Sangue escrita por Salomé Abdala


Capítulo 45
Capítulo 43 – Caminhos...




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“Não tenho dançado mais. Por qual razão? Felipe tem me dito constantemente que não consigo ficar sóbrio. Que a bebida está acabando com o artista que existe em mim.  A principio achei exagerado... mas hoje pela manhã tentei fazer uma sequência simples de movimentos e pimba! Ali estavam os fatos... mal consigo fazer uma abertura!

Onde está o garoto que treinava quase seis horas por dia e jurava se dedicar integralmente à dança pelo resto da vida? Talvez o resto da vida seja tempo demais pra qualquer pessoa... mas por que meu tempo acabou tão cedo? Deixo o pensamento livre... em outros tempos ele se voltaria para a dança. Sempre que me via com o pensamento frouxo ele caminhava sorrateiramente até a dança. Hoje não. Hoje penso em Flavius.

Flavius me ocupa o pensamento integralmente. Ele é minha felicidade. Com ele por perto não sinto falta de dançar, de ser alguém... Mas se ele me completa tanto... por que estou a ter esse pensamento? Quero voltar a dançar, quero me importar de novo! Mas quando vou para a sala de dança e começo a me mover, logo vem uma preguiça, uma falta de inspiração. Faço alongamentos medíocres, um aquecimento fubá e logo me vejo contando os minutos para a hora em que Flavius chegará. Não há concentração.

Estamos às boas, Flavius e eu. Mas continuo com aquele sentimento de insegurança dentro do peito. Como se esse amor tivesse prazo de validade. Talvez por isso queira reconstruir o amor à dança. Sinto falta de fazer algo por mim. Algo que seja só meu. Mirar-me no espelho e me orgulhar do reflexo que vejo. Mas como? Se é só em Flavius que penso?

A vida toda busquei alguém que me admirasse. Que me amasse. Só levei porrada. Meus parentes sempre a me cobrar um comportamento exemplar. Minha mãe desaparecendo no horizonte, malas em punho... o abandono, a discórdia. Encontrei na dança um modo de amar a mim mesmo, independente do que os outros diziam.

Dentro de casa eu era o eterno mau exemplo. O veado que  meu pai queria esconder do resto da família. Para os outros parentes eu era  o menino torto que falava demais, o mal educado. Para minha mãe um peso morto que a prendia ao meu pai. Um peso que ela não hesitou em deixar para trás quando fugiu... Ela nunca me amou. Acaso me amasse teria me levado junto. Como pôde me deixar sozinho naquela casa em que ela mesma não conseguiu viver? Por acaso não sabia ela que eu passaria por tudo que ela passou? E com que coragem me deixou ali?... talvez o ato não lhe tenha exigido coragem alguma. ‘Um dia volto para te buscar’ – ela disse. Por anos fiquei à janela esperando sua silhueta aparecer no horizonte. Esperando que ela me levasse para longe dali, daquela gente violenta que não gostava de ninguém. Levei anos para perceber que ela jamais viria.

E no meio disso a dança era meu único refugio. Minha vontade de viver. Hoje encontrei em Flavius, Natasha, Michel... as vezes até no Felipe... uma família. Rostos amigáveis. Até carinho às vezes... carinho... . Céus, como é difícil receber carinho! Às vezes mais difícil do que levar porrada! Por que?

Por que nos sentimos tão ridículos, tão vulneráveis quando se trata de carinho? Um bom afago às vezes nos agride mais que um tapa! Por que? ‘O afago atinge a alma. E  sua presença nos faz perceber o quanto nossos dias sem ele doem. Já o tapa atinge a carne. É vulgar.’ – Flavius me disse. Não sei se dou muita razão pra ele. A violência não é vulgar. Ela nos atinge a alma também. Mas, ao contrário do afago, sua falta não dói... talvez por isso, pelo medo de sentir falta desse carinho, eu hesite em acreditar que o amor de Flavius é real...

Gostaria de acreditar. Gostaria de voltar a dançar, estar integro comigo mesmo. Mas como?”

 

...

 

 

Eram quatro da tarde e eu estava ali que nem uma idiota na rodoviária. Artur disse que queria me ver antes de ir embora. Desde aquele dia que não nos falamos. Ele não me procurou e eu muito menos. Mas hoje ele ligou dizendo que ia embora, que queria me ver.  Eu, tonta, vim.

Coloquei um vestido preto rodado, um tênis e carregava na mão um presente bobo. Um chaveiro idiota que achei no fundo da gaveta. Sempre gostei de dar presentes assim.  Coisas que já não tinham mais valor, mas viravam presente. Ele apareceu ao longe, aquele sorriso bobo, a camisa mal abotoada. Um jeito desastrado de carregar a mala enquanto me acenava com a mão.  Sorri para ele e acenei de volta:

—Pensei que não vinha! – ele disse sorrindo – Que bom que veio!

Tinha sinceridade no seu sorriso, no seu jeito de olhar. Ele estava mesmo feliz em me ver! E eu em vê-lo:

—Eu tinha que ver. Até porque nunca se sabe né? Vai que você morre na viagem.

—Você ia chorar por mim?

—Um pouquinho... assim, pra ninguém dizer que eu não chorei.

—Entendi. – ele abriu um sorriso – É uma pena ter que ir embora. – ele disse depois de um silêncio de quem procura o que dizer.

Coloquei a mão na boca dele:

—Fala nada não. Eu to feliz em te ver, você tá feliz em me ver. Vamos só sentir isso, sem falsas promessas.  – puxei o braço dele pra um abraço.

—Tudo bem. – ele disse me abraçando – Você tem razão.

Ficamos em silêncio até seu ônibus chegar:

—Cuide dela com carinho. – eu disse antes de ele subir.

—Pode deixar. Cuide de você mesma com carinho.

—Vou tentar.

Partiu. “Vá e leve seu coração contigo. Deixe que eu volte para casa com o meu.” ... e voltei.

...

Flavius colocava a meia no pé esquerdo enquanto mastigava os últimos restos do sanduiche improvisado. No rosto restos de sono. Primeiro dia de aula depois das férias.  Coisa chata. Michel terminou o terceiro período no ano anterior. A escola ficou chata sem ele. Flavius sorriu, de certo modo as coisas eram mais divertidas quando Michel era uma paixão platônica. Sair de casa imaginando se o iria ver antes do recreio. Esperar ansioso pelo momento de vê-lo na fila para o lanche. Essas coisas preenchiam o dia.  Agora Michel é um amigo. O que é bom também, mas não tem a mesma cor.

Calçar o tênis, ajeitar o uniforme, pegar os materiais. Antes ir para a escola era um tormento. Hoje não mais. Pouco importa o mexerico dos outros. Ele tem amigos. Mesmo que seja fora da escola. Antes só tinha solidão. As criticas eram pesadas. Agora tudo tem um peso diferente. Tudo é muito leve.

Sorriu, estava até ansioso em começar o dia. Rever alguns dos seus professores prediletos (pois tinha sim a amizade dos professores... dos alunos nunca, mas de muitos professores), sair de casa sentindo aquele friozinho besta, sentar nas carteiras desconfortáveis, pequenas para suas pernas grandes. Escutar as conversas bobas dos rapazes. Estar por fora de tudo isso às vezes tinha um tom agradável... o tom do observador.

Hoje tinha combinado de almoçar com Fip. Faz dias que estão bem um com outro.  Sofia estava também se arrumando para o trabalho. As marcas no rosto estavam quase desaparecendo:

—Está pronto, Flavinho? Se estiver ganha uma carona!

—Estou sim. – disse com um sorriso bobo.

—Então vamos.

E partiu para o primeiro dia de aula. Aquele dia repleto de sensações, onde você se pergunta o porquê de não gostar da escola... infelizmente a resposta vem semanas depois... porque ela é uma obrigação, e o ser humano, nascido para ser livre, detesta a todas elas.

...

—E você pretende viver à custa desse safado por quanto tempo? – perguntou sua mãe num ar sofrido – Meu Deus! Nunca pensei que tivesse criado um gigolô.

—Não é assim...

—Gigolô! É como você está vivendo!

—Não exagera mãe. – disse Michel – Fip é meu amigo!

—E nós somos a sua família! Seu lugar é aqui conosco!

—Não depois do que vocês fizeram!

—Nós fizemos aquilo para te proteger!

—Me proteger do que?

—Do pecado! Da difamação! As pessoas iam comentar!

—Eu não ligo.

—Mas nós ligamos!

—Então vocês fizeram para proteger a vocês mesmos!

—Meu filho! Você ainda não tem maturidade para entender essas coisas...

—Deus me livre de tê-la um dia.

—É impossível conversar com você! Está sempre violento, mal humorado! Recebe a gente com quatro pedras na mão. Eu não esperava isso de você, meu filho. Você era tão alegre, tão bom. Esse menino desvirtuou sua cabeça!

Michel fechou os olhos e respirou fundo. É impossível conversar com quem se recusa a aceitar a verdade:

—Mãe, eu estou bem, ok? Muito bem.

—Isso é droga! Eu tenho certeza! Eu e seu pai vamos mandar internar você! O jeito que você está vivendo é perigoso! Sua tia Amália disse que conhece uma ótima clinica! É na capital.  Eles recuperam qualquer tipo de viciado, meu filho, se você quiser nós ajudamos você!

—Eu não quero nada que venha de vocês. Eu só quero ter a minha vida, do meu jeito!

—Então nós vamos chamar a polícia! Vamos processar aquele menino! Você pensa que a gente não tem poder pra isso? Nós temos! Vamos colocar aquele patife na cadeia!

—E a quantas anda o processo contra as empresas? Eu fiquei sabendo que vazaram uns documentos que incriminam vocês.

—Isso é invenção da imprensa!

—Eu sei que não é. Vocês apontam o dedo para mim, mas são desonestos! Não se importariam nada se eu estivesse fazendo qualquer merda, desde que essa merda trouxesse dinheiro. Desde que fosse bem encoberta! Falam de mim, mas quem deveria estar internada eram vocês!  

—Meu Deus! – ela disse com um gesto dramático – Ilumina esse menino! Você está drogado, não está? É por isso que está me tratando desse jeito! Você precisa de ajuda! Precisa de internação! Sua tia Amália me falou dos sintomas. Você tem todos! Daqui a pouco está entrando aqui dentro pra roubar! Pra sustentar seu vício!

Michel se levantou e partiu. Deixou a mulher falando sozinha. ... Talvez ela estivesse certa. Era hora de arrumar um emprego. Mas onde se seu nome estava sujo na cidade toda? Talvez fosse hora de sair de Alvinópolis.


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