Sangue escrita por Salomé Abdala


Capítulo 37
Capítulo 35 – Eu não estou só.




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Acordei no dia seguinte desconcertado. Natasha e Artur ainda dormiam abraçados, ambos nus, a respirar com total tranquilidade. Estranho pensar no que ocorreu ontem! Nunca me imaginei participando de algo assim! Digo, não dessa maneira! Artur e eu mal nos tocamos, ele, claramente, preferia o corpo feminino de Natasha e minha presença não era notada por ele com desejo. Estavamos a “dividi-la, como camaradas”. Abraçou-me ora ou outra com um sorriso malandro no rosto, cedendo minha vez de penetrar entre as pernas da garota. Mas o desejo que eu senti era por ele! Jamais havia sentido algo tão intenso antes! Seu olhar, seu meio sorriso, braços fortes, seu falo enorme. Quanta inveja senti de Natasha por ser seu objeto de desejo, por ser penetrada por ele!

Fiquei ali a observar seu corpo nu abraçado ao de Natasha e não conseguia conter a excitação. Meu corpo tremia de vontade de tê-lo, de erguer o braço e tocar-lhe o membro. Como reagiria ele se eu demonstrasse qualquer atração desse tipo? Na noite anterior tentei disfarçar ao máximo o meu interesse, mas hoje, agora, não conseguia mais fazê-lo. Com dificuldade controlei o impulso de tocá-lo, mas não consegui conter o impulso de me masturbar enquanto o via nu. Não sabia quando, e se, chegaria a acontecer de novo, por isso sentia, com todo meu corpo, que deveria me aporveitar ao maximo da situação.

Que estranha sensação essa! Estava totalmente tomado pelo desejo! De uma maneira que jamais me havia ocorrido. Não conseguia raciocinar, formar frases ou completar pensamentos, até mesmo minhas fantasias se atropelavam, jorrando, uma atrás da outra, em minha mente que, vazia de razão, deixava que o corpo tomasse total controle animal da situação. Engraçado sentir isso, Artur tinha um corpo bonito, sim, isso não se pode negar, mas não era o tipo de garoto que me chama a atenção. Digo, não ha uma razão lógica para tamanho desejo! Eu não conseguia entender o por que de tudo isso, mas também não me importava, estava a acontecer e tudo o que meu corpo fazia era me enviar o impulso urgente de gozar!

...

—Já acordado? – perguntou Fip ao chegar na cozinha e se deparar com Flavius a preparar o desjejum.

—Perdi o sono, tive um pesadelo e acabei acordando.

—Sonhou com zumbis invadindo a cidade ávidos por cérebro humano?

—Não!

—Então não pode ter sido tão ruim.... Algum sinal dos meninos?

—Nenhum.

—Devem estar na casa da Natasha.

—Nossa! Nem me lembrava que a Natasha tinha uma casa! Ela fica o tempo todo aqui!

—Verdade... faz tempo que essa casa deixou de ser minha. E por que você não vem morar aqui também? Aposto que sua tia nem ia notar, a gente escreve seu nome num saco de batatas e coloca no seu quarto, ela nem ia notar a diferença.

—Não é assim, Fip. Nós nos damos bem, minha tia e eu! As coisas melhoraram nos últimos meses. E o que você têm feito?

—Tenho dedicado meu tempo a esquartejar crianças indefesas e me alimentar do seu sangue. Faz bem para a pele, não notou a diferença?

—Reparei que algumas rugas desapareceram.

—Rugas? Onde você tinha visto rugas, seu cretino!? Eu não tenho rugas!

—Ah, é? Então por que precisa de sangue de crianças?

—Para evitá-las, ora!

—Sei...

Entreolharam-se com um sorriso bobo nos lábios. Gostavam de se implicar nessas pequenas brincadeiras, isso selava entre eles uma espécie de cumplicidade que só poderia ser compreendida por ambos. “Será que todos os casais se comportam assim?” – pensou Flavius:

—Engraçado. – disse – Faz dois dias que somos um casal, mas me parece que estamos juntos há séculos.

—É porque passamos séculos esperando um pelo outro. –disse Fip se aproximando – Vivendo entre babacas com quem não podíamos conversar livremente. – passou o braço pela cintura do rapaz puxando-o para perto - Olhando para os lados com medo de alguém ler nossos pensamentos podres e nos denunciar aos moralistas! – sussurrando em seu ouvido - Achávamos que viveriamos o tempo todo na solidão, mas agora nos encontramos e descobrimos que, inconscientemente...

—Fip, não me deixe nunca mais!

—Jamais ousaria fazer uma coisa dessas!

—Jura? Jura que não me abandonará como todo mundo? Jura que não vai morrer como todo mundo?

—Por ti ousaria ser imortal.

...

Flavius se remexeu na cadeira, como que incomodado. Apertou os olhos com força. Rebeca o encarou longamente, fazendo com que o rapaz desviasse o olhar. Não gostava de ser flagrado dessa maneira! “É um absurdo que as pessoas façam isso!” –pensou – “Que leiam nossos olhos quando nossas almas estão abertas! Deveria haver alguma lei que proibisse isso, que condenasse os olhares curiosos por invasão domiciliar. Que direito os outros têm de penetrar nossos olhares? Fip gostava de fazer isso... mirava meus olhos por longas horas na tentativa de me entender. Quando começamos juntos ele acreditou que eramos iguais, mas o tempo revelou nossas diferenças e então passou a se dedicar a me mapear. Entender minha mente... até hoje não consigo fazer isso... Fip garantiu que conseguiria e eu, por muito tempo, acreditei...esperei que ele me desse respostas...”

O menino abaixou a cabeça, aquilo tudo estava a revirar suas entranhas. Reviver toda essa história iria acabar por destruir seus nervos! Como se a morte de Fip não fosse dura o suficiente, teria de relembrá-lo, dia a dia, deus sabe por quanto tempo! Ler seu diário metodicamente escrito para confundir sua cabeça, apresentando-lhe uma visão dos fatos completamente distinta daquela que carregava consigo em sua memória.

Toda essa torturante situação estava tão impreguinada da personalidade de Fip que Flavius podia senti-lo como se estivesse vivo! Podia imaginar seu sorriso irônico a se regozijar com tudo isso! Adoraria receber tamanha atenção! Todas essas pessoas parando suas vidas para discutir a sua existência! Ao pensar nisso, Flavius sorriu: “Você planejou tudo isso, não é, seu cretino!? Planejou cada sentimento trazido por essa situação. Aposto meus dois olhos que você se divertiu muito imaginando tudo isso acontecendo. Aposto que deve estar a morrer de rir de nós... de mim... você fez tudo isso por mim, para mim... para me atingir em cheio e deixar meu peito vazio! Isso tudo é tão cruel que continuo a odiar o fato de pensar que amei você!”

Ergueu os olhos como que tentando voltar a pertencer ao mundo que o rodeava. Pierre lia algum trecho do diário que, de certo, traria memórias dolorosas. Os outros pareciam submersos em todo aquele absurdo sentimental. Será que ele era o único que se machucava tanto com tudo aquilo? Michel e Natasha agiam como se estivessem a observar um album de família, a reviver lembranças gostosas de um tempo saudoso... Seus olhares traziam sorrisos carregados de uma nostalgia sórdida. E, com isso, ele, Flavius, se via sozinho, mais uma vez, perdido em suas lembranças ruins, a remoer o amargor daquelas lembranças insalubres.

Rebeca, observando seus olhos, ofereceu-lhe um sorriso. O menino o aceitou, retribuiu sutilmente. Ninguém percebeu a pequena troca de carícias: “Eu te percebo e te entendo” – era o que Rebeca queria dizer com aquele pequeno ato. E Flavius, inesperadamente, compreendeu que não estava só.

...

Acordamos já eram quase duas da tarde, minha cabeça doía que nem sei dizer o quanto. Também, depois de tanta bebedeira! O cara que estava do meu lado era bonitão, eu tinha uma vaga lembrança de termos conversado na noite anterior, mas não me lembrava de como tinhamos vindo parar aqui:

—Bom dia! – ele disse.

—Bom dia. – respondi sem saber direito como agir. Não lembrava o que tinha feito na noite anterior então preferi me manter neutra.

—E então? Dormiu bem? – ele disse mexendo nos meus cabelos.

—Acho que sim. E você? ... Digo... quem é você mesmo?

—Ahahaha! Me chamo, Artur. Estivemos juntos noite passada.

—Isso eu já tinha imaginado. Espero não ter feito nada muito constrangedor.

Ele riu:

—O que você considera como constrangedor?

—Iiii, já vi tudo! Devo ter feito o cabaré pegar fogo ontem!

—Mais ou menos isso.

—Que vergonha, meu deus! – eu disse meio sem saber o por que, já que na verdade eu não tava com vergonha nenhuma. Mas acho que era isso que era esperado que eu fizesse.

—Que nada. Foi maravilhoso.

—Nesse caso podemos repetir qualquer hora. Mas dessa vez quero lembrar depois.

—Ahahahaha! Você é incrível, garota! – olhou para os lados – Cade o seu amigo... o Michel?

—Ele participou também?

—Sim.

—Ele e mais quantos?

—Só ele mesmo.

—Ah, então eu peguei leve dessa vez.

—Ahahahaha, quer dizer que já aprontou piores?

—Se eu não lembro eu não fiz.

Ele sorriu de novo e ficou me olhando com aquele olhar babão que os meninos fazem quando encontram uma menina com quem não precisam se fazer de cavalheiros. Eu murchei o meu sorriso e coloquei uma mecha de cabelo atrás da orelha. Conhecia esse comichão que estava tomando conta do meu estômago. Eram as malditas borboletas, estavam querendo voar lá dentro. Naquela hora, olhando para o olhar bobo daquele menino bonito, que eu percebi que ia começar tudo de novo... “Droga, lá vou eu me apaixonar mais uma vez.”

—O que foi? – ele disse – Por que murchou o sorriso?

—Vamos tomar um café da manhã? – eu disse – Acho que precisamos de comida!

—Fica sentadinha aí. – Ele disse se levantando – Eu volto daqui a pouco com o café da manhã.

—Ah, se trouxer café na cama eu apaixono. – disse num tom de brincadeira.

—Então essa é a minha chance. – ele respondeu.

Fiquei ali, parada, olhando para a parede e me preparando para toda a avalanche que viria em seguida. “Ai, ai, ai, Natasha, em que merda você se enfiou agora, hein?”

...

“Eram quase oito da noite quando ele ligou. Estava tocando piano para o Flavius, que tentava dançar com seu jeito desengonçado. Eu gostava de vê-lo tentar dançar, seu corpo se mexia de um jeito peculiar, cheio de barreiras, travas, tentativas frustradas de se mover. Os movimentos começavam e eram abortados antes do fim, por alguma censura interna que o avisava que tinha alguém olhando. Fazia com que ele parecesse um vulcão esperando pela erupção, um aviso para o terremoto. Um corpo perdido, desconectado com o homem que habitava seu interior.

As vezes ele parava e me olhava, soltava um sorriso sem graça e dizia: - É claro que eu não danço bem como você e... . Depois escondia o rosto, respirava e continuava com os olhos fechados, tentando me ignorar. As vezes ele parecia tão perdido em seu mundo, girando a cabeça enquanto mexia aleatóriamente os braços, que nem mesmo a música era capaz de o perceber. Movia-se com tanta liberdade, com tamanha incoerência e falta de precisão que acabava por se tornar poesia.

Era como se movimentasse seu corpo para expurgar o mal. Como se numa dança tribal cumprisse um ritual de auto purificação. Igual uma criança a dançar na chuva, acreditando-se bela enquanto os adultos contemplam sua falta de coordenação. Gostaria de dançar assim, como ele, com verdade tamanha que tornava desnecessária a presença de qualquer técnica ou ensaio.

Evidente que jamais abriria mão de todo o preparo corporal que tão árduamente conquistei. Não me refiro ao seu jeito desengonçado, mas sim a leveza de sua alma. Seus olhos fechados e o meio sorriso em sua boca, o modo como tudo parecia deixar de existir. Estava claro para mim que Flavius, enquanto dançava, deixava-se transportar para outra atmosfera, outro mundo, habitado apenas por ele. Impenetrável a qualquer mortal!

Dizem que eu, quando danço, consigo me fundir à musica. Sempre me orgulhei disso! Mas aqui, vejo Flavius se diluir do espaço, esquecer a música e talvez até o próprio corpo. Fazendo com que eu, espectador, ficasse a imaginar em que mundo ele estaria agora. Como estaria dançando lá dentro? Que tipo de pessoa ele é quando está lá? Será que algum dia eu conseguiria fundir essa inoscência com a minha técnica?

Fui interrompido quando, como eu disse inicialmente, o telefone tocou. Era Felipe, em prantos, disse que estava no hospital, tinha quebrado a perna:

—Caí da escada! – Ele disse – Quebrei a perna e estou todo machucado. Minha mãe disse que não ia cuidar de mim porque eu não quis voltar para a casa dela. Disse que, se eu já sou adulto para me virar sozinho, eu tenho que me cuidar agora. Eu não sei o que fazer, Francis. Não tinha com quem contar, só tenho você e Mercúrio.

“Mecúrio” era um código que havíamos inventado quando mais jovens para nos proteger dos nossos parentes. Sempre que havia algo a ser dito que não podia ser dito porque tinha algém perto que não podía ouvir, encontrávamos um jeito de dizer essa palavra. Assim o outro saberia que parte da conversa era mentira e que havia alguma verdade inconveniente ou perigosa por detrás daquele comentário. Logo entendi do que se tratava:

—E o que quer que eu faça?

—Vem me buscar, Fip, por favor! Eu estou sozinho aqui no hospital!

—Em que hospital você está?

—Anote aí o endereço.

Era uma emboscada, eu sei. Qualquer coisa de terrível poderia me acontecer enquanto eu estivesse a caminho. Meu pai, de certo, devia querer sua revanche. Respirei fundo e respondi:

—Olha, Felipe, eu tenho coisas importantes a fazer por aqui. Não tenho tempo para buscá-lo. O que eu posso fazer, se você quiser, é ligar para o pessoal do hospital e pedir sua transferência para o hospital daqui. Ai aqui eu cuido de você, pode ser?

Ele ficou em silêncio do outro lado, ao certo esperando algum veredito de meu pai. Aqui na cidade, graças ao meu acordo dona Guilhermina, eu estava seguro. Nenhum dos homens do meu pai me atacariam aqui. E Felipe, de certo, estaria mais seguro aqui também. O velho ia querer que eu saísse da cidade a qualquer custo! E me fazer sair para buscar o Felipe era uma boa saída:

—Mas eu queria ver você e... – ele disse. Eu sabia que estava sendo forçado a insistir, mas eu não cederia.

—Você me vê quando chegar. Vou ligar para o hospital, qual é o telefone?

—Eles disseram que não têm ambulâncias disponíveis e....

—Com isso eu me viro, diga em que hospital está e eu cuido do resto.

Ele se calou, respirou fundo e, por fim, passou as coordenadas. Velho lobo, estava a me rondar. Senti um certo enjôo no estômago. Estaria tudo bem com Felipe? Senti-me mal por não poder estar com ele. Gostaria de poder tirá-lo imediatamente das garras daquele safado! Mas não poderia colocar minha segurança em risco! Não agora que tinha o sorriso de Flavius para admirar. E, além do mais, eu avisei que ele não devia sair daqui. Saiu porque quis, porque foi burro, agora toma! Sofre aí. Ninguém mandou não me escutar.

Desliguei o telefone e fiz menção de ligar para o hospital, mas Flavius estava me olhando com aquela cara de “O que houve?” e eu tive que lhe explicar:

—O Felipe caiu da escada e quebrou a perna. Quer que eu vá buscá-lo no hospital.

—Ora, então vamos!

—Mas nem morto, se ele quiser eu mando uma ambulância buscar ele. Mas sair daqui para ir lá? Não mesmo!

—Mas, Fip....

Peguei o telefone e liguei para o hospital. Providenciei os detalhes para sua transferência, informei-me sobre seu estado, fiz tudo direitinho. O Flavius ficou me olhando com aquela cara de “seu insensível! Você tinha que ir pra lá!”, mas eu ignorei:

—Pronto, amanhã de noite ele deve estar aqui.

—Mas com que ele vai passar essa noite?

—Com o gel de cabelo e o perfume dele.

—Fip! Não tem graça! – ele disse rindo, porque sabia que tinha graça sim.

—Aposto que, mesmo todo enfaixado, ele deve estar com o cabelo penteadinho.

—E a faixa do braço combinando com o gesso da perna.- Flavius disse num tom engraçadissimo. Não esperava dele nenhum comentário desse tipo, julguei que ele acharia cruel.

—E deve estar reclamando que as cortinas do quarto não estão alinhadas.

—Ahahahaha! Será que ele amassou o pulôver na queda?

—Duvido! Aposto que ele caiu todo alinhado.

—Imagina se, ao invés de ter quebrado a perna, ele tivesse quebrado um dente? Aliás, todos os dentes”


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