Sangue escrita por Salomé Abdala


Capítulo 42
Capítulo 40 - Festa dos amores.




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   -Não é que eu seja careta. – disse Felipe. – Mas eu simplesmente não vejo sentido em fazer isso!

Eu me esforçava para parecer sóbrio. Michel, Natasha, Fip e o tal de Artur estavam lá embaixo bebendo e se chapando loucamente, para o desespero de Felipe, que habitava já ha dois dias a casa de Fip:

—Francis é um bailarino profissional! Ele devia cuidar melhor do seu corpo! Digo, não é que eu seja contra vocês beberem e... bem, você sabe... mas é que... Flavius? Você está me ouvindo?

—Sim... claro...

Eu tentava parecer concentrado, mas havia algo de engraçado no jeito que ele falava. Na verdade eu já não estava mais em mim. Felipe ficava assim, todo nervosinho, sempre que alterávamos nossas consciências. Ele ficava enfurecido, visivelmente perturbado! Eu tentava conter a sua fúria e lhe prestar algum apoio. Mas nesse dia em especial minha paciência não estava muito... propicia a isso:

—Sabe, você já reparou que Fip tem uma enorme dificuldade em se manter sóbrio? Repare, repare! Não há um só dia que ele não beba, não fume ou faça qualquer outra coisa! Ele precisa de ajuda... sabe, de terapia!

Ele mexia as mãos de um jeito engraçado. Na verdade o tempo corria de um jeito engraçado. Era como se tudo fosse... pastoso... ou como se estivéssemos a velejar em alto mar... tudo era ilusão. Sorri e disse:

—Felipe, calma. Nem tudo precisa ser levado tão a sério, sabia?

—Mas isso é muito sério, Flavius. Escute, você é um rapaz jovem, é bonito...

Essa introdução me fazia lembrar os discursos da minha tia. Nunca compreendi totalmente o porquê que ser jovem e bonito deveria nos impedir de fazer qualquer coisa errada... ou de sermos tristes... inconformados... é como se ser jovem e bonito resumisse tudo! Obrigasse-nos a ser um bibelô, sempre bem agradecido por tudo que tem....

—Você não devia entrar nessas com o Francis. – ele continuou – Sabe, a vida do Francis parece muito interessante a princípio, mas ele só traz confusão.

—Então por que é que você vive correndo atrás dele mesmo?

Ele me olhou com os olhos arregalados. Ficou parado feito uma estátua de cera, sem reação. Estávamos no seu quarto, no andar de cima, sentados na cama. Minha atenção se dividia entre o embrulho no estômago causado pela sensação de ter dito algo que não devia e as risadas dos meninos lá embaixo... Gostaria de arrumar uma boa desculpa para descer, mas, com esse discurso de Felipe era difícil de assumir que, em verdade, eu preferia estar lá, envolto em “perdição” ao invés de aqui, ouvindo suas lamentações:

—Eu... não... corro atrás dele.... – ele respondeu. A essa altura eu nem me lembrava mais que ele estava aqui.

—Não... não foi bem o que eu quis dizer... digo...

—Tudo bem, Flavius, eu entendi. Desculpe... você tem razão.

Razão? Eu tinha razão em que? Tinha tanto álcool na minha cabeça que eu já nem sabia meu nome. Fiquei encarando o Felipe tentando lembrar do que falávamos:

—Você está com sono, não está? – ele disse sorrindo.

—Sono? Ah sim, estou sim. – menti. Na verdade estava chapado, mas não tinha como dizer isso a ele.

—Bem, é melhor dormirmos. – ele disse se ajeitando na cama, como que me convidando a me deitar com ele.

Não fiquei muito a vontade com aquela situação, por isso disse:

—Bem, antes eu preciso descer um pouco... Sabe como é, Fip vai ficar chateado se... se eu demorar demais.

—Ah. – ele disse num tom desapontado – Você vai lá... pra baixo?

Ele disse como se eu estivesse falando a Deus que queria descer ao inferno... talvez na cabeça dele fosse mais ou menos isso.  Mas o que eu podia fazer se minha vontade era de estar lá embaixo com meus amigos? Fiz uma cara um pouco triste e disse:

—Eu tenho que ir. Você sabe como o Fip é.

Ele acariciou meu rosto e disse:

—Queria tanto te proteger disso tudo!

—Comece protegendo a você mesmo.

Ele tirou instintivamente a mão do meu rosto, como se tivesse levado um soco no estomago:

—É melhor você descer, meu querido.

—Espero que durma bem. Se precisar de algo é só chamar.

Eu disse rezando internamente para que ele não precisasse de nada. Felipe me irritava às vezes... principalmente quando agia desse modo... a me tratar como se eu fosse uma borboleta de vidro perdida em um vendaval de granizo.... em parte porque eu sempre me senti assim, e, estranhamente, não gostava de ser visto desse modo.

Levantei tentando ao máximo não parecer tonto. A essa altura a chatice de Felipe já tinha me feito ficar sóbrio. Era hora de descer e beber mais... longe do olhar critico dele eu poderia me entregar um pouco à “perdição”...

...

“Eram mais ou menos cinco da tarde. Natasha e eu estávamos na cozinha a preparar alguns drinks. Havia no seu rosto, no seu sorriso, um brilho diferente, algo que a deixava mais bonita. Era porque o tal Artur viria para a nossa festinha essa noite! Senti uma pontada de ciúmes. Eu sei que jamais causaria nela essa sensação. Mas era bonito, de certa forma, ver seus olhos brilharem dessa maneira. Natasha de olhos sempre a carregar uma trapaça, uma ironia... como se já não esperasse nada da vida a não ser observar a desgraça toda e rir...

Ver nela esse brilho nítido, essa... esperança... era no mínimo catártico! Estava curioso para conhecer o rapaz! O que teria nele de tão especial para fazer com que uma pessoa como a Natasha se derretesse desse modo?  Ela estava com um sorriso frouxo, a morder um garfo enquanto preparava um petisco. Perdida em um tempo e espaço só dela! E que gostoso era ver isso de perto:

—Que horas ele chega?

Ela, como que acordando de um sonho, disse:

—Acho que as sete, por quê?

—E como vai fazer para que o tempo passe depressa até lá?

—Eu não sei. – ela disse se sentando ao meu lado – Parece que cada minuto leva cinco horas pra passar.

—Você está apaixonada, não é?

—Não sei se chega a tanto. Mas que é gostoso sentir esse comichão na barriga é.

—Eu sei. Aproveita enquanto pode. Essa é a fase mais gostosa, depois só vem merda...

—Falar nisso. – ela disse – Sua merda está chegando.

Flavius entrou na cozinha com uma bandeja nas mãos:

—Olá pessoal! Trouxe uma torta salgada pra hoje de noite! – ele me deu um selinho – Onde está o Felipe? Lá em cima?

—É... ele não quis descer.

Flavius deu de ombros e disse baixinho:

—Melhor assim. – Voltou ao seu tom de voz normal – Vou guardar a torta na geladeira.

Eu gostava desse clima de antes da festa. Dessa pequena ansiedade antes de uma celebração começar. Felipe, mais cedo,  fez cara feia e perguntou se íamos beber de novo. Eu ignorei. Estava na minha casa, não tinha obrigação de dar satisfações a ninguém:

—Onde está o Michel? – Flavius perguntou.

Todo o sangue do meu corpo gelou. Quer dizer que Flavius sentia a falta de Michel? Senti meu coração palpitar... era impossível viver assim! Com o ciúme a me assombrar desse modo! Toda e qualquer menção que Flavius fazia de Michel, todo olhar, toda interação entre eles me fazia tremer o espirito. Tudo que envolvia os dois me ameaçava!  

Sentia vontade de desaparecer com Michel da face da terra! Mas como se ele era um menino tão querido? Quando estávamos a sós (Michel e eu) sentia por ele o mais profundo carinho. Às vezes chegava a compartilhar da admiração que Flavius tinha por ele e quase chegava a desejar ter um romance com o rapaz. Mas quando Flavius estava por perto, tudo o que eu sentia pelo garoto era repúdio, ódio, uma vontade enorme de que ele não existisse!

—Ele está no jardim. – disse Natasha.

—Vou lá falar um oi. – disse Flavius e sumiu da minha vista!

Tentei ficar de olho nos dois! Sabia que eles podiam aproveitar qualquer segundo a sós para fazer alguma coisa. Sentia que, num único instante em que ficassem sozinhos poderiam se descobrir apaixonados um pelo outro. Era essa a merda que eu me referia! Esse não ser dono do que sente! Essa coisa de saber racionalmente que você está sendo estúpido e nada poder fazer para evitar! Sentir ciúme ser um merda passível de ser trocado por qualquer coisa! Onde se escondia minha autoconfiança nesses momentos?  Era agonizante! Natasha me deu um cutucão no ombro e disse:

—Pare de tentar controlar os dois. Não tente evitar o inevitável. Quanto mais você transformar isso num tabu, mais você vai sofrer e mais possível o romance dos dois você vai tornar.

—Mas como eu faço pra lidar com isso?

—Escuta, o Michel mora nessa casa! É impossível evitar que ele e Flavius se vejam! Além do mais, eles estão se tornando amigos! É natural! Você não pode evitar isso! Agora pense, ou você aprende a conviver com isso ou deve terminar com Flavius! Porque viver nessa corda bamba não dá!

Natasha tinha razão. Depois disso tentei me permitir relaxar. A paixão de Flavius por Michel estava a passar. Eles eram amigos e nada mais! Flavius havia escolhido ficar comigo! Ele me preferiu! Eu não precisava sentir tudo isso. Desliguei meu pensamento dos dois:

—Você está certa. Esse tipo de sentimento não cabe em mim. – Abri a tequila e bebi uma dose. – Aliás, eu nem sei o que cabe ou não em mim... nem sei mais quem eu sou.

—E quem sabe?

—Boa pergunta.”

...

No jardim, Michel observava as flores enquanto descascava algumas frutas. Flavius chegou por trás e disse ao pé de seu ouvido:

—Bom dia.

O menino deu um pequeno salto com o susto, o que fez com que Flavius soltasse uma risada:

—Que susto! Não vi você chegar.

—Eu fui sorrateiro. E então? Como você está?

—Bem, e você?

—Bem.

Flavius arrastou o pé no chão, como que para se distrair, Michel voltou às suas frutas:

—Bem... eu vou... voltar para... lá pra dentro.... – disse Flavius, meio que esperando que o garoto pedisse para que ele ficasse.

—Tudo bem, daqui a pouco eu vou para lá também.

Flavius fez o caminho de volta bem devagar, parando ora ou outra para observar o rapaz e buscar nele qualquer sinal de anseio por sua presença. Nada aconteceu. “Não seja tolo” – pensou – “Você tem um namorado agora, e ele está bem ali te esperando. Esqueça Michel de uma vez!”... olhou para trás... “É inútil... jamais o esquecerei”... caminhou lentamente em direção à cozinha, onde Fip o esperava triunfante.

Era estranha essa sensação. Flavius caminhava em direção a Fip como quem caminhava para a forca, embora soubesse que, por algum motivo, no fundo de seu coração, o amasse. Sentou-se ao lado do garoto que imediatamente o abraçou:

—Então, meu bem, como foi seu dia? – Fip perguntou.

Flavius não entendia o porquê, mas o abraço, o modo como Fip dizia “meu bem” e o fato de ter-lhe perguntado sobre seu dia... tudo o irritava. Causava certa náusea, um estranhamento improvável. Como era possível sentir tamanho repudio por alguém que ele amava tanto? Seria isso falta de amor ou uma característica de sua natureza?  Puxava de sua memória lembranças de sua avó, sempre a reclamar do marido, a dizer que isso ou aquilo a incomodava. Parecia natural aos casais se odiarem vez ou outra. .. mas... sim, seus avôs estavam casados há mais de quarenta anos... não fazia um mês que ele e Fip assumiram namoro... isso parecia fazer certa diferença.

—O de sempre, Fip. Fiz o de sempre. E Felipe? Esta dando trabalho?

—Até que não. Ele tem se comportado bem, não é Natasha?

A menina concordou com a cabeça. Fip acariciou sua nuca com os dedos, Flavius queria sair correndo! Era incomoda a sensação de forçada reciprocidade que esses carinhos lhe deixavam. Sentia-se uma má pessoa por não sentir naturalmente o impulso de ser carinhoso. Tinha seus dias. Não podia negar que havia momentos em que era puro carinho por Fip, mas em dias como hoje... especialmente quando Michel estava por perto .... tudo o que ele queria era distância. E qualquer toque, qualquer demonstração de afeto por parte de Fip o fazia se sentir invadido, coibido... como se estivesse a ser forçado... mas forçado por quem, se havia ele caminhado com as próprias pernas em direção ao rapaz?

“Quando estou só com Fip, sinto que gosto dele. Mas quando Michel está por perto... eu me lembro de tê-los visto na cama. E me lembrar de que isso aconteceu faz com que eu sinta ódio dos dois... não... dos dois não... de Fip... só do Fip... mas por quê? De qual dos dois eu realmente senti ciúmes naquele dia?”. Olhava para Fip e tudo que ele dizia, representava e transpirava lhe parecia mentiroso, perigoso, recheado de uma falsa moral. Colocava em xeque seu abraço, seus sentimentos, todo o amor que ele dizia sentir. Tudo parecia mentira. “Isso é rancor? É ódio? Ou é amor ferido? Eu deveria levar para frente uma relação assim?”

—Eu vou ao banheiro. – disse para ter folego. Talvez sozinho por um tempo tivesse espaço para organizar os sentimentos.

Fip ignorava a situação. Estava tão aliviado pelo garoto ter voltado rápido do jardim que mal conseguia pensar em outra coisa. Sentia, de certo modo, seu amor por Flavius crescer nesse instante... julgava que o garoto aproveitaria qualquer oportunidade a sós com Michel para flertar com ele, mas não... “Talvez esse fosse o tipo de coisa que eu faria... Flavius é diferente de mim. Eu é quem sou um safado sem coração.” Pensou ao se lembrar de como quase havia transado com Felipe na noite anterior  e no fato de ter pensado em procurar Michel logo em seguida...

 “O tesão que eu sinto por eles não muda o amor que tenho por Flavius. Então por quê a possibilidade de Flavius sentir tesão por Michel me incomoda tanto? Talvez porque não seja só tesão. Flavius tem sentimentos por Michel e, nesse caso, sexo pode mudar tudo... não seria uma simples foda, poderia ser o estopim para uma grande paixão... É!” – pensou triunfante por ter obtido uma resposta ao seu contento – “Eu não me incomodaria se Flavius transasse com Felipe, por exemplo... Se ele não estivesse todo enfaixado... bem que poderíamos ficar juntos... os três...” Separou alguns minutos em sua mente para degustar a imaginação. Estava especialmente aceso nessa tarde, precisava de algum alívio para sua... tensão...

Natasha olhava compulsivamente para o relógio. O tempo insistia em não passar! Por que não tinha marcado mais cedo? Eles poderiam estar juntos agora! Desde o seu primeiro encontro que não se  viam. Falaram-se no telefone apenas. E ele lhe pareceu tão distante... “Talvez porque homens, no geral, não gostem de falar ao telefone.” Pensou rapidamente.  Era preciso paciência nesse momento inicial. Tudo podia parecer uma rejeição! Não queria ser uma neurótica desvairada a exigir do menino total amor! Até porque ele vivia em outra cidade e esse pequeno romance não tinha grandes chances de caminhar pra frente. “É só um flerte, um pequeno flerte. Como um romance bobo de verão.” Repetia a si mesma. Mais uma vez seu olhar recaiu sobre o relógio, menos de um minuto havia se passado. Talvez a noite levasse uma eternidade para chegar.

...

...

...

   Eram seis e quarenta quando ele chegou. Eu estava terminando de me arrumar. Chico tava me ajudando com a maquiagem quando a campainha tocou:

—Ai meu deus! É ele, Chico! Que que eu faço agora?

—Calma, vamos terminar de te arrumar!

—Mas se ele perceber que eu to me arrumando toda pra receber ele, ele vai pensar que eu to muito afim!

—Mas você não está?

—To, mas não é pra ficar na cara!

—Natasha, ele chegou vinte minutos antes da hora. Você não acha que ele está dando muito na cara também?

Eu não tinha pensado por esse lado:

—Você acha?

—Claro, criatura! Se ele veio tão antes é porque não se aguentava de ansiedade!

Minha mão estava gelada. Eu tremia que nem vara verde. Chico terminou um ultimo retoque e disse:

—Agora vai! Desce como se tivesse aqui em cima vendo televisão.

Desci. Chico foi comigo. Artur estava na sala conversando com Michel. Ele tava com uma camiseta meio largona, bermudão e tênis. Tinha nos braços umas pulseiras de couro e o cabelo meio despenteado. A barba por fazer e aquele olhar despretensioso de quem está relaxado e a vontade, mesmo num ambiente totalmente novo. Soltou um sorriso quando me viu descendo e disse:

—Você está linda essa noite.

—Eu sei. Geralmente eu fico linda todas as noites, mas nessa parece que tem algo de especial.

—Sim, você está sóbria.

Ai deus, esse senso de humor sacana que eu tanto gosto:

—Por enquanto.... – demorei o olhar no olho dele, ele correspondeu, soltei um sorriso involuntário – Chico, vamos buscar as bebidas?

Chico fez um sinal pra mim falar baixo, Felipe estava no quarto, ao lado da escada. Ele tava emburrado porque íamos beber. Eu dei de ombros, o fígado é meu e eu fodo ele o quanto quiser:

—Vamos lá para os fundos. – disse o Michel.

Michel tentava disfarçar os olhares que lançava para o Artur, mas eu percebia todos. Era engraçado de perceber. Eu não me incomodava. Não sei como Artur encarava isso. Não me importava. Fomos até os fundos. Chico tinha preparado uma decoraçãozinha no jardim, o aparelho de som estava lá e o Chico começou a dançar uma música bonita. Eu sorri meio abobalhada. Era engraçado imaginar o Artur no meio daquele povo doido.

É estranho mas, só agora, com a presença de um estranho, é que eu tinha percebido o quanto éramos esquisitos: o Chico dançando no meio do jardim, Felipe todo quebrado no andar de cima resmungando que nem uma tia velha, Flavius girando sem parar em torno da fonte e Michel comendo meu pretendente com os olhos, mas tentando disfarçar. E eu, no meio dessa confusão, no meio desses quase desconhecidos com quem fui morar de uma hora pra outra! Que loucura isso!

E Artur parecia perceber bem o não convencionalismo disso tudo e se ria entretido com a situação:

—Essa é minha casa. – eu disse.

—Uma pessoa como você só poderia morar numa casa assim.

—Está falando que eu sou esquisita?

—Estou.

Ele disse com uma tranquilidade tão bonita. Com uma naturalidade tocante. Sorri:

—Você também não parece muito normal.

—Eu não sou anormal, sou amoral.

—Andei reparando.

—E você? Não dança com eles?

—Não com você assistindo.

—Qual deles é o Chico?

— O que dança melhor.

—Olha que o meu conceito de dançar bem pode ser diferente do seu.

—Bocó.

—Palerma.

Eu ri. Adorava esses joguinhos de mútua implicância. Era bom ter alguém que não se incomodava com isso por perto. Dei um pequeno soco no seu braço e, pra minha surpresa ele retribuiu. Gostei do fato de ele não se incomodar por eu ser uma garota e me bater de volta mesmo assim. O filho da puta estava ganhando pontos comigo:

—Natasha! Você não vem dançar com a gente? – Flavius gritou.

—Nem morta. – eu disse.

—Ela vai sim. -  o Artur disse me dando um empurrão nas costas.

Michel aproveitou a deixa e me puxou pra roda, logo estávamos todos dançando. Flavius pegou a mangueira e ligou. Ficou jogando jatos de agua na gente. Não demorou até que estivéssemos todos ensopados e exaustos. Artur ria de tudo, como se fosse uma criança. Peguei a mangueira e joguei um jato de água na cara dele. Ele pulou em cima de mim e começamos a lutar pelo domínio da mangueira. Chico, Flavius e Michel foram saindo de fininho. Quando percebemos estávamos a sós:

—Eu me rendo! Eu me rendo! – Ele gritou enquanto eu jogava água na cara dele.

—Então diga, quem é a rainha das águas?

—É você!

Desliguei a mangueira:

—Bom que você saiba seu lugar, subalterno.

Eu fiz menção de me levantar, mas ele me segurou pela cintura e me puxou para um beijo.

...

   As onze e trinta e dois, Flavius subiu até o quarto de Felipe, onde tiveram o diálogo descrito no começo do capítulo.  Michel e Fip conversavam na sala... bem, conversavam é um modo de dizer pois, visto o estado de embriagues de ambos, é mais correto dizer que eles mantinham monólogos em conjunto. Pois nenhum dos dois mantinha de fato um diálogo, cada um falava sobre um assunto distinto, embora  esperassem sua vez de falar. Flavius descia as escadas com dificuldade. Fip e Michel faziam uma figura bonita juntos. Ambos deitados no carpete, sem camisa, olhando para o teto... Flavius teve um vislumbre de como podiam formar um belo casal... aqueles dois.

Ficou a observa-los e imaginá-los juntos. Parecia agora uma figura interessante, totalmente isolada do ciúme e mágoa que o assombravam mais cedo. “É engraçado como podemos sentir várias coisas distintas no decorrer do mesmo dia... cada dia é uma vida inteira... uma vida muito perigosa...” pensou enquanto se atirava no carpete:

—Sobre o que falam?

—Não sei. – disse Michel.

Fip riu:

—Pior que eu também não.

—Então vamos falar de sexo. – Flavius disse.

—Opa! Eu to precisando disso ae. – disse Michel.

—Eu também!

—Então por que ainda estamos vestidos? – disse Flavius.

Fip hesitou por alguns segundos. Michel, sentindo sua hesitação, esperou que ele se decidisse. Flavius tirou a camisa:

—Ah, vamos lá gente. Vai dizer que vocês não querem?

  Fip deu de ombros: “Se é pra Flavius transar com Michel, melhor que eu esteja perto”. Entrelaçaram-se, primeiro num beijo triplo, depois, paulatinamente, foram perdendo peça a peça das roupas que separavam o ardor de suas peles.

...

Enrolados em um cobertor, Artur e eu estávamos sentados na escadaria que leva para o jardim dos fundos, conversando depois do banho, ainda úmidos. Tínhamos feito sexo ali mesmo , no meio da lama, depois bebemos um pouco e tomamos um banho juntos. Agora estávamos ali, encostados um ao outro, olhando o luar. Num daqueles momentos que o tempo parece gelatina, oscilando sem sair do lugar:

—Uma vez eu vi um filme. – eu disse – Que depois de mortas, as pessoas escolhiam um momento, uma cena das suas vidas, para que esse fosse o único momento que eles se lembrariam pelo resto da eternidade. E eu sempre fiquei pensando... eu gostaria de levar comigo algum momento parecido com esse.

 Ele ficou tenso, mantinha os olhos fixos na parede:

—Natasha.

—Hm...

—Eu preciso te dizer uma coisa.

—Não diga agora, por favor.

—Eu preciso.

—Olha, não pira não. Eu disse isso não porque estou morrendo de amores com você e fazendo planos de ter filhos e bla bla bla. É só porque tá um momento gostoso. Não interprete como se eu tivesse te pedindo em casamento.

Ele riu:

—Você é incrível.

—Eu sou. Agora para de tentar estragar meu momento. Deixa eu fechar os olhos e tentar imaginar que você é um cara muito massa.

—Você é perigosa.

—E estou armada.

—É serio. Eu digo, você é uma pessoa perigosa de se envolver.

—É sério, eu tenho uma faca no bolso, se você continuar cagando no meu momento mágico eu te furo.

Ele riu:

—Está vendo? Você é uma garota rara. Eu poderia mil vezes me apaixonar por você.

—Uma só me seria o suficiente.

—E já seria perigoso demais.

—Perigoso é viver na inercia, evitando as fortes emoções.

—Sempre pensei que viver assim fosse mais cômodo.

—Sim, mas você corre o grande risco de um dia olhar pra trás e não ter nada pra ver.

Ele ficou tenso de novo. Eu sabia que dali vinha merda, mas não queria escutar agora:

—Natasha.

—Esse é meu nome. Fala mais umas três vezes... quem sabe eu não desapareço?

—É serio.

—Comigo nunca é serio.

—Eu não posso continuar me apaixonando por você. E nem posso permitir que você continue se apaixonando por mim.

—Eu sei querido. Você mora longe, depois que acabarem suas férias nós mal vamos nos ver. Uma relação à distância nunca vai funcionar direito. Relaxa, eu já sei disso tudo. Estou prevenida e vacinada. Agora me deixa ficar aqui quietinha, vai...vamos curtir isso enquanto estamos juntos.

Ele continuou tenso. Foi quando eu senti que devia ficar tensa também:

—Não é só isso.

Levantei minha cabeça. Meu coração começou a bater como se tivesse tentando rasgar minhas costelas pra pular pra fora. Fechei os olhos e disse não querendo dizer:

—Você tem uma namorada, não é?

Ele fez um sinal lento e afirmativo com a cabeça. Eu não me movi, não o faria nem se quisesse. Meu corpo nesse instante parecia feito de pedra. Uma grande pedra de gelo esperando o momento de despedaçar. Eu sabia que, de alguma forma, não ficaríamos juntos. Tinha em mim a certeza de que não deveria me apegar demais a esse menino... mas a distância era uma coisa com a qual eu podia lidar tranquilamente... mas outra? Outra mulher? Isso tornava tudo um tanto diferente:

—Sabe, eu estava meio bêbado aquele dia que nos conhecemos. – Claro, eles sempre usam a desculpa da bebida... de repente ele se tornou um babaca igual aos outros – Foi uma coisa que rolou... meio que no impulso.

Sim, e ele, hoje, mesmo sóbrio, veio até aqui.

—Mas depois eu fui vendo que você era uma garota incrível, que eu não podia deixar de conhecer! – e se sua namorada não é tão incrível assim, por que ainda está com ela? – Eu não pude evitar te conhecer melhor. – merda!merda!merda!merda! – Eu precisava vir aqui hoje! Desde aquele dia eu não consigo parar de pensar em você! – desgraça!desgraça!desgraça!  – Mas eu não posso levar isso à diante. Não sem te contar...

Ele olhou pra mim. Eu parecia tranquila como um lago na primavera. Olhei pra ele e disse:

—Sério meu, relaxa. Tá tudo bem. – seu cretino filho de uma puta, desgraçado de uma figa – Sei lá, o que a gente teve foi só um lance, tipo, eu curti muito ter conhecido você, mas como eu disse, eu nunca botei fé de que isso ia pra frente. – canalha! Cretino! Desgraçado.

—Mas ainda assim, foi meio cafajeste da minha parte.

FOI MESMO:

—Que isso... você não tinha nenhuma obrigação comigo. Com a sua namorada talvez... mas aí é um problema seu com ela. Pra mim, até esse momento, você não devia nenhuma explicação. Éramos desconhecidos, né?  - Espero não te ver nunca mais! – Mas, sei lá. Achei legal o lance de ter me contado a tempo.

Na verdade não foi a tempo... mas acho que não há tempo para isso:

—Desculpa, eu ... eu ferrei com tudo, né?

FERROU:

—Não... relaxa – eu disse me levantando, fingindo uma calma que não me pertencia – Você só não precisava ter dito isso agora. Podia ter deixado eu dormir bem, pelo menos. Mas tudo bem. É melhor você ir embora.

Ele segurou minha mão e me puxou de volta:

—Eu quero que você saiba que, se eu não tivesse... bem.... uma namorada, eu gostaria muito de me apaixonar por você.

—Uau! Que demais, hein?

—Natasha, sério, me desculpa.

—Cara, para com isso! Eu já te falei você não me deve nada. Vai pedir desculpa pra sua namorada.

—Eu não quero que você fique com raiva de mim.

Eu JÁ estou com raiva de você!

—Eu não estou com raiva de você. – menti – Só estou, sei lá, surpresa... decepcionada talvez. Eu tava curtindo você.

—Eu também estava... estou curtindo você. Mas não acho justo você continuar curtindo sem saber.

—E não era mesmo justo. Mas agora que eu sei, o que você quer que eu faça? Continue ficando com você até você ir embora ou não aparecer mais?

—Eu não sei. É você quem sabe.

—Eu que sei o cacete! Eu sou solteira, não tenho nada que me impeça de ficar com ninguém. O compromisso é seu, é você quem deve saber o quanto seu namoro vale pra você.

—Não é questão disso... é que...

—Ah, Artur, na boa... esquece isso. Vamos embora.

—É isso mesmo que você quer? Que eu vá embora?

—Não. – eu disse num rompante de sinceridade.

—Então como fazemos?

—Que se foda isso tudo, temos pouco tempo pra ficar juntos.

Pulei no colo dele e nos beijamos. Foda-se tudo por enquanto.... só por enquanto....


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