Sangue escrita por Salomé Abdala


Capítulo 29
Capítulo 27 - Pequenas revelações.




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—O que nós fazemos das nossas vidas? – ele estava sentado na escada que leva ao jardim, olhos marejados, feição triste. Felipe disse que ele chorou quase o caminho todo e não quis falar com ninguém desde que chegou. Eu cheguei e ele já estava aqui. Sentei do lado dele e fiquei em silêncio até ele começar a falar – O que nós fazemos, Flavius? Nós vivemos distraídos, deixando que os acontecimentos nos levem a agir por impulso. Estamos sempre apagando os incêndios, resolvendo as situações imediatas e, de repente, caímos numa armadilha. De repente nos vemos agindo igual a tudo que mais odiávamos.

Ele falava olhando para frente, mais pra ele mesmo do que pra mim. Eu ficava calado, sabia que ele não precisava ouvir nada, apenas falar:

—Eu não sei o que será de mim... não sei... eu olho pra minha vida, pra tudo o que me aconteceu, e me sinto um refém. Sinto que nunca vou me libertar dessa merda toda, é inútil, sabe? É inútil tentar ser feliz! Por mais que eu me esforce, por mais que eu tente me enganar, é simplesmente inútil negar o que eu sou! Eu sou uma cicatriz, Flavius, nunca chegarei a ser um humano. Uma pessoa normal que leva a vida de um jeito leve, bonito, descompromissado... o que eu vou fazer comigo? Como vou suportar ser eu mesmo para sempre? Como vou fazer?

—Eu...te entendo... – eu disse sabendo que não surtiria nenhum efeito. Mas, talvez, saber que não é o único a passar por isso possa ajudar. Ou talvez só piore tudo, dando a ele a sensação de que eu acho a dor dele banal. Não sei, nessas situações simplesmente não sei o que dizer.

—Eu odeio a minha vida. Odeio ser eu. Odeio viver em mim! É repugnante, Flavius, é repugnante ser eu! Essa desconfiança toda que tenho, essa necessidade de atenção, de agressão. Eu sou um super senso de auto-defesa! Eu não sei mais o que sou! Eu não sei o que fazer! – nessa hora ele colocou as mãos no rosto e continuou a falar compulsivamente. Mas era impossível entender o que ele dizia, conseguia captar uma frase ou outra que, sozinhas, não faziam o menor sentido - ... incapaz de levar a vida.... sempre assim, escondido de todos..... porque eu simplesmente não morro?.... eu não sei se vou agüentar viver...

Abracei-o. Fiquei calado passando a mão nos seus cabelos. Engraçado, eu não estava surpreso, sabia que Fip teria sim seu lado frágil. Mas não esperava que fosse tão... parecido... comigo... Alguma coisa mudou no meu coração...

...

—O que você tem, Natasha? – Perguntou Felipe.

—Nada. Só estou preocupada com o Chico.

—Não se preocupe, Flavius saberá o que fazer. Já reparou como ele sempre sabe o que fazer?

Natasha olhou para o menino com um ar desconfiado:

—Já tinha reparado que você perceberia isso.

—Como assim? Não entendi.

—Nada não. Só estou jogando palavras no vento. Gosto de fazer isso, sabe? É como uma terapia pra mim.

—O que eu te fiz? Pra você me tratar assim?

—Nada, querido. O problema não é o que você fez. É o que pretende fazer.

—Como assim?

—Seus olhos brilham quando você fala dele, Felipe. Brilham.

Ele abaixou a cabeça:

—Eu não posso evitar.

—Nem deve, querido. Nem deve.

...

Aproveitei toda a reviravolta na casa do Fip para tentar arrumar a confusão instalada na minha casa. A recepção não foi das melhores, minha mãe, como sempre, estava se fazendo de vítima. Com uma cara de doente de dar pena, dizendo coisas sem sentido e tomando comprimidos na minha frente pra me fazer sentir pena:

—Se você quer viver desse jeito, longe de tudo que te ensinei, eu não posso fazer nada. Você não imagina o sofrimento e a dor que tem me causado. Mas, se você quer viver assim o que eu posso fazer? Eu tenho rezado dia e noite pra Deus colocar um pouco de juízo nessa sua cabeça... ai... só Deus sabe o que tenho passado...

Ela dizia num tom de auto-piedade que me enojava. Fiquei pensando no quanto já havia caído nessas chantagens baratas. Como não conseguia enxergar o quão baixo isso era? Ela continuava falando:

—Seu pai também está sofrendo muito. Todos nós estamos. Tem sido uma fase muito difícil para todos nós... mas o que podemos fazer, não é mesmo?

—É. É mesmo uma pena. Bem, eu só vim dizer que está tudo bem, que eu estou bem e...

—É, você pensa que está bem. Você acha que está tudo bem! Mas eu não quero falar sobre isso. – ela falava enxugando as lágrimas falsas e se levantando – Eu só quero que você se cuide, meu filho. E que Deus ponha um pouco de juízo nessa sua cabeça.

—Bem, se você não quer falar sobre isso eu já vou indo. Foi bom falar com você. Se cuida. E para de sentir pena de você mesmo, isso não vai me trazer de volta.

‘’Eu odeio vocês e essa necessidade de controle. Essa necessidade de concordar com tudo o que eu faço e o fato de dizerem que me amam e não saberem respeitar minha alegria. Odeio você e meu pai por tudo o que fizeram comigo com a minha vida e pelo que fariam se eu ainda permitisse. Gostaria que vocês morressem e me deixassem em paz.’’ – Não gosto de não ter tido coragem de dizer essas coisas. Pensei, apenas, mas nunca disse. Falei apenas:

—Tchau. Espero que fiquem bem, e me esqueçam, não serei o filho pródigo que tanto tentaram me forçar a ser.

Sai, deixando-a chorando e soluçando alto atrás de mim, esperando que eu voltasse correndo como um bom cordeirinho, pedindo perdão e prometendo ser um bom menino. Mas não hoje... não mais... não serei mais sua vítima... prometi a mim mesmo.

...

‘’-Sabe, Fip, o que aconteceu com seu pai foi uma fatalidade. Podia ter acontecido com qualquer um. Eu sei que é triste, cruel, mas não há nada que você pudesse ter feito para evitar.

—Há sim, Flavius. – eu disse – Eu participei disso. A Guilhermina mandou aqueles homens atrás dele. Não foi um assalto, foi uma emboscada. E eu ajudei a organizar.

Seu olhar não mudou. O que me espantou muito, esperava dele qualquer reação, qualquer negação, um julgamento ao menos... mas nada... ele deu de ombros e disse:

—Ao que me parece, ele mereceu.

—Uma boa surra eu sei que merecia... mas isso foi longe demais... eu acho que...

—Eu acho que não. Você deixou ele fisicamente aleijado, mas pense bem, ele não fez o mesmo com você? Não te deixou cicatrizes que vai ter que carregar pelo resto da vida? Não é o que estava me dizendo? Que não sabe como fará para conseguir viver, para apagar tudo o que te aconteceu? Isso não é uma forma de estar aleijado também?

Fiquei atônito, não sabia o que responder. É estranho, mas isso me fez me sentir melhor. Não devia, mas fez:

—Mas, Flavius, você não sabe o que é viver com uma culpa dessas. – eu disse, um pouco para não me render ao fato de que eu estava me sentindo melhor. Estava gostando daquela situação de tê-lo cuidando de mim.

—Sei sim. – ele abaixou a cabeça, estava riscando alguma coisa no chão com um graveto. – Sei sim.

—Quer falar sobre isso?

—Acho que não. É hora de cuidar de você agora.

Abracei-o. Encostei minha cabeça no seu ombro, ele começou a afagar meus cabelos:

—Você é uma pessoa muito especial, sabe? Eu gosto muito de você. Principalmente quando não está dando seus ataques histéricos. – eu disse.

—Também gosto de ti. Principalmente quando não está tentando ser agressivo.

—Que bela dupla, hein?

—É... - ele abaixou e ficou em silêncio, abriu e fechou a boca várias vezes como se desistisse repentinamente de dizer o que pretendia.

—O que está te incomodando?

—Posso falar?

—Deve.

—Eu não quero ficar te enxendo sempre com meus problemas.

—Fala logo!

—Eu já te contei de quando a minha mãe morreu, não contei?

—Sim. Ela se enforcou na sua frente, não foi?

—É, foi...

—Deve ter sido difícil para você.

—Fui eu que a matei...

Voltei a me sentar normalmente para olhar para ele, na hora não levei a sério, pensei que seria mais um dos ataques de 'eu sou o senhor culpado por tudo' que ele vive tendo:

—Como assim?

—Foi sem querer, sabe... foi sem querer... – ele abaixou a cabeça – Ela estava com a corda em volta do pescoço, em cima daquele banquinho... – os olhos dele estava marejados e ele falava como se cuspisse as palavras - ... e ela me falava coisas tão pesadas, Fip... coisas fortes... sobre meu pai, minha avó, sobre mim... Eu fiquei nervoso e empurrei ela... empurrei... mas, mas eu não queria que ela morresse! Eu não tinha idéia que ela morreria! Eu era só uma criança, Fip, uma criança de cinco anos! Eu não sabia o que estava fazendo! Eu não queria aquilo! Eu só queria que... ela parasse de falar....

—E, de certo modo, conseguiu...

Ele me fulminou com os olhos:

—Desculpe. – eu disse.

—Tudo bem. De certa forma você tem razão. Sabe, eu nunca contei isso pra ninguém, eu...

Beijei seu rosto:

—Você era uma criança, não tem como se culpar sobre isso.

—Viu como é fácil se livrar da culpa quando ela está nos outros?

—É verdade....

—É sempre fácil quando está fora da gente.

—Eu te amo, Flavius.

—Eu também.

Ficamos abraçados de um jeito estranho, sentados de lado e totalmente desajeitados. Olhávamos para frente e ele tremia um pouco. Julguei que ele estava até bem, visto o que tinha acabado de me dizer. Permanecemos em silêncio até ele olhar para mim e sorrir:

—Eu penso nisso, Fip, todos dias...

—Que você me ama?

—Não – ele riu – na morte da minha mãe.

Engraçado como estávamos a falar de uma coisa tão séria em meio a sorrisos. Eu, bem, sempre tive a mania de fazer piada das desgraças. Mas não era comum que Flavius aceitasse esse tipo de brincadeira. Acho que isso reflete algum tipo de cumplicidade nova entre nós... não sei... Mas quando penso nessa história que ele me contou sobre a mãe... porra, que situação difícil! É o tipo de coisa que ficamos sabendo e mudam para sempre o modo como enxergamos o outro. O tipo de coisa que... sei la... justifica um pouco os problemas que ele tem... eu não saberia como conviver com isso... e talvez, ele também não saiba... que bosta, que merda toda é essa que a vida faz com a gente? Imagino ele, uma criança, percebendo que acabou de matar a própria mãe. Desgraçada, gostaria que ela estivesse viva para matá-la de novo! Como se faz uma coisa dessas com um menino dessa idade?

—Vem comigo, vou te dar novas coisas para pensar. – passei a mão no seu rosto e o beijei. Hoje penso nessa frase e vejo como ela tem uma conotação sacana, mas naquele dia, naquele momento, juro que ela não assumiu esse tom. Soou bonito, romântico e protetor – Eu te amo, menino, te amo demais.

—Obrigado, Fip, por ter aparecido na minha vida.’’

...

—Oi, eu sou a tia do Flavius. – disse a mulher parada diante da porta – Eu estava passando por aqui e decidi ver se ele já queria ir pra casa.

—Felipe! Vai dizer pro Flavius que a tia dele ta aqui! – eu gritei – E você não quer entrar?

—Não obrigada. Eu deixei o carro ligado e...

—Aquele carro é seu?

—É.. é sim...

Sorri, fingi que não tinha percebido nada. Ela engoliu em seco, eu vi. É o carro que me atropelou, eu tenho certeza absoluta. E sei que foi ela, lembro de seu rosto agora que o vi! Sua vagabunda, desgraçada! Espera só até eu tirar esses gessos!

Não disse nada. Deixei que ela pensasse que eu não tinha percebido nada:

—Muito bonito. Adoro essa cor.

—Ah, obrigada. – ela disse visivelmente aliviada - Foi o Flavinho que escolheu a cor.

—Muito bom gosto.

‘’O que é seu está guardado, sua vadia. Espere e verá.’’ Sorri. Felipe chegou dizendo que Flavius ia dormir aqui:

—Ah, tudo bem, Desculpe o incomodo.

—Que isso, foi um prazer ter você aqui. Volte depois para tomar um chá.

—Voltarei. Bem, até mais então. Ah, e obrigada, viu. Diga a todo mundo que eu agradeço. Flavius sempre foi muito sozinho, eu fico tão feliz que ele tenha amigos como vocês. Tchau, obrigada. Até mais.

—Até.... desgraçada, filha da puta.... – disse baixinho – Se eu dependesse de você estaria morta agora.

Ela e Michel se encontraram no portão e se cumprimentaram. Ele entrou com uma carinha amarela, desprotegida, sem sal:

—Oi Natasha.

—Iii pode ir contando, como foi?

—Foi tenso, como tinha que ser. Minha mãe com aquele senso de auto piedade dela e tudo o mais. – ele se sentou no sofá e colocou os braços sobre a cabeça. Deus, eu nunca tinha percebido no quanto esse filho da puta é bonito – Sabe como é, tentando jogar a culpa em cima de mim. E o pior é que quase funciona, sabe? Eu ainda fico com certa pen...

Quando ele percebeu eu já tinha me jogado em cima dele e estava o beijando. A essa altura já estava tão acostumada ao gesso que conseguia fazer quase qualquer coisa com ele. E foi o que provei para o Michel naquela noite. Aliás, foi o que provamos um para o outro...


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