comigo?

—Boto fé. – ela disse levantando.

Saímos. O bom das cidades pequenas, poder andar de madrugada pelas ruas sem a menor sombra de preocupação. Estava uma noite gostosa, silenciosa, quase fria. Caminhávamos no meio da rua, mãos nos bolsos sem falar quase nada:

—O que tá pegando contigo? – perguntou ela depois de certo tempo.

—Nada. Só pensando. Acho que cansei dessa cidade.

—Eu também.

—Eu pensei em ir embora, mas tem o Flavius. A escola dele, a tia. Não sei se ele toparia ir embora.

—Já falou com ele sobre isso?

—Ainda não. Ele é de menor, eu acho complicado.

—Sei.

—E você?

—Eu o que?

—O que te prede aqui?

—Preguiça. Se eu sair daqui vou ter que trabalhar, pagar aluguel, contas. Quero isso não. É boa a vida de madame que eu tenho aqui.

—Ahahahaha safada. Se não fosse por isso você me dava um pé na bunda?

—Com certeza. Nem de você eu gosto. Ahahahaha

—Vagagunda.

—Veado.

—Mas falando sério...

—Você não tava falando sério? Eu tava.

Ela olhou pra mim e riu. Seu riso estava sem graça. Foi quando eu me dei conta do quão ausente estava a ser. Natasha é minha amiga, estava passando por alguma dor e eu ocupado demais para perceber. Michel com certeza não deixaria uma coisa dessas passar.... eu deixei... ela faz bem em sentir falta dele. Sou um péssimo amigo:

—O que foi? – perguntei.

—O que foi o que?

—Que você tá com essa cara.

—É a cara que eu tenho ué. Posso não?

—Natasha, você pensa que me engana?

—Gosto de pensar que sim. Faz bem pro meu ego.

—Entendi. Mas me fala, o que ta te deixando triste?

—Não é bem triste... eu só to meio... sei la... sem graça. Carente. Sei lá. Desde que o Michel foi embora eu fico meio sem ter com quem conversar. Você só trepa com o Flavius e ensaia. O Flavius é legal mas eu não tenho muito assunto com ele. E o Felipe... ah eu não vou com a cara dele!

—Por que?

—Porque ele é dissimulado, é falso! Faz jogo duplo, eu não gosto disso!

—Que tipo de jogo duplo ele faz?

—Ah, deixa pra lá.

—Não! Me fala!

—Ah sei lá. Eu não sinto que posso confiar nele! E você também não deveria!

—Ele é meu primo, Natasha.

—E quase te encrencou com teu pai!

—É... mas ele se arrependeu.

—Sei não. O tipo de pessoa que faz isso uma vez pode muito bem fazer de novo. Confio nele não.

Ela tinha razão. Foi quando eu me lembrei do que mais me prendia nessa cidade: a proteção que dona Guilhermina me oferecia. Mas poderia eu viver assim? A vida toda fugindo do meu pai?

—E além disso tudo. Ah, eu fico carente. Ai fico pensando no Artur.

—Ah, o Artur!? Nossa, até hoje?

—E quem mais eu conheci pra colocar no lugar? É isso que é a merda dessa cidade sabe? Se fosse em outro lugar eu caia na noite e conhecia outro cara. Pronto! Esquecia ele num segundo! Mas aqui? O que tem aqui pra me distrair? Não tem ninguém interessante nessa porra de cidade! Ai eu fico com essa sensação de que ele é o cara mais perfeito do universo! Não paro de pensar nele!

—Isso é tenso.

Fiquei me perguntando: será que o mesmo estava acontecendo em relação a mim e ao Flavius? E se eu me mudasse com ele para a cidade, não poderia ele conhecer muitos outros mais interessantes que eu?

—Além do mais... ele... me mandou um e-mail.

—De novo?

—É. Reclamando que eu não respondi o anterior.

—E o que ele dizia?

—O que as pessoas dizem? Mentiras bonitas que parecem sinceras.

—Talvez sejam.

—Não. A gente gostaria que fosse. A gente gostaria de viver esses amores, mas no fundo a gente não ama nem a gente mesmo.

—Talvez... eu penso que amo o Flavius.

—Você pensa. Deixa ele pisar na bola contigo pra ver. Você passa a odiar ele num segundo. Não é o Flavius que você ama, é o fato de ele te fazer se sentir melhor. É pensar que ele te ama. Você ama é isso, o que ele faz com o teu ego. Agora se ele te trair, se ele te enganar, roubar suas coisas, fugir! Aí seu amor vira ódio, vira obsessão.

—Não é bem assim... nesse caso as coisas mudariam e...

—Sentimentos de verdade não mudam. E a verdade é que no fundo você sempre amou foi a si próprio. E se ele te machucar o seu amor próprio vai te fazer odiá-lo.

—Virou filósofa, é?

—Sempre fui inteligente pra caramba. Você nunca reparou porque fica prestando atenção nos meus peitos.

—Até parece que eu presto atenção nos seus peitos.

—É... eu esqueci... que seja. Eu não acredito nesse lance de amor, amor. Também não nego que exista. Tipo, eu me sinto bem do seu lado, do lado do Michel. Isso é alguma coisa. Mas minha vida não depende disso. Se vocês forem embora vai ser triste, mas sempre haverá outros. A gente sobrevive às pessoas. Porque, na verdade, o amor que a gente sente por elas é um reflexo do que sentimos por nós mesmos.... enfim, to me repetindo.

—Faz certo sentido... é triste, mas faz sentido.

—Ele disse que vai vir passar uns dias aqui... no feriado.

—Hummm. E aí?

—Disse que quer me ver.

—E você?

—Eu não sei. Tenho medo.

—De que?

—Sei lá. De ficar pensando nele demais.

—E isso já não está acontecendo?

—Sim, mas se rolar sexo de novo pode ficar pior.

—Eu acho que não pode ter nada pior do que viver com medo.

—Na teoria é bonito. Você pode viver com medo de cair no precipício, mas não precisa se atirar nele. Você pode só sair de perto.

—Ou se atirar de paraquedas que é bem mais legal.

—Eu te odeio.

—Por que?

—Por ter colocado essa maldita ideia na minha cabeça.

—Eu não coloquei, ela já estava lá. Só fiz você gostar dela.

—Eu vou responder o e-mail. Vou dizer que quero vê-lo.

—Isso mesmo! É assim que eu gosto de ver!

—Mas você tem que me prometer uma coisa!

—O que você quiser.

—Depois, quando ele for embora, e eu ficar na merda. Você vai comigo na capital passar uma noitada daquelas.

—Trato feito!”

...

Rebeca se levantou para buscar um biscoito na cozinha. Pierre interrompeu a leitura e sorriu para ela. Flavius e Michel estavam especialmente calados nessa tarde. A marca de chupão no pescoço de Flavius denunciava o que tinha se passado na noite anterior. E o ar alheio de ambos também. Tentavam evitar seus olhares, falavam o estritamente necessário e estavam estranhamente sentados muito distantes um do outro.

Natasha sorriu:

—Eu lembrava de tudo isso aí bem diferente.

—Como você se lembrava.

—Sei lá. Diferente. – deu de ombros.

Rebeca voltou com vários biscoitos:

—Alguém está servido?

Ninguém respondeu.

...

Oi, tudo bem? Você não respondeu meu último e-mail, o que aconteceu? Sabe, eu sei que não deveria estar te falando isso, mas eu não consigo parar de pensar em você! Desde o dia em que nos conhecemos que percebi que havia entre nós uma igualdade que eu não posso explicar. É como se eu me visse atrás dos seus olhos!

Sua ousadia, seu senso de humor, sua coragem. O jeito bonito como encara o mundo, a vida! Eu nunca pensei que uma menina pudesse ser assim! Você me faz pensar no quanto minha vida era sem graça até conhecer você! No quanto eu estava me contentando com pouco, com uma vida regradinha, sem gracinha. Sei lá. Eu durmo torcendo para sonhar contigo e quando acordo você é a primeira coisa que me vêm na cabeça. Às vezes fico horas parado na frente do computador esperando você se conectar. Pra falar um oi, pelo menos. Porque mesmo que não conversemos, só de saber que você está ali, do outro lado, já sinto um alívio. Sinto um chão embaixo dos meus pés.

E quando passamos as noites conversando eu sinto que estou diante de uma amiga de muitos anos! Sinto um estado de alívio, de estar em casa. Não sei explicar. Você mexe comigo, com meu tesão. Sonho em ter seu corpo de novo. Você me atiça tanto! É como me jogar numa fogueira! Eu sinto que a vida ao seu lado pode ser mágica!

Eu sei do seu gênio terrível, a sua teimosia! Sei que, por sermos os dois muito explosivos, brigaríamos muito caso, sei lá, tivéssemos uma vida juntos. Mas sei também que monotonia nunca teríamos.  Eu sei que parece meio loucura isso tudo que eu estou falando (tipo, não quer dizer que eu queira isso, mas eu não posso negar que já me peguei me imaginando isso). Sei que você pode ficar assustada lendo isso, mas eu só estou escrevendo esse monte de loucuras porque sinto, nas entrelinhas das nossas conversas, no seu jeito de me olhar, que você sente isso também.

Estou indo para Alvinópolis no próximo fim de semana. No feriado. Eu nunca mais te vi online, por isso não tive como te avisar (você até hoje não me deu seu telefone). Mas, se você sentir, pelo menos 1% do que eu te disse que sinto, me manda uma resposta. Se você responder, qualquer coisa que seja eu apareço ai pra te ver. Mas se você não quiser não me responda, e eu juro que não te procuro mais.

Beijos, Artur.

...

Oi Artur. De boa, pode aparecer por aqui. Bjo, Natasha.

...

—Você só respondeu isso?

—O que você queria que eu dissesse?

—Porra, Natasha!

—Porra, Chico! O menino falou que não pensa em ter uma vida comigo! Disse que só quer meu corpo! Você queria que eu dissesse o que?

—Caralho, Natasha! Isso foi praticamente uma declaração de amor! E você respondeu seca desse jeito!

—Declaração de amor o cacete! Ele só quer ter quem pegar enquanto estiver aqui!

—Ah não, Natasha! Ah não! Escreve outro e-mail pra ele agora!

—Eu não!

—Natasha! O moleque tá caidinho por você! Ele disse que não para de pensar em você!

—E você acredita? Manda você um e-mail pra ele então!

—E como não acreditar? Você também não pensa nele o tempo quase todo?

—Mas é diferente! Eu não tenho ninguém, não fiquei com ninguém depois dele! Agora ele não! Ele tem namorada, e deve ser cheio de menina dando mole pra ele por lá.

—Aposto que ele pensa a mesma coisa de você.

—Azar dele.

—Porra, Natasha! Escreve um e-mail melhor pra ele!

—Eu não! Se ele quiser vir que venha. Ele mesmo falou que era pra mim responder qualquer coisa. Eu respondi. Sou de ficar me arrastando pra homem não!

—Você não está se arrastando criatura! Só precisava responder a altura!

—Foi o que eu fiz.

—Eu desisto!

...

Falta uma semana pra apresentação do Fip e ele está uma pilha de nervos. O namoradinho da Natasha disse que apareceria nesse feriado, já passou o sábado inteiro e nem sinal dele... ela está uma pilha de nervos. E o Felipe está arrumando as coisas dele. Disse que vai com a gente para o festival e vai aproveitar pra ficar por lá mesmo. .. também não está com um humor muito bom. Eu, no meio disso, de tanta gente roendo a unha, xingando, gritando. O Fip não para de passar a coreografia. Ele pede pra mim filmar, depois assiste xingando horrores! Diz que está horrível, que eu tinha que avisar ele que esta ruim. Eu respondo que para mim está bom. Aí ele aponta para o pé dele no vídeo, diz que a ponta não está esticada, que não tem como aquilo estar bom. Eu não entendo merda nenhuma de ponta, não tenho como saber. Mas ele grita mesmo assim, como se a culpa fosse minha. Como se eu tivesse ido lá e tirado o pé dele do lugar.

Por fim eu cansei, deixei ele ensaiando sozinho. Eu entendo que seja importante, entendo que ele esteja nervoso. Mas também entendo que meu sangue não é de barata e eu não tenho a obrigação de ser tratado dessa maneira. Dessa vez eu não estou nem aí. Se ele não vier atrás de mim eu também não irei! Ele não pode me tratar assim toda vez que fica nervoso e depois esperar que eu volte com o rabinho entre as pernas! Ele tem que aprender a me dar valor também! Por que todas as coisas dele são importantes e as minhas são “pitís”? Penso em uma forma de deixar isso claro. Reclamar com a Natasha talvez? Mas não... ela está muito preocupada com o tal do Artur... No Felipe eu não confio. Desconfio que ele esteja dando em cima de mim. Dou de ombros, vou para casa. Se o Fip quiser, ele que me procure lá... mas e se ele não for? Se sua preocupação com a coreografia for maior? Na verdade é maior! Duvido que ele vá perceber que eu não estou aqui.

E se perceber nem vai ligar! Vai pensar “Aquele idiota está fazendo draminha”. E vai me deixar lá, plantado esperando por ele! Fiz menção de voltar, de continuar filmando a porra da sua coreografia, engolir tudo e fingir, mais uma vez, que o errado na história fui eu. Encarar a cara de cu dele, como que dizendo: “Até que enfim você voltou. Agora para de reclamar e faz seu trabalho direito!”. Mas de repente me bateu uma total apatia. Tudo isso, namorar, conviver, lidar com o mau humor, dava muito trabalho. Talvez fosse mais fácil ficar dormindo no meu quarto o dia inteiro. Talvez fosse isso que eu quisesse... dormir até todo mundo me esquecer...

Abaixei a cabeça e voltei para casa... antes de abrir o portão olhei para trás, ninguém parecia ter percebido que eu saí... dormir até todo mundo me esquecer... talvez para isso fosse preciso tirar só um cochilo...

...

   Eram sete horas quando a campainha tocou. Claro, era o Artur! O Chico tava lá embaixo ensaiando, o Felipe no quarto lendo. Eu fui abrir a porta. Estava com uma cara fingida de “nossa! Estava jogando vídeo game distraída quando você chegou! Mal me lembrava que você viria!”. O cabelo quase desarrumado, mas de um jeito bonito. As roupas largadas, mas escolhidas a dedo para realçar essa ou aquela curva. O vídeo game pausado, desde as três da tarde, naquele jogo que ele mais gosta. E eu com um nariz de palhaço imaginário na cara me dizendo: você está de quatro por esse babaca e ele vai perceber no momento em que bater o olho em você. Se ele percebeu ou não, eu não sei, o que ele fez foi dizer:

—Oi.

—Ah, oi. – eu disse tentando parecer desinteressada – Tudo bem?

—Tudo, e você.

—Tudo.

...

...

—Não vai me chamar pra entrar?

—Ah é... entra?

—Há! Você está jogando Zelda? Que da hora! Esse jogo é muito demais!

—Eu também gosto pra caramba! – eu disse demonstrando mais empolgação que o normal.

Ele correu e se sentou na frente da tv. Disse que aquela parte era uma das mais legais, perguntou se eu sabia como passar dela. Eu disse que sim, ele nem ouviu. Ele já tinha zerado o jogo diversas vezes. Falava dos gráficos e das inovações da nova versão. Empolgadíssimo comentava as partes do enredo que mais gostava. Eu colocava as minhas opiniões. Lógico que a versão nova era muito legal, mas, para mim, ninguém nunca superaria o clássico! Ele concordou! Tiramos o jogo do pause e começamos a jogar juntos.... Jogamos juntos por horas... comendo biscoitos e conversando sobre os gráficos....horas... sentados de meia em cima do sofá....horas.... até eu me sentir um brother  dele!

Claro, gosto do jogo, estava realmente entretida com ele! É muito legal, de verdade, ter com quem jogar! Os meninos aqui quase nem gostam de jogar comigo. Mas me percebi que tinha cometido um erro absurdo! Estava tão acostumada a lidar com meus amigos gays que nem me lembrei da lição numero um da minha vida: se você quer sexo com um homem, nunca, JAMAIS, coloque um vídeo game na frente dele!


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