Sangue escrita por Salomé Abdala


Capítulo 46
Capítulo 44 – Rachaduras na louça.




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-Sair de Alvinópolis? – repetiu Flavius consternado – E vai para onde?

-Felipe me ofereceu seu apartamento por uns tempos. Até eu arrumar um emprego. Vou para a capital.

-Mas... mas e as contas? E a comida? Como vai fazer para pagar a mudança? Isso fica caro e... e os riscos... suas coisas?

Flavius tentava apontar ao máximo as dificuldades daquela decisão, na tentativa, sabidamente inútil, de fazê-lo desistir:

-Tenho um dinheiro guardado. É pouco, mas da pra passar um mês. As coisas eu mando buscar aos poucos. Vou vender algumas delas.

-Não acha uma decisão muito precipitada?

-Não tem clima para ficar aqui. Não com meus parentes por perto.

-E Natasha? E Fip? Eles já sabem disso?

-Não.  Conversei sobre isso apensas com Felipe... e agora contigo.

“Por que primeiro com Felipe?” – Flavius apertava as mãos... O futuro lhe pareceu nebuloso. Um gosto amargo a lhe subir pela garganta:

-Não gostaria que partisse. – disse num ímpeto de sinceridade. – Não agora que estamos nos dando tão bem.

De fato alguma amizade parecia se consolidar entre os dois.

-Flavius... talvez... seja... até melhor para você e o Fip... Sei lá... eu nunca falei nada, mas eu sinto que atrapalho vocês dois.

-Não. Ficar sem você nunca será o melhor para mim.

-Flavius... – disse com uma expressão assustada.

-Não se assuste tanto. Eu não prendo o meu coração ao seu. Simplesmente sei, e você sabe também,  que você é uma pessoa especial. Dessas que não se acha por aí. E eu gosto de gostar disso. Gosto de saber valorizar uma pessoa como você. E, eu imagino que você também sinta alguma admiração por mim. Eu sei que também sou uma pessoa especial... do meu jeito... digo... não se acha um de mim em qualquer esquina... e isso deve ter o seu valor também...

-Óbvio que tem.

-Então. É isso. Eu gosto de você. Mas não prendo minha felicidade a isso. Não te exijo nada em troca. Não sou desse tipo de garoto. Eu só gostaria que... que você me deixasse sentir isso... sem neuras... sem culpa...

-Sim. Eu entendo... mas e Fip?

-Fip é um bom companheiro. Ele me entende, preenche meus dias. De um jeito que você nunca fará. Existem amores para o dia a dia e amores para o coração... que ficam melhores nos planos das ideias... você pertence ao meu coração. Fico feliz em saber que você existe. Para mim é o suficiente. Não faço questão que você me ame que seja só meu. Fip não. Fip é amor de dia a dia. Se fico uma semana sem vê-lo já me bate a insegurança de esse amor não existir mais. É carnal, bruto e tão delicado quanto uma asa de borboleta. Com ele eu preciso viver para alimentar o que sinto. Contigo basta saber de sua existência e eu sei que nunca se extinguirá.

-Então... nesse caso... você não consegue entender? Que... eu precise partir?

-Infelizmente... eu consigo... e ficarei feliz em saber que se deu bem por lá... – disse contendo as lágrimas.

-Desculpe Flavius.

O menino sorriu:

-Deixe de bobagem Michel. O coração é seu. Se ele te diz que você deve partir é porque você deve.

-Gostaria de querer ficar... por ti. Gostaria de um dia poder me apaixonar por você.

-Não gostaria não. Você sabe que seu sentimento por mim é vazio. Não digo vazio no sentido de você me ignorar. Eu sei que você tem grande amizade e admiração por mim. Imagino até que domaria teu coração para que ele me amasse se você pudesse. Mas as coisas não funcionam assim. Então não se sinta culpado por isso. Aceite, assim como eu, o fato de que esse carinho fraterno, que esse querer bem, é o máximo que você pode me dar. E não me faça mais esse tipo de promessa. Não me dói em nada você não me amar. Mas doeria imensamente acreditar falsamente que sim.

-Flavius... eu... eu não sei.. o que dizer.

-Diga adeus e vá. Do resto eu cuido.

-Eu não vou agora. Ainda levará alguns dias.

Flavius se levantou:

-Preciso ficar um tempo sozinho. Tchau.

-Espere! Espere! Queria, ao menos...

-Não deixe que a minha tristeza pese sobre você. Ela é minha. É um problema meu. Não estou ofendido com você, só preciso de um tempo para administrar isso. Tchau.

Michel abraçou as próprias pernas. Estavam sentados na calçada da casa de Fip. Sentiu-se sozinho. Como é duro magoar alguém como Flavius! Como é duro magoar qualquer um...

...

-Francis? – disse Felipe enquanto observava ao tabuleiro. Estavam a jogar xadrez.

-Hãn?

-É como você esperava? Digo... a sua nova vida?

-Não exatamente. Mas não está ruim. Eu queria negar meu passado. Ser uma pessoa nova. Esquecer tudo que aconteceu. Mas isso e impossível.

-Eu fiz mal em aparecer, não foi?

-Não! Não... – repetiu em um tom mais carinhoso e sereno, Fip estava com um humor incrivelmente brando nesse dia – Você nunca faz mal em me procurar. Eu gosto de você. Se tem uma parte da minha vida que eu jamais excluiria da minha memória... são os momentos incríveis que passamos juntos. Nossos encontros às escondidas, as cartas que trocávamos...

Felipe sorriu degustando as lembranças:

-Então por que às vezes me trata tão mal?

-Não sei. É meu jeito, eu acho. Às vezes eu saio chutando todo mundo pra aliviar o vulcão que tem dentro de mim.

-Entendo... é que... as vezes dói... as vezes me faz sentir que... que seria melhor se eu fosse embora...

                -Desculpe. Eu juro que não queria que você se sentisse assim. Eu, mais do que ninguém sei o quanto ser tratado assim dói... mas... quando eu vejo eu já fiz.

                -É o mal de gente como você. Que passou por muita coisa difícil na vida. Vocês acham que todo mundo tem a obrigação de ser forte igual vocês foram, e não tem paciência com a fragilidade alheia.

                -É... – disse Fip soltando a peça que mantinha na mão – Talvez você tenha razão... Nunca tinha pensado por esse ângulo.

                -Eu te admiro, Francis. Queria ser um pouco mais como você.

                -Nunca mais diga uma bobagem dessas! Você não tem ideia de o que é o terror de ser alguém como eu.

                -Pode ser um terror... mas é bonito de olhar.

                Fip encarou o primo nos olhos:

                -Você realmente me amou?

                -Mais do que a mim mesmo.

                -Então por que fugiu? Por que deixou que te levassem para longe de mim?

                -Eu não tenho a coragem que você tem Francis.

                -Mas, se você me amasse mesmo teria enfrentado o medo! Eu também tive medo! Mas enfrentei!

                -É o que eu disse, nem todos são iguais a você. Alguns preferem mutilar os desejos para evitar a dor. Você é do tipo que não se curva às cicatrizes.

                -Sim eu sou. E isso tem seu preço.

                -É esse preço que nem todos querem pagar.

                -Acho que entendo, mas penso que não conseguiria viver assim.

                -Por isso eu te admiro.

                Sorriram:

                -É sua vez. – disse Fip.

                -Eu sei, estou pensando no que fazer.

                Fip olhava para o tabuleiro. Talvez sua história com Felipe pudesse ter sido diferente. Tentou sentir em seu coração alguma chama e admiração pelo primo... mas nada aconteceu. Como é possível que lhe restasse nada desse amor?

                -Francis?

                -Hãn?

                -Posso perguntar outra coisa?

                -Pode.

                -E o nosso tio... o que você sentiu por ele?

                -Carinho. Cobiça. Ele odiava a nossa família tanto quanto nós. Também admirava o meu jeito de enfrenta-los. Por isso quis deixar a fortuna dele pra mim. Nós dois sabíamos que ele não ia viver muito. Foi uma relação de troca. Ele me ofereceu isso tudo e eu fui a companhia dos seus últimos dias.

                -E você não se sente mal com isso? Tipo, como se tivesse se vendido?

                -Não. Foi uma questão de troca. Ele me deu dinheiro, mas o que eu dei para ele foi muito mais que isso. Eu dei carinho, escutei suas histórias, cuidei das suas feridas. Acompanhei sua dor e o entreguei pra morte. É duro morrer sozinho. Eu estava lá para segurar sua mão quando ele partiu.

                -Bonito isso... ninguém mais teria feito isso por ele.

                -Exato. E é justo que eu ficasse com seu dinheiro. Principalmente para que nenhum daqueles parentes safados que nunca ofereceram a ele nenhum copo de água colocasse as mãos na grana!

                -Engraçado. Agora eu encaro tudo com outros olhos... de certo modo.. você tem razão... mas.... err... Francis?

                -Fala.

                -Última pergunta, eu juro.

                -Fala.

                -Nosso tio... ele morreu de câncer mesmo... ou foi outra coisa?

                Fip sorriu:

                -Xeque mate. Você perdeu.

                -Não vai me responder?

                -Hoje não. Desculpe.

...

                -Você vai embora? – perguntou Fip segurando o sorriso.

                Não é que não gostasse de Michel, ao contrário, sentia por ele profunda amizade. Mas sentia um certo alívio de imagina-lo longe! Talvez seu coração repousasse em paz sem a sombra do rapaz em sua relação.

                Natasha, que também estava sentada à mesa de jantar, soltou um sorriso franco e disse:

                -Ah, não! Vou sentir sua falta! Mas eu entendo você. Eu tive que fazer a mesma coisa. Além do mais a capital não e tão longe! Podemos te visitar sempre!

                -Eu tenho um amigo, no teatro municipal. – disse Fip – Ele com certeza pode te arrumar um emprego!

                -No teatro?

                -É! Você começa trabalhando na bilheteria, com o tempo pode ir aprendendo a mexer na luz, sonoplastia... vai ganhando mais. Quem sabe uma hora não vira ator? – riu – Imagina só!

                -No teatro? – repetiu Michel para si mesmo – Acho que gosto da ideia! Vou poder assistir todas as peças de graça?

                -Com certeza!

                -Ahahahaha. Minha vida nova nem começou e já estou gostando dela! – disse o rapaz com um sorriso entusiasmado no rosto.

                Natasha sorriu com uma certa tristeza no olhar. “Estou perdendo muitos homens ultimamente” – observou ao amigo – “Mas quer saber de uma coisa? Acho que é disso mesmo que ele precisa!”

...

“Querida Natasha.

Sei que poderia mandar um e-mail, que é muito mais prático, mas ultimamente eu venho sendo abarrotado por um espirito romântico que me impele a escrever a mão! Estou no balcão da bilheteria esperando que a plateia chegue para o espetáculo. Hoje temos Beckett! É um escritor irlandês de teatro. Ele escrevia peças surreais que o pessoal chama de teatro do absurdo. É uma vertente de teatro da década de 60 eu acho.

Agora estou metido a entender de teatro. Ando assistindo tanta coisa! Fiz muitos amigos nesses últimos três meses! Todos são atores! Comecei a fazer um curso de teatro, aqui mesmo onde eu trabalho. Por ser funcionário eu faço o curso quase de graça (eles descontam uma taxa boba do meu salário)! Isso tem me dado um gás especial para viver! Além de ficar na bilheteria eu estou fazendo um bico como garçom no café que tem aqui dentro do teatro. E com isso eu ganho um dinheirinho a mais que dá pra mim pagar o aluguel de uma kitnet aqui pertinho de onde eu trabalho (sai do apartamento do Felipe mês passado. Ele já deve ter se curado dos machucados e imagino que logo ele queira voltar para casa).

O lugar é pequeno, um quarto junto com a cozinha e um banheiro quase menor que a banheira do Fip! Tenho comido quase que só miojo e pão, às vezes almoço lá no meu trabalho, mas acho a comida de lá enjoativa! Mas, apesar de tudo, da comida ruim e do cansaço, eu estou gostando muito de cuidar da minha vida! Ter as minhas coisas, que eu conquistei com o meu  dinheiro, mesmo que seja pouco, tem um valor muito gostoso!

Pelo menos assim, ninguém pode jogar nada na minha cara! Tenho falado pouco com meus pais. Minha mãe, lógico, acha que eu estou louco, que preciso de ajuda. Mas, ainda assim, sinto que alguma coisa mudou na voz dela depois que eu vim para cá. Sinto que ela esta sendo obrigada a sentir algum respeito por mim!

E como vão as coisas por aí? Soube que Fip está ensaiando uma cena de dança para o festival nacional de dança que acontece aqui... é verdade? Se for vai ser incrível! Ia ser demais ter todos vocês aqui! Sinto saudade das nossas conversas de madrugada, das nossas bebedeiras hehehehe! Bem que você podia vir passar uns dias aqui, o que acha?

Bem, é isso, tenho que terminar porque esta começando a chegar gente. Espero que esteja tudo bem por ai e espero notícias!

Beijos, Michel.

Ps: Eu vi o Artur esses dias! Ele veio aqui assistir uma peça, mas nem me reconheceu eu acho. Ele estava com a namorada e eu digo que acho você muito mais bonita e interessante do que ela! A menina não tem nada a ver com ele, é super sem sal e antipática. Você adoraria ter visto.”

...

“Querido Michel,

Eu vou responder por e-mail porque não sou obrigada. Esses romantismos pra mim não funcionam nada. Nem gosto de escrever a mão e deu um trabalhão entender seu garrancho! Ahaiuhaiuahuia brincadeira, sua letra e lindinha, mas a minha não, então te poupei o trabalho de decifrar o que eu escrevo.

Então! Por aqui anda tudo massa. O Felipe já tá bonzinho de tudo! Toda semana ele fala que vai embora mais nunca vai. Ele e o Chico parecem estar se entendendo melhor. Tipo sem aquelas briguinhas e tal. Acredita que esses dias ele ate sentou e bebeu com a gente? Tipo ele não chegou a ficar chapaaaado mas ficou de fogo ahahahaiuahiu. Foi meio engraçado de ver.

O Chico ta ensaiando mesmo pra esse festival aí. De tanto o Flavius insistir. No começo ele não queria não. Mas o Flavinho insistiu tanto que ele acabou animando. Ah o Flavius voltou a falar comigo. A gente conversou sobre a parada lá da tia dele e ficou tudo bem. Qualquer dia eu vou lá pedir desculpa pra véia. Coitada, parece que ela é meio doida... enfim.

Entããão, eu também to com saudade, seu merdinha. Mas você só conversa com o Flavius, né?  Pelo menos é ele que sempre chega contando novidades suas! Mas e aí? Já conheceu algum gatinho? Como estão os rolos por ai? Tem algum menino massa aí nesse grupo de teatro? Depois eu quero saber de tudo, heim?

Também quero ver você apresentando. Quando tiver alguma coisa me avisa! Ai eu aproveito e passo uns dias aí! Mas claro que eu vou te visitar antes! Talvez semana que vem! Eu tinha pensado em arrumar um emprego também, mas minha preguiça não deixou.

AAAAAh então quer dizer que a “outra” do Artur é meio baranga? AHAIAHIAUHAIU Eu sei que não devia, mas adorei saber disso! Aliás, esses dias ele me mandou um e-mail. Dizendo que tinha saudades, que não gostaria de perder o contato. Eu ainda não respondi... to dando um gelo pra ele dar mais valor.

Eu pedi pro Chico vender aquela casa que ele comprou pra mim. Ele disse que nem tinha comprado de verdade. Que ela era alugada! Imagina! Ele pagando aluguel esse tempo todo pra ninguém ficar lá?! A gente deu uma briga por causa disso, mas já passou. Agora ele devolveu a casa. To morando definitivamente aqui. Vê se tem lógica ficar gastando um dinheiro desses a toa!

De resto aqui ta tudo bem. Tirando a saudade de você, seu miserável! Agora não tem ninguém pra mim conversar de noite (O Felipe dorme cedo e o Flavius e o Chico se trancam no quarto... você bem sabe pra fazer o que...) e aí eu tenho que ficar jogando videogame. Viciei naquele joguinho que a gente jogava. Já estou quase zerando... Enfim. Boa sorte ai com seus miojos. Espero que continue tudo bem. E, se precisar, eu tenho um dinheirinho guardado que eu não uso pra nada! Não fica ai passando necessidade a toa não! Precisando da um grito!

Beeeijoos! Natasha!

Hey, Michel! Aqui é o Fip, dei uma passadinha aqui pra mandar um abraço! Não acredita em nada que a Natasha disser! Ela é uma bêbada mentirosa! Nem vou te contar o que ela anda fazendo por aqui porque se não você ia morrer de vergonha! Se cuida por aí! E o que a Natasha disse (sim eu li tudo que ela escreveu) eu também digo! Você sabe que eu tenho grana, se precisar é só pedir! Eu sei que você tá na vibe de querer se virar sozinho. Acho isso muito legal e até necessário, mas não se acanhe em pedir se precisar! Beijooos e lambidaas!

Fip!

Ah, o Felipe ficou todo ofendido de você ter saído do apartamento, porque agora ele não tem nenhuma desculpa para não voltar a morar nele, ahiauhaiua brincadeira, tá legal ele morando aqui! Ele e o Flavius mandaram um beijo, mas eu nem vou passar o recado. Ahahaha beijooo!”


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