Sangue escrita por Salomé Abdala


Capítulo 32
Capítulo 30 - O tempo.




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- O que está acontecendo com você, Flavius, que faz dias que não nos visitar? – perguntou Felipe parado em frente à porta enquanto esperava um convite para entrar.

            O menino estava sem camisa, exibindo seu raquítico corpo branco, olhos avermelhados de quem acaba de acordar, expressão de quem não entende o que está a se passar:

            -Felipe? Oi? O.. que faz aqui?

   -Senti saudades. Faz dias que não aparece.

   -Entre. Não repare na bagunça, minha tia viajou a trabalho, faz dias que estou sozinho.

   O garoto entrou num passo tímido, olhos baixos, mãos confusas, sem saber seu lugar:

   -Espero não estar incomodando. Eu acordei você?

   -O que? Ah,não! Não! Está tudo bem. Eu já tinhacordado... err... só estava tomando coragem para levantar.

   -Se preferir eu volto outra hora.É só porque estava me sentindo tão sem lugar naquela casa. Queria ver um rosto amigável.

   -Não! Não! Pode ficar. – disse tirando o monte de roupas de cima do sofá.  – Senta. Err... quer tomar alguma coisa? Água, acho que tem suco... se quiser comer....

   -Não se incomode.

   -Ok.

   Ficaram ambos encarando o chão, buscando insistentemente algo para dizer:

   -Então, como estão as coisas por lá? Está todo mundo bem?

   -Sim.... mas você não me respondeu. Por que parou de nos visitar.

   -Eu não parei de visitar vocês. É só porque estava em semana de provas e... acabei me ocupando por aqui...

   -Entendo. Sabe, estou pensando em ir embora. Voltar para casa.

   -Por que? – disse Flavius se sentando.

   -Não sei, não me sinto à vontade aqui. Quando vim visitar o Francis, vim na intenção de retomar nossa história. Achava que, agora que estamos mais crescidos, poderíamos ficar novamente juntos. Mas o Francis mudou muito, não o reconheço mais. Às vezes sinto que nem pertenço a sua vida. Me sinto um intruso.

   Flavius tentou ocultar o gozo que sentia ao ouvir tais palavras. Nunca gostara da presença de Felipe, sempre acreditou no que o jovem acabara de dizer; ele era um intruso, um invasor, sua presença não fazia sentido, não se encaixava. Mas Flavius jamais concordaria com tal afronta abertamente, por isso disse:

   -Felipe, não seja tolo! Fip gosta de você! Bem, não sei como era a relação de vocês antes. E também não sei como ele era, o quanto ele mudou e tal. Mas você também deve ter mudado, por isso a história de vocês mudou também. Mas isso não significa que acabou.

   -Não sei. Eu fico naquela casa com Natasha e Michel e, bem, tudo o que eles fazem é beber, falar de sexo, comer mal e rir. Sabe, eu gosto muito deles, mas essa falta de propósito me incomoda! A casa está sempre suja, mal organizada, mal cuidada! – Flavius mirou toda a bagunça à sua volta e tomou a critica para si – E o Francis parece fazer parte de tudo isso! Ele concorda com tudo e nada faz para mudar a situação. Não sei, sinto falta da cidade! De ter pessoas inteligente para conversar! Coisas produtivas para fazer. Aqui tudo o que se vê é decadência e álcool.

Flavius abaixou os olhos, lembrava-se de Fip falando sobre o primo. Dizendo que ele era um ‘’engomadinho reacionário que parecia ter sido esterilizado pela mãe’’. Enxergava finalmente tal definição se encaixar com a atitude do rapaz e achava certa graça nisso, era bonito vislumbrar o que havia por trás das máscaras das pessoas. Sorriu, no fundo gostava dessa decadência a quem Felipe se referia, mas sentia certo medo em demonstrá-lo,  julgava que, se o menino havia vindo até ele para desabafar sobre esses fatos, é porque acreditava que ele, Flavius, não se encaixava nesse perfil e, por isso, era seu igual. E não quis decepciona-lo, permitiu apenas que ele falasse, fingindo concordar:

-Sei.

-Além do mais, não vejo mais futuro entre Francis e eu. Ele anda muito diferente! Muito libidinoso!

Flavius riu:

-O que foi? Por que está rindo?

-Nada. É que achei engraçado o jeito que você falou. ‘’Libidinoso’’ não é uma palavra que ouço as pessoas usarem, ‘’safado’’ faz mais o perfil do que costumo ouvir.

-Vês! É o que essa cidade faz a você! Ah, Flavius, você merece tão mais que isso! Você é um menino inteligente, precioso. Precisa conhecer gente virtuosa, gente inteligente! Que faça jus a sua fina estampa. Precisa ver arte de verdade, estudar em bons lugares! Você precisa sair daqui, Flavius!

-Ah, um dia eu vou sair daqui, Felipe! Você vai ver! Vou morar na capital!

-Por que não vem comigo? Por que não vem agora? Você pode se morar no meu apartamento, eu ajudo você a se adaptar!

-Eu não sei. Tenho que terminar meus estudos. Depois vou fazer faculdade lá! No próximo ano! Com certeza!

Felipe sorriu:

-Seria ótimo.

Flavius percebeu o interesse do rapaz, por isso desviou o olhar. Não o rejeitava por completo, em algum lugar sabia que o menino era uma boa pessoa, seria até um bom pretendente caso não houvesse tanta concorrência desleal. Mas, enquanto Michel e Fip existissem, enquanto houvesse a mais ínfima esperança de se enlaçar a um dos dois, Felipe não teria lugar em seu coração:

-Sabe, Felipe. – disse – Você não faria mal em ir embora. Esse lugar não é mesmo para você. Mas eu sentiria sua falta. De verdade. Gosto da sua presença, me sinto bem ao seu lado.

-Eu também! – disse segurando a mão do Flavius – Foi muito bom conhecer você.

Flavius se levantou, mais para separar sua mão da de Felipe do que para abrir a janela, que foi o melhor pretexto que encontrou para se separar do rapaz:

-Também foi bom conhecer você.

-Flavius, me diz uma coisa.

-O que?

-Por quem você é mesmo apaixonado? Por Francis ou por Michel?

Flavius se sentou com um ar pensativo:

-Não sei. São sentimentos tão diferentes que sinto pelos dois. Sempre fui apaixonado por Michel, sonhei a vida toda em ficar com ele. Acho que sigo gostando dele mais por insistência e despeito por nunca ter conseguido nada. E o Fip, bem, ele mexe comigo, de um jeito bem estranho, mas não sei se o amo. Eu me identifico com ele, me reconheço, e isso me incomoda, mas ao mesmo tempo me dá a sensação de que não suportaria viver longe dele. É confuso e ainda muito novo. Mas, se pudesse escolher, com certeza viveria com Michel.

-Então é o Francis quem você ama. – disse sorrindo – Foi ele quem roubou seu coração.

Flavius respirou fundo. Não quis responder. Odiava quando as pessoas se impunham a ele com uma verdade nas mãos. Nunca sabia o que dizer, por isso preferiu mudar de assunto:

-Mas então, já conversou com Fip sobre sua vontade de ir embora?

-Não, ele não deixaria. Diria que meu tio me mataria se ele não estivesse perto. Mas meu tio está doente, não pode mais fazer mal a ninguém. E, além do mais, tenho um apartamento no sul e lá sei que estaria seguro.

-Tenho tanta inveja de vocês. Da riqueza de vocês. Tudo é tão fácil. ‘’Tenho um apartamento aqui, uma casa alí’’. Há dinheiro para tudo, para qualquer mudança, calçando qualquer decisão. Se eu tivesse tudo isso já estaria fora do país.

-Ahahaha. O dinheiro facilita sim, mas não resolve tudo, amigo. E, além do mais, o que é meu estará sempre aberto para você. Sempre que precisar. Me ligue, estará tudo a sua disposição.

-Obrigado.

-Agora me responda de verdade, por que não tem aparecido?

...

  ‘’Flavius me enviou uma carta, nela ele dizia que se separaria de minha presença para entender melhor seus sentimentos. Disse que não se sentia à vontade na minha casa com Michel por perto e que nunca sabia direito como agir. Ele utilizou uma sinceridade cortante dizendo que não sabia quem preferia, ele ou eu. A priori me doeu muito, mas depois me enchi de esperanças. No principio só havia Michel e eu era apenas uma sombra inerte. Agora há a dúvida:  um ponto para mim.

Preocupa-me também a presença de Michel. Antes ele não era mais do que uma ameaça, uma idéia abstrata que eu podia ignorar. Agora ele é um homem bonito e bom de cama. Carismático, impressionante! Alguém por quem eu me apaixonaria e cujo poder de sedução pode arrebatar Flavius por completo já que agora ele também não é mais uma abstração qualquer para o meu menino. Bem, antes o Flavinho só o via de longe, só tinha uma idéia forjada dele, agora o garoto é real e bem legal. Isso deve estar deixando mesmo o garoto confuso.

Mas uma coisa me consola: eu o provei antes que Flavius o fizesse. Eu tive o primeiro toque, as primeiras núpcias. No fundo não importa o que Flavius decida, é a mim que cabe a decisão. Michel pode simplesmente não se apaixonar de volta se antes se enamorar por mim! E é claro que eu tenho recursos para tanto! Evidente que numa batalha entre Flavius e eu, a vitória seria minha. Mas até que ponto essa certeza pode reconfortar meu coração? O que me garante que Flavius me aceitaria se perdesse Michel dessa maneira?

Não é justo amar alguém assim. Nessa disposição toda para lhe fazer mal simplesmente para que não seja feliz com outra pessoa. Para que não viva bem longe de mim... não sei exatamente o que pensar. Tenho medo da ausência de Flavius, tenho medo de mim.  Michel vivendo na minha casa, eu e ele criando laços cada vez mais profundos e Flavius me revelando em carta o quanto isso nos separa. A inveja visceral que ele sente de mim- o que é compreensível, uma vez que estou, em vários pontos, anos luz na frente dele- e o modo como se lembrar da visão de nós dois juntos na cama exterminou parte de seus sonhos.

Confesso que ri quando li isso pela primeira vez:

 ‘Você roubou uma parte dos meus sonhos! Roubou um pedaço de mim! Ainda não sei como lidar com isso, porque não consigo te odiar. Você era uma boa promessa, Fip. Uma promessa de redenção, mas acabou virando meu carrasco e agora me afaga com a mesma mão que rasgou meu peito. A dor que sinto é visceral e olhar para você, ao mesmo tempo que me trás alegria e bem estar, me faz sentir um ódio e uma podridão que não sei para onde podem me levar.’

Achei tudo muito engraçado e ridículo. Exagerado até. Mas de uma sinceridade vil. Eu odeio e amo o modo como Flavius se expõe, sem medo do ridículo, sem preocupação com o julgamento que pode causar. É como se me dissesse: Aqui está meu coração, meus sentimentos e minhas fraquezas, faça o que quiser com elas.

É óbvio que meu primeiro impulso é ridicularizar e machucar ainda mais as feridas. Rir muito delas e julgar que Flavius não passa de um pateta. O que ele, de fato, é. Mas um pateta muito amável e bonito a quem eu amo com paixão. É o meu pateta, com seu jeitinho todo idiota de lidar com os próprios sentimentos e sonhos. E eu, um idiota ainda mais cretino, por ficar aqui, sentado à janela, esperando ele aparecer a qualquer momento naquela esquina.’’

...

-Aqui há um salto no tempo. – diz Pierre.

-O que? – pergunta Natasha.

-Nas datas, Fip pula para daqui a dois meses, no dia em que você retira o gesso.

-Ah, deve ser porque nossos dias corriam quase todos iguais. Isso foi na época em que Flavius ficou um bom tempo sem aparecer, e o Felipe foi embora para a capital. O Fip encucou que ia voltar a treinar dança e passava o dia todo no porão ensaiando e fazendo exercícios. Eu nem sei se ele escrevia no diário todos os dias.

-Pelo visto não.-comentou Pierre – Mas há algum acontecimento relevante nesse meio tempo que alguém queira comentar?

-Eu não. – disse Natasha – Eu só bebia.

-Eu visitei minha mãe mais algumas vezes, mas nada muito diferente do que tinha sido na primeira visita.- respondeu Michel.

-Ah, o importante já foi dito. Felipe foi embora mais ou menos uma semana depois da visita que me fez e nós passamos a conversar pela internet, acabamos ficando mais próximos, mais amigos. Ele me ajudou muito a entender algumas atitudes de Fip.

-Bem, então eu posso continuar a ler o diário?

-Por favor.

...

‘’Meu coração quase saltou da boca quando ele entrou. Michel lhe havia aberto a porta, eu estava no andar de cima, me arrumando para levar Natasha ao médico, era dia de tirar seu gesso. Ouvi sua voz, reconheci de imediato, era ele! Havia voltado! Terminei de me arrumar o mais depressa que pude e depois desci as escadas com um ar preguiçoso de quem não sabia o que estava acontecendo:

-Flavius? Você por aqui? – disse num tom forçado de surpresa que acho que não convenceu.

-Faz tempo, não? Desde a última vez.

-Cortou os cabelos? Ficou bonito.

-Ah, obrigado. Já faz um tempo. Minha tia diz que ficou melhor.

Ele tinha um ar diferente. Uma certa serenidade na voz que eu estranhei. Parecia mais adulto, não sei explicar. Me parece que o sofrimento ao qual ele se referia na carta que me enviou era real, havia mudado qualquer coisa no seu olhar.

-É, ficou mais bonito mesmo. – disse Michel num tom sincero que me fez o sangue subir à cabeça.

Criei a imagem mental de Michel amarrado de cabeça para baixo num poste enquanto eu o açoitava incessantemente com um chicote de laminas pontudas! Ele não podia admirar Flavius! ELE NÃO! Felipe sim, Natasha sim, qualquer um! Mas ELE NÃO!

E o Flavius sorriu com uma cara safada! Aquele maldito bastardinho!Todo feliz com o elogio! Que ódio! Eu vi os olhos de Michel! VI! Havia alguma admiração neles! Ele também havia percebido essa mudança em Flavius! Havia visto também alguma diferença! E se agradou dela! Abriu os olhos para ele! NÃO! NÃO PODIA ADMITIR ISSO!

Natasha veio da cozinha:

-Flavinho! Que saudade de você! –se abraçaram, o que também me irritou! Parece que agora que a fonte do ciúme havia sido ligada, nada mais conteria seu vazamento. – Como está bonito com esse cabelo novo!

Ah, Natasha, você também!

-Eu preferia antes. – falei – Sei lá, parece que você ficou... sem personalidade.

-Às vezes e bom mudar. – ele contestou.

-Só quando é para melhor. – disse.

Ele deu de ombros e perguntou a Natasha:

-E então? Quando tira o gesso?

-Estávamos indo agora, o Chico e eu. Quer ir com a gente?

-Ué! Não sei. Vocês vão na capital?

-Sim. Vamos passar a noite lá! Na casa do Felipe!

-No Felipe? Poxa estou com saudades dele também!

-Poisé! O Michel ia com a gente, mas hoje ele mudou de idéia! Tem lugar no carro e o Felipe está preparado para receber três pessoas! Por que não vai com a gente? Pode ser bom para matar as saudades, não é Chico?

Antes de eu responder, Flavius disse:

-Você não vai, Michel? Por que?

-Ah nem. Não estou com animo para viajar.

Ele soltou um sorriso frouxo, desavergonhado (adoro essa palavra). Eu percebi claramente suas intenções:

-Ah, Natasha, obrigado, mas eu nem me preparei para viagem. Além do mais, minha tia ia achar ruim eu viajar assim, tão às pressas. É melhor eu ficar. Fica pra próxima!

-Que pena. – ela respondeu – Felipe ia gosta de ver você. Bem, vamos, Chico? Se não vamos nos atrasar!

NÃO! NÃO! Eu não vou deixar os dois sozinhos nessa casa, NUNCA! Eu senti o clima dissimulado entre eles, senti a comunicação invisível: ‘O Fip vai sair, esse idiota! Vamos aproveitar a oportunidade e nos divertir pra caramba sem ele aqui!’. E logo fui atacado pela cena dos dois juntos, se divertindo, rindo, conversando felizes! Transando! Se beijando! E Flavius bem feliz! Bem alegrinho! Realizando o sonho imbecil dele! E o Michel, esse safado, nem vai pensar duas vezes! Esse aí aceita qualquer coisa que lhe aparece, não vai fazer objeção em pegar o Flavius:

-Vamos, Chico!

-Va...vamos. – disse descendo as escadas com toda a dignidade que podia fingir ter.

Mas isso nem pode ficar assim! Eu também tenho minhas conquistas! Também posso arrumar alguém para mim na capital! Sei que posso! Vou trair Flavius com o primeiro que me aparecer! Vou despreza-lo assim como ele fez, maldito, infeliz:

-Tchau, Flavius, bom te ver depois de tanto tempo. Estava com saudades.

-Eu também. – ele disse – Vim aqui para falar contigo porque estou sentindo muita falta de conversar com você. – ele seguia do meu lado até a porta – Mas volto amanhã para conversarmos melhor! Aproveito e visito a Natasha sem os gessos! – sorriu – Boa viagem, querido. – me abraçou e saiu, junto comigo, da casa.

Entrei no carro aliviado. Ele ia embora, não ficariam a sós! Todas as cenas funestas criadas por mim desapareceram como folhas ao vento. De repente não sentia mais ódio, nem rancor. Esqueci a lista mental de antigos amantes que poderia procurar na cidade e voltei a sentir total apreço por Michel!Respirando contente, sorri com um ar bobo e dei partida no carro. Natasha disse:

-Aliviado, né?

-Odeio o modo como você percebe tudo.

-É o meu sexto sentido feminino.

-Sei. Nossa, Natasha, tive tanto medo de eles ficarem juntos! Quase pulei de alegria quando vi Flavius indo embora!

Ela ficou em silêncio com um sorriso cínico na cara enquanto eu dirigia:

-O que é? – perguntei – Do que está rindo.

-Aposto que ele vai voltar.

Vagabunda, conseguiu me fazer me sentir pior!’’

...


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