Sangue escrita por Salomé Abdala


Capítulo 44
Capítulo 42 – Uma cena ridícula.




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Chegamos na casa do Flavius em poucos minutos. Sofia (a tia dele) correu para a cozinha pegar gelo para colocar nos machucados. Não parava um segundo sequer de xingar. Eu olhava para o gelo em seu rosto inchado e me perguntava de que lado eu estava. Natasha poderia ter morrido por sua causa. Ela não deixou de merecer os tapas que levou. Mas vinham na minha cabeça aqueles pensamentos de que violência não leva a nada. Que essa não é a forma de resolver as coisas... mas mesmo que a maior parte da minha cabeça aceitasse isso como verdade, ainda restava um pedacinho dela que me perguntava: será? Será que não foi bem feito?

Eu penso que se estivesse no lugar da Natasha jamais teria feito o mesmo. Mas quando me lembro do que meus pais fizeram comigo... com Cláudio... eu sinto que gostaria de fazer isso com eles!  É um sentimento muito ingrato ter raiva dos pais. A gente se sente sujo, impuro... mas... como não sentir raiva? Eles destruíram minha vida! Mas também me criaram, cuidaram de mim... tinha vontade de fazer as pazes de verdade com minha mãe. De olhar em seus olhos e não sentir vontade de cuspir na sua cara. De pedir teu abraço sem querer lhe romper os ossos em seguida:

—Ei! Está no mundo da lua, moleque? – disse Sofia – Estava falando com você!

—Desculpe, estava distraído.

   -Eu disse que vou denunciar aquela menina! Vou fazer uma queixa dela na polícia!

   -Eu não acho uma boa ideia.

   -Como não? Olha o que ela fez comigo?

   -E você não se lembra o que fez com ela? Natasha não prestou queixa, mas se ela prestar você pode se dar muito mais mal que ela.

   Flavius me olhou com um olhar atordoado. A mulher se encostou no sofá e soltou um suspiro:

   -É verdade. Eu bem que mereci isso. Coitada da menina. – levantou – É melhor eu ir deitar.

   Saiu. Flavius colocou uma das mãos sobre a testa e disse:

   -Não sei o que pensar! O que a minha tia fez com a Natasha foi uma putaria feia! A Natasha tem todo o direito de estar espumando de raiva! E minha tia é muito doida mesmo! Aposto que estava dirigindo bêbada de novo! Mas ela é minha tia! Eu não posso aceitar que batam nela desse jeito!

   -Calma, Flavius. Você fez a coisa certa! Defendeu sua tia. No seu lugar eu faria a mesma coisa. Mas acho que você não pode ficar com raiva nem da Natasha nem do Fip por causa disso!

   -Fip... ele não tinha nada a ver com isso! A Natasha sim tinha o direito de ficar brava! Mas e ele? Ele só queria ver confusão! Desculpa Michel, mas não tem desculpa para o comportamento dele!

   -Ele é amigo da Natasha... sei lá.

   Ele cruzou os braços e se sentou no sofá:

   -Não sei... – soltou um suspiro – Ah, sei lá! Não é só isso. Fip anda muito esquisito! Tem hora que eu nem sei se ainda conheço ele! Ultimamente eu só vejo ele bêbado!

   -Isso é uma verdade. O que será que está acontecendo? Por que ele está assim?

   -Ele sempre foi um pouco assim. Mas andou piorando desde que Felipe sofreu o acidente.

   -Acidente uma ova. A gente sabe o que aconteceu mesmo!

   -É...

   -Eu acho que isso tudo mexeu muito com ele!

   -Eu não tinha pensado nisso... talvez ele precise de apoio...

   -Eu acho que ele precisa de você.

   Flavius me olhou com um olhar triste... quase desesperado:

   -Mas e eu? Com quem posso contar quando precisar?

   -Pode contar comigo. – eu disse.

   Ele me deu um abraço apertado, como se tentasse agradecer. Retribui. Estava feliz em poder ajuda-lo.

...

“Subi para o quarto mandando tudo à merda! É horrível ter de admitir quando você agiu feito um idiota! Entrei no meu quarto. Felipe estava no quarto dele me gritando. Minha vontade era ir lá e encher a cara dele de bolacha!  Menino chato da porra! Levantei possuído de ódio, abri a porta do quarto dele com um chute e gritei:

—Que você quer porra!?

Ele arregalou os olhos e disse quase se encolhendo dentro da cama:

—Que... queria... saber o que... tá acontecendo...

Ele tava tremendo de medo... TREMENDO! Vocês conseguem ter noção do quanto esse comportamento covarde me irrita? A vida inteira foi assim. Sempre recuando... principalmente quando eu mais precisei de sua coragem:

—O que está acontecendo é que você está quase se mijando nas calças porque eu chutei a porra dessa porta.

—Sim... mas o que aconteceu antes disso?

—Muita coisa aconteceu antes disso. Vou tentar resumir. Primeiro teve o big bang, que foi tipo uma grande explosão que gerou tudo. Ai os planetas foram se formando, dentre eles a terra. No começo ela era quente pra caralho e ninguém...

—Chega, Francis! – ele disse me interrompendo – Você sabe do que eu estou falando! Eu quero saber o que estava acontecendo lá embaixo! Eu ouvi uma briga!

—Está vendo, pequeno gafanhoto? A resposta estava dentro de você o tempo todo. Estava acontecendo uma briga.

Segurei a maçaneta da porta e fiz menção de fechá-la. Felipe soltou um grito:

—Espera, Francis! Para com isso! Que briga foi essa? O que aconteceu?

Eu olhei para sua perna enfaixada, para sua cara de bom moço e não pude me conter:

—Se você quer mesmo saber, vai lá embaixo olhar.

Fechei a porta e sai caminhando pelo corredor. Natasha estava subindo as escadas com um bife no rosto:

—Está doendo? – perguntei.

—Se quiser mesmo saber eu posso socar seu olho, ai você vai saber de qual que é.

—Já recebi muitos desses, mas obrigado por oferecer. Mas você deu uma boa lição nela, hein? Se sente melhor?

—Pra ser sincera sim. Agora posso dormir tranquila.

—Que bom. Então vai se deitar. Vou lá embaixo tomar mais alguma com o Michel.

—Michel não está.

—Como assim não está? Para onde ele foi?

—Que pergunta boba, Chico... Ele foi para a casa do Flavius, consolar ele!

Aquilo me acertou feito um tiro no rosto. Natasha soltou um sorriso bobo e disse:

—To brincando, ele só foi ajudar a levar a velha pra casa. Logo ele volta.

Mal terminei de ouvir o que ela dizia e já corri como um raio em direção à casa de Flavius. Se alguma coisa estivesse acontecendo entre os dois eu descobriria! Pegaria os dois em fragrante! Ia surrar tanto o Flavius que nem deus o reconheceria! Não! Não! Seria elegante, faria uma cara de nada e voltaria para casa. Depois mudaria de cidade e ele jamais teria noticias minhas de novo!  Sim, o desprezo seria a melhor arma! Não! Faria um escândalo! Gritaria, xingaria! Me mataria! Não! Mataria os dois! Morreria! Deixaria tudo como está...

Meu coração parecia querer saltar pelos olhos, eu corria o mais rápido que  um par de pernas podia correr! Quando avistei a casa parei de súbito. As luzes da sala estavam acesas, o portãozinho da frente estava aberto. Será mesmo que eu queria saber o que estava acontecendo ali? Hesitei por alguns minutos, fiquei ali, em frente ao portão, andando de um lado para o outro sem saber se deveria ou não entrar. Minhas mãos tremiam. Era uma situação realmente patética. Eu tinha chegado a um nível realmente muito ridículo. Não podia continuar vivendo assim! Tinha que dar um basta nessa história... mas como?

Como decidi que ainda não tinha sido ridículo o suficiente, optei por entrar devagarinho e me sentar perto da janela para ouvir sobre o que conversavam. Vê se pode uma coisa dessas! Mas não me julguem mal. Eu tinha total noção do quão demente era essa situação... doentio até... mas eu simplesmente não conseguia me controlar! Era mais forte que eu! Mais forte que minha honra! Aparentemente eles estavam só conversando. Talvez eu precisasse dar a eles algum tempo para que algo mais rolasse. Não dava pra ouvir tudo o que diziam, sei que conversavam da família do Michel e toda a merda que aconteceu.

Não era o tipo de conversa que parecia tender a terminar em sexo. Aparentemente não havia nenhum sinal de sedução em suas vozes. Seguia apenas uma entediante conversa sobre coisas que eu já sabia. Enquanto isso eu revirava meus dedos tentando conter a ansiedade. Sentado no chão, atrás de um arbusto... se isso não era o fundo do poço eu realmente não gostaria de descer mais!

Seguiram alguns minutos e a fala dos dois não mudava de tom! Foi quando eu me peguei completamente ansioso para que eles começassem logo a se pegar! Você compreende isso? Eu estava praticamente torcendo para que rolasse! Mesmo que fosse o que eu menos queria que acontecesse no mundo! Tem lógica uma coisa dessas? Não deveria eu ficar feliz em perceber que nada de anormal estava a acontecer e voltar para casa chicoteando as próprias costas por protagonizar tão patética cena? Talvez no fundo eu não me importasse tanto se acontecesse. Não era o fato de estar ou não a acontecer algo entre os dois que me importava. Era a dúvida! A dúvida estraçalhava meus ossos! Esse viver na corda bamba que pode eventualmente anunciar uma tragédia!

De fato, esperar por uma tragédia anunciada nos faz sofrer mais do que vivê-la. Lembro-me de quando meu tio (o que me deixou essa herança) foi diagnosticado com câncer. Sabíamos que ele não tinha a menor chance de sobreviver, e esperar por sua morte me causou um desgaste maior do que a morte em si. E o mesmo sentimento me acometia agora! É como se eu estivesse diante de um fato que poderia mudar para sempre minha vida! Dali para frente nada poderia continuar como antes! Dali para trás nada fazia mais sentido... mas o tal “dali” ainda não aconteceu. E você se vê em um limbo profano onde nem o presente, nem o passado e tampouco o futuro fazem sentido.

Eu sabia que hora ou outra Flavius e Michel ficariam. Se não acontecesse hoje, agora, podia ser pior! Era um sinal de que eu teria de esperar mais! Teria de conviver com essa dúvida, com esse estado de ansiedade por mais tempo! Era absurdo, mas eu estava mesmo torcendo para que acontecesse logo! Talvez assim eu me libertasse mais rápido dessa merda toda!  

Sequei o suor das mãos e decidi voltar minha atenção para eles. Agora que me parecia óbvio que nada aconteceria o incomodo por eu estar ali, de tocaia, crescia dentro de mim. Por que eu estava fazendo isso? Para que me prestar a esse papel? Seria isso amor ou doença? Um ser humano não pode desprezar seu amor próprio ao ponto de fazer isso... pode? Gostaria de conseguir me levantar e ir para casa. Mas estava congelado... petrificado. Com esse impasse entalado na minha garganta... quanto vale a pena prosseguir com uma relação assim?

Essa pergunta me fez gelar os pés. Por coincidência, eles falavam de mim:

—Estou mesmo preocupado com Fip. – Flavius disse – Posso ter sido um pouco duro com ele, mas como não ser? O que ele fez foi muito idiota!

Idiota é o que eu estou fazendo agora. Por sorte ele não sabe disso:

—Eu acho que vocês deveriam conversar sobre isso. Para que não fique mágoa entre vocês. Resolva logo essa situação, antes que a situação fique mais constrangedora.

Mais constrangedor que isso? Era impossível... mentira... era possível sim... se acaso eles me pegassem aqui! Levantei-me devagar. Eles conversavam sobre mim, sobre a nossa relação. Flavius e Michel preocupados com um meio de me fazer me sentir bem. É difícil de acreditar, mas talvez Flavius estivesse mesmo me amando! Soltei um sorriso quase bobo quando senti meu estomago formigar de felicidade. As tais borboletas no estomago que Natasha tanto fala! Estava elétrico, mas a eletricidade eu logo repreendi. Não era seguro sentir tanta felicidade por uma pessoa... talvez eu pudesse me decepcionar...

Bobagem! Que graça tem viver dentro da margem de segurança? Tentei chamar as borboletas de volta! Queria mais era me sentir elétrico, vivo! Se acaso desse merda no futuro, azar! O importante era viver isso o máximo possível.... enquanto era possível... Mas as borboletas, a eletricidade e a vida se ofendem fácil e não costumam voltar tão facilmente quando são repreendidas. Por isso não senti nada além de uma alegria forçada.... a felicidade não dá segundas chances... sorri.

Caminhei em direção à porta e toquei a campainha. Podia ter sido abandonado pela eletricidade vivida das borboletas, mas minha coragem (graças a deus) ainda estava lá. Flavius abriu a porta e me olhou com uma cara um tanto surpresa:

—Fip? Que você veio fazer aqui?

—Mil perdões. Eu fui um idiota.

Seu olhar sorriu. Sua expressão facial não mudou drasticamente, mas pude perceber com clareza que seu olhar sorriu. As borboletas trespassaram de leve por meu coração. Parece que finalmente tinha feito uma coisa certa.”

...

   Flavius estava sentado no chão às gargalhadas. Pierre e Rebeca sorriam descontraídos. Michel disse:

   -Eu juro que não fazia ideia de que isso tinha acontecido! Você sabia, Natasha?

   -Nem. Eu sabia que o Chico era ciumento, mas nunca imaginei que fosse assim.  Mas eu não tiro a razão dele, mesmo sendo ridículo é uma coisa que qualquer um faria.

   -Sim. – disse Flavius já contento a avalanche de risos – Coitado.  - “Ele era doente. Só agora eu vejo com clareza.”  pensou sentindo uma agulhada no peito.

   -Na verdade eu me sinto mal de ler uma coisa dessas. – Disse Rebeca – É como se estivéssemos invadindo um momento intimo dele. Não sei se ele gostaria que soubéssemos de algo assim.

   -Eu tenho certeza que tudo que está escrito nesse diário foi feito para ser lido. – disse Flavius – Certeza absoluta.

   -Você acha? – perguntou Pierre.

   -E o que escrevemos – o menino disse – sem desejar secretamente que alguém leia?

...

—Eu estou chateado com você!- disse Flavius a Fip. Estavam ambos sentados na calçada em frente à casa de Flavius - Você não podia ter feito isso! Eu sei que minha tia foi uma grande filha da puta com a Natasha! Eu sei que ela é alcoólatra, que ela é meio violenta, que faz um monte de merda!  Mas ela é minha tia! Foi ela quem me criou quando a minha mãe morreu! Minha avó, que está sempre na igreja e é um exemplo de moral, não quis ficar comigo! Meu pai nunca apareceu! Os outros irmãos da minha mãe NUNCA ligam pra perguntar se a gente precisa de alguma coisa! E, muitas vezes, a gente precisa! Mas a minha tia não! A Sofia, mesmo sendo pobre,  problemática e tudo... mesmo com tudo contra ela, ela esteve sempre ali. Do meu lado! Desde criança! Eu admiro ela demais por isso! Ela tinha uns vinte e poucos anos quando eu fiquei órfão. Não deve ser fácil ter uma criança pra criar... ainda mais quando nem é filho seu!

Fip sorriu sem graça. Nunca tinha enxergado a Sofia dessa forma. Em verdade estava acostumado a enxergar aos adultos como massas de carne burras que fracassaram na vida. Como um bando de pessoas vendidas, hipócritas e patéticas com as quais jamais gostaria de se parecer. Mas nunca pensou na situação sobre esse ponto de vista. Ficou a imaginar Sofia, poucos anos mais velha que ele a ganhar de presente da vida uma criança. Como seria a sua própria vida se, de súbito, ganhasse um filho para cuidar?

Quantos dos seus sonhos teria de abandonar? Isso não poderia torna-lo um idiota também? ... não... talvez “idiota” não fosse a palavra... “Triste”... triste, quem sabe? Talvez os adultos sejam mais tristes e sem esperança do que idiotas... ora! E não seria a tristeza uma grande e inevitável idiotice? Sacudiu a cabeça para afastar os pensamentos maus, olhou para Flavius e disse:

—Me sinto ainda mais idiota agora. Talvez ela não tenha merecido a surra que levou.

—Acho que quando analisamos de perto. – disse Flavius – Percebemos que ninguém merece sofrimento algum.


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