Sangue escrita por Salomé Abdala


Capítulo 40
Capítulo 38 – O dia em que conheci Fip.


Notas iniciais do capítulo

Para quem tiver curiosidade, a música evidências, composta por Ana Gabriel é essa:
http://www.youtube.com/watch?v=L6juIj22WT4
Basicamente um hino brega que Fip jogou na cara de seus parentes.



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Meu nome era Paulo César Mendonça, eu geralmente não me sinto a vontade pra dizer esse nome a ninguém, mas não sei, me senti a vontade para dizer agora. Minha mãe uma viúva que há menos de um ano havia se casado com Fábio Perez, um conhecido empresário local. Ela também tinha suas posses, herdadas da fortuna que meu pai, tenente do exército nos havia deixado. Era ano novo, momento em que, tradicionalmente, os Perez festejavam com pompa e glória. Tediosas festas familiares que duravam dias em que ficávamos mal acomodados na casa de parentes que mal conhecíamos. Eramos obrigados a nos inturmar com primos que jamais havíamos visto e a rir das piadas idiotas que os adultos contavam quando estavam bêbados...

Estávamos no jardim da mansão do velho Francisco. Era uma tarde quente, daquelas em que as moscas repousam sobre as sobras de almoço enquanto tias velhas conversam, ignorando o ranço e suor que explode de suas peles. Daquelas de cheiro ocre em que todos comem demais e depois tentam miseravelmente acomodar seus corpos naquelas cadeiras horrendas de almoço enquanto escutam histórias exageradas de sucessos inventados de seus parentes distantes e simulam contentamento em ouvi-las.

Por se tratar do primeiro dia do ano, o branco e azul celeste predominavam nos vestuários, o que diminuía ainda mais meu interesse no evento. Era um rapaz de 16 anos, entediado e farto dessas conversas, dessa família que, na verdade, não era minha e da obrigação de parecer contente. Estava sentado à mesa, de braços cruzados enquanto minha mãe reclamava da minha cara feia e insistia para que eu cantasse, ao menos uma canção, no “divertidíssimo” karaokê:

—Você é jovem, aproveite! – disse uma desconhecida gorda, com um sorriso malicioso.

Eu tentava entender o que havia de proveitoso em cantar para uma corja de desconhecidos e por que minha juventude seria pretexto para fazê-lo. Limitei-me a dizer nada, dei de ombros e voltei a contar os minutos para o triufante instante de ir embora. Foi quando o costumeiro murmúrio das tagarelas, o bater dos garfos nas porcelanas e as risadas frouxas dos homens velhos parou e tudo o que se podia ouvir era a microfonia chata da caixa de som e a risada descontrolada de um rapaz que falava ao microfone:

—Agora presta atenção negada! Porque Francisco terceiro vai cantar e, como todos Franciscos da família, eu não gosto de ser contrariado!

O menino estava visivelmente embriagado, tinha um olho roxo e um machucado avermelhado na mão direita:

—Eu vou cantar uma música.... em espanhol... porque em português não tem graça... todo mundo entende... por isso quis cantar em espanhol... porque metade de vocês não vai entender, mas a maioria vai sorrir com cara de paisagem e fingir que tá entendendo tudo... porque gente rica e viajada tem que fingir que manja das coisas...né? Então... solta logo essa porra aí!

E fez um sinal para o rapaz da cabine. Eu segurei o riso quando vi a cara de “alguém impeça esse menino” que estava estampada na cara de todos os presentes. Mas não pude conter o riso quando os primeiros acordes da canção começaram a soar. Tratava-se da versão espanhola da música ”evidências”:

— Cuando digo que no quiero amarte más. Es porque te amo. Cuando digo que no quiero más de ti, es porque te quiero... – ele começou sorrindo, provavelmente consiente do quão ridículo estava sendo.

Todos soltaram um riso frouxo quando a música começou e o clima da festa, pela primeira vez, pareceu-se com uma comemoração de verdade. Até mesmo o velho Francisco, sempre carrancudo, soltou um sorriso e disse:

—Esse menino... apronta cada uma...

E o aplaudiu. Ouvindo os aplausos, o menino se virou para a plateia, com aquele seu sorriso encantador no rosto, e começou a nos encarar, um a um. Quando seu olhar estacionou no olhar de um outro rapaz, bem alinhadinho, muito parecido com ele, mas um pouco mais franzino e assustado... e seu sorriso murchou.

E o tom amigável e festivo do momento foi se tornando, aos poucos, uma constrangedora saia justa, à medida que o nariz de Fip ia ficando avermelhado e seus olhos se enchiam de água. Não demorou muito para que ele estivesse cantando a plenos pulmões, com um sentimento tão intenso que chegava a nos sufocar:

— Es una locura de dicer que no te quiero. Evitar las aparencias, ocultando evidencias.
Mas porque seguir fingiendo si no puedo engañar mi corazon...Yo sé que te amo...

A cena toda se tornou grotesca e constrangedora. Estava evidente a todos que a música se dirigia ao rapaz que, agora, tentava desviar seu olhar também repleto de lágrimas. Todos tentavam se endireitar nas cadeiras enquanto se entreolhavam como que esperando que alguém interrompesse aquele show burlesco:

—Ya no mas mentiras si me muero de deseos...Yo te quiero mas que todo. Necesito de tus besos. Le haces falta a mis dias, mas sin ti no sé que hacer que hacer sin ti. Yo quiero que conozcas mas de mi!

Havia tanta dor e honestidade em seu jeito de cantar que ninguém foi capaz de se mover até os acordes finais da canção, quando Fip soltou um grito verdadeiramente aterrorisante e jogou violentamente o microfone no chão. As pessoas, atônitas, ensaiaram um breve aplauso, sem saber se deveriam fazê-lo ou não. Eu, pouco me importando com tudo aquilo, levantei-me e aplaudi de pé ( sozinho, obviamente) até minha mãe me puxar pelo braço e me obrigar a sentar:

—Vocês devem estar se perguntando por que eu quebrei o microfone. – ele disse – Foi pra segurar o impulso de enfiar ele bem no meio do rabo de cada um de vocês! – ele disse gritando enquanto virava a mesa principal do almoço e saia correndo pelo jardim.

Foi quando seu pai se levantou da mesa e saiu correndo atrás dele. Depois disso não tive notícias por cerca de três dias...

 

...

—Desculpe. – disse Flavius – Preciso ir ao banheiro.

Correu ao banheiro onde, depois de fechar a porta, pôde se entregar as lágrimas. A visão de um Fip que ele não conhecia, trouxe-lhe a tona uma saudade incontrolável e uma descomunal necessidade de sua presença. Deitou-se no chão em posição fetal e, mordendo uma toalha para abafar o som, deixou-se chorar um pouco.


...

Passados três dias, encontrei no jardim o menino Felipe, a quem Fip havia dedicado indiretamente a sua canção. Perguntei a ele se podia me sentar. Ele disse que sim:

—Você é quem? – ele perguntou.

—Meu nome é Paulo. – disse – Sou filho da nova esposa do seu tio Fábio.

—Ah, sim... o tio Fábio.

—E você?

—Meu nome é Felipe.

—Prazer.

—Prazer... então? Vocês ficam aqui até que dia?

—Até sexta, penso eu...

Ficamos em silêncio:

—Posso fazer uma pergunta indiscreta? – eu disse.

—Todo mundo tem feito perguntas indiscretas ultimamente.

—Onde está aquele seu primo que cantou na festa? – ele me olhou com uma cara tensa de quem não sabia o que dizer. Então decidi completar a pergunta na tentativa de quebrar o gelo – Sabe... eu achei ele... muito gato. Não queria ir embora sem conhecê-lo.

Ele corou, mas logo entendeu que estava entre amigos e se deixou realaxar um pouco:

—O Francisco? Ele está no hospital.

—No hospital?

—Depois daquele papelão da festa, meu tio deu uma surra nele. – colocou as mãos no rosto, como que tentando se esconder do horror que dizia – Ah, Francis... por que ele é tão louco? Eu fico me perguntando, por que ele faz essas coisas? Ele quase morreu dessa vez! Ele não para nunca! Parece que quer se destruir!

—Ele sempre faz isso?

—Sempre! Sempre!

—E vocês....?

—Não! – ele disse de impulso – Não! – me encarou por alguns segundos – Sim... nós... namoramos sim... namorávamos... sei lá.

—Desculpe, eu...

—Não! Tudo bem... digo... acho que todo mundo nessa festa, de um jeito ou de outro, já passou pelas mãos do Francis. Até esses que se fazem de machinhos... sei lá o que ele tem... todo mundo derrete na mão dele.

Senti que esse assunto o pertubava mais que o anterior, por isso, decidi voltar atrás:

—E como ele está agora?

—Consiente. Digo, quase bem. Queria vê-lo... mas é difícil sair daqui sem... levantar suspeitas. Todos os motoristas estão proibidos de me levar até ele.

—Não se sairmos juntos! A gente diz que vai pra praia. Vamos com o motorista da minha mãe. Aposto que as ordens não chegaram até ele.

—Você faria isso por mim?

—Eu já estou fazendo.

E fomos, algumas horas mais tarde. Chegando ao hospital, deparei-me com um menino inchado, destruído, praticamente todo estourado. Seja lá o que esses caras chamavam de “surra” estava muito além do que havia acontecido aquele rapaz. Quando abrimos a porta ele soltou um sorriso frouxo:

—Felipe! Você veio!

—Francis... – ele disse correndo até a cama.

Eu fiquei ali, ainda meio chocado com o que estava vendo:

—E esse aí? Quem é?

—Eu me chamo Paulo. Minha mãe se casou com o tio Fábio.

—Fábio? Aquele filho de uma puta. Espero que morra sufocado com uma espinha de peixe.

—Eu também. – disse.

Ele riu:

—Vê, Felipe, esse aí me entende. Qual é seu nome mesmo? Dessa vez vou prestar atenção.

—É Paulo.

—Paulo! Prazer, Francisco. E você, meu bem? Como está? – disse para Felipe.

—Preocupado e com raiva de você! Por que você fez aquilo? Queria morrer?

—Queria. De que me vale viver daquele jeito! Enjaulado que nem um bicho, sem poder dizer nem o que penso!

—Francis! Cuidado, se continuar assim, ainda te matam!

—Pois me fariam um favor! Agora chega disso, não quero chororo. – ele disse tentando evitar, inutilmente, que as próprias lágrimas viessem-lhe ao rosto – É que eu não aguento o que estão fazendo com a gente. Isso de nos obrigar a nos separar. E depois ficam lá... festejando... como se porra nenhuma estivesse acontecendo! Pro inferno todos eles! Porcos! Pati... – parou para gemer de dor – Patifes! Eu tinha que esfregar... tinha que esfregar na cara deles!

—E olha o que te rendeu!

—Que se foda! Se ele me bateu assim é porque alguma coisa certa eu fiz! Se não, ele não teria ficado tão irritado.

—É... você cantou bem, pelo menos. – eu disse.

Ele riu novamente, o que fez com que Felipe me fulminasse com os olhos:

—Isso não tem graça, gente! O Francis quase morreu!

—Já levei piores.

—Isso tudo é uma brincadeira pra você, não é? Mas e eu? Você não pensa em mim? – ele disse chorando – Você acha que é fácil te ver desse jeito? Acha que é fácil te ver assim?

—Para com isso, meu bem. Isso aqui vai passar. E é claro que eu penso em você. É por nós que eu faço isso tudo. Pra gente ficar junto um dia.

—Pra gente ficar junto? Você só pode estar brincando! Você sabe o que fez? Minha mãe vai me mandar para o Sul! Por causa do papelão que você fez! Ela quer evitar que a gente passe mais vergonha! E vai me mandar para lá, para morar com a irmã dela!

—E você não vai, não é?

—Como que eu não vou? Que escolha eu tenho, Francis?

—A escolha de dizer não, porra!

—Pra que? Pra ficar assim, que nem você? Pra depois eles me mandarem de maca para lá? Que ilusão é essa que você tem? Olha pra nossa família, Francis! Eles são animais, sempre vão ser! Não adianta lutar contra eles!

—Isso significa que você vai?

—Que escolha eu tenho?

—Sai daqui.

—Francis, me entenda!

—Sai daqui, Felipe! Sai daqui!

—Francis, eu não tenho...

—Se você não tem escolha, não tem o que fazer aqui! Vai embora! Corre pra saia da sua mãe! Lá você está seguro, não é? Então corre pra lá! Vai antes que eu arranque essa aparelhagem toda e te rasgue inteiro no dente!

—Francis...

—SAAAAI!

Saimos. Depois disso não o vi mais... não naquele ano. Voltei para casa com sua atitude encravada no peito. Sua coragem muito me inspirou a ter coragem de me tornar quem me tornei. Naquele ano assumi para minha mãe minha transexualidade e, claro, recebi todas as replesárias e dramas que esperava. Não cheguei a apanhar, como foi o caso de Fip, mas passei por todo aquele drama familiar que vocês conhecem bem.

No outro ano novo, voltamos à mansão do velho Francisco e tudo parecia muito mudado. Felipe estava na Suiça, sua mãe dizia que ele não viria para a festa, pois estava esquiando “com a família da namorada” nos Alpes. Fip estava mudado, menos jovial, tinha um ar mais sagaz, agressivo, ácido. Ele e seu pai mal se falavam, e Fip parecia muito protegido pela figura de seu tio, já demonstrando avançado estado de câncer:

—Você parece diferente. – eu disse me aproximando.

—Você também, até rebola mais os quadris. Andou usando, foi?

—Poderia dizer que sim.

—Mal vejo a hora de descobrir como você os usa. – ele disse me olhando com um olhar sacana.

—Você não tem um namorado?

—Você não vê o estado em que ele está? – disse apontando para o tio – Mal se aguenta nas pernas. Não aguenta mais abrir as pernas para mim.

—Ele? Seu tio? Pensei que você...

—Não. Eu estou brincando. Ele também é gay, sim. E passou por tudo que eu passo nessa família, por isso me protege. Mas daí todo mundo acha que temos um caso. Eu deixo eles pensarem. Se irrita eles, eu deixo que pensem.

—Isso parece baixo.

—Baixo é viver perto dessa gente. Ele bem sabe disso. Tem tanto nojo deles quanto eu. Mas nunca teve a coragem que tenho de enfrenta-los tão diretamente. Mas prometeu ter na hora da morte, vai contrariar a todos e deixar tudo pra mim. Disse que vai passar tudo pro meu nome ainda em vida, que é pra ninguém poder reclamar. E eu vou me fartar de ganhar dinheiro, vou mandar todos eles a merda! Se isso é ser baixo, eu o sou com muito orgulho! E você, se tem amor por si mesmo, voa pra longe desse povo o quanto antes!

—É meu maior sonho!

—Então vou te ajudar. Quando receber minha herança te mando uma grana pra você fugir também.

E rimos enquanto fazíamos planos do que faríamos com todo aquele dinheiro. Óbvio que jamais acreditei que aquilo tudo fosse real, até que Fip de fato depositasse o dinheiro na minha conta: “Estou pagando por seus peitos, que é para depois usá-los. Quero ver tu se tornar a mulher que existe dentro de você.” Ele disse na carta. No mesmo mês viajei para a Europa... eu e Fip tornamos a nos ver apenas anos mais tarde... mas isso não vem ao caso hoje... não agora...


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