Sangue escrita por Salomé Abdala


Capítulo 28
Capítulo 26 – Hospital.




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‘’Deixei Flavius dormindo na cama e fui tomar banho. Estava muito nervoso, ansioso na verdade. Não estava pronto para encarar meu pai. A água caia sobre meu corpo e eu implorava para que ela lavasse essa sensação ruim. Aquele cretino... esse mundo...

Vesti roupa de luto, penteei o cabelo com gel, tudo muito alinhado, muito bonito... para o gosto desse povo que gosta de se comportar. Perfumei-me e desci as escadas. Na verdade passei pelo quarto do Felipe antes para perguntar se ele estava pronto... sim, ele iria comigo.

Desci as escadas, Natasha estava ali, aparentemente me esperando:

-Parece melhor. A conversa com o menino foi boa, pelo visto. – ela disse.

-Como eu esperava.

-Chico, toma cuidado, viu? Você sabe que não é de você que ele gosta.

-Sei sim, mas quero me divertir enquanto posso. Logo ele e Michel irão se ajeitar e eu não poderei mais tirar minha casquinha.

-Acho que não é com Michel que você deve se preocupar.

-Do que está falando?

-Estou pronto. – disse Felipe.

-Vamos. – eu disse.

Olhei para Natasha com cara de ‘terminamos essa conversa depois’. Ela deu de ombros e foi assistir Tv. Olhei para o Felipe, estávamos quase iguais. Passei meu braço por cima dos seus ombros e caminhamos juntos até o carro. Ele iria dirigir.’’

...

‘’-Está nervoso?

-Minhas mãos estão geladas.

Ele passou a mão no meu ombro:

-Calma.

-Obrigado por estar aqui.- eu disse.

Ele sorriu, sorriso bobo. Gosto desse jeito meio abobado que ele tem, me irrita as vezes, mas no geral eu gosto. Já era quase noite. A viagem foi longa. Estava cansado, com o corpo dolorido, mas não queria deixar para depois.

Cheiro de hospital... ô coisinha que eu odeio. E todas as atendentes têm cara de ‘não me enche o saco ou eu te mato’. É um clima muito esquisito. Falei com a enfermeira:

-Como ele está?

-Recobrou a consciência faz pouco tempo.

-Ele já sabe?

-Ainda não. Achamos melhor que algum parente desse a notícia.

-Melhor assim. Deixa comigo.

Felipe se sentou na recepção com jeito de quem não ia sair de lá. Não o culpo. Também evitaria a situação se pudesse. Entrei no quarto e hesitei alguns segundos antes de erguer a cabeça  e encará-lo:

-Que... quem está aí? – ele disse.

Estava todo estourado. Provavelmente não o reconheceria não fosse pelo olho de vidro. Céus, eles judiaram mesmo do velho! Estou espantado que ele esteja vivo. De verdade! Segurei o riso e disse quase gargalhando:

-Sou eu, pai.

-Francisco? Quem te chamou aqui?

-O pessoal do hospital. Eles me ligaram perguntando se eu conhecia você, infelizmente eu conhecia. Te encontraram na beira de uma estrada todo moído. Céus, papai, quando é que você vai parar de se arriscar assim?

-Seu cretino! Vá embora daqui!

-Eu não! Quero dar uma boa olhada nessa sua cara inchada. Como é estar do outro lado? É bom?

Ele fechou a cara e não respondeu. Não fiquei contente com o seu silêncio, por isso cutuquei um hematoma  no seu rosto:

-Dói? – perguntei.

-Ai! Seu desgraçado! Tira a mão de mim!

-É, acho que isso é uma resposta afirmativa. E aqui? Dói?

Cutuquei seu braço.

-Pare com isso, seu moleque!

Ele tentou me acertar com o braço engessado, mas não conseguiu se mover direito. Logo se encolheu por causa da dor:

-Nossa, deram uma boa arrebentada em você. E deixa eu te perguntar, chegaram a te estuprar? Aposto que sim, com essa bunda gorda que você tem, duvido que eles tenham resistido.

-Cala sua boca! Seu cretino! Espere só até eu sair daqui para você ver!

Dei três passos para trás como se tivesse me assustado e fingi tropeçar:

-Ah! Me desculpe, papai! Esbarrei na sua perna! Nossa, desculpe, isso deve ter doído!

-Eu não senti nada.

-Ah, é. Eu tinha me esquecido que você não sente mais as pernas.

-Do que você está falando?

-Ué? Não te avisaram que você está paralítico?- esperei um tempo para que ele digerisse a informação - Poxa, que coisa chata, ficar sabendo disso assim, não é?

Ele não disse nada. Apenas me encarou com o seu único olho bastante arregalado. Sua boca perdeu a cor. Eu sei, o coração dele devia estar acelerado:

-Que... que... palhaçada é essa, menino? O que você está falando?

-Ué, você não percebeu ainda? Olha só. – dei um soco na sua perna – Você sente alguma coisa?

-Nã... não...

-E agora?- levantei sua perna e a deixei cair na cama.

-Não...

-Agora tenta se mexer.

Ele ficou alguns segundos parado, olhando para as próprias pernas, o suor escorrendo pelo rosto, a boca branca. Cara de quem está a fazer um grande esforço:

-Viu só? – eu disse – E vai ficar assim para sempre. Mas não se preocupe, vou comprar uma cadeira de rodas bem bacana para você. Acho que acabou o horário de visitas, está bem tarde, a moça nem queria deixar eu entrar! Mas não se preocupe, amanhã eu volto para te dar tchau. Vou voltar para Alvinópolis amanhã logo depois do almoço. É uma cidade bonita, sabia? Estou gostando de lá! É pequena mas a casa é muito boa, não é? Puxa, o vovô não devia ter saído de lá, né? Lugar muito legal. Enfim. Espero que você me visite qualquer dia desses. Vou mandar adaptarem algumas rampas na entrada para você...

Ele não dizia nada, suava frio, olhava para as pernas e para mim. Respiração cada vez mais ofegante:

-Tá bom, falando sério. Eu sinto muito. – disse – Mesmo sendo um cretino dos infernos, você não merecia isso. Vou mandar transferirem você para a capital, para o seu hospital de confiança. Tchau, se cuida.

Saí. Antes dei uma última olhada para trás. Meu pai, aquele grande cretino que tantas vezes me surrou até eu chegar quase nesse estado, estava agora ali, estourado, arrebentado, destruído. Sensação esquisita, ver um deus inabalável tão acabado. Senti pena. Não combinava com ele, aquela cara de quem está segurando o choro. Decidi sair, se conheço o velho sei que não vai fraquejar na minha frente. É melhor sair e dar a ele o direito de se lamentar.

Andei pelos corredores apressado, como se algo me estivesse sufocando, precisava ver alguém, falar com alguém! Felipe estava ali, no mesmo lugar, levantou-se ao me ver. Correu em minha direção:

-Como está? – ele me perguntou.

-Me abraça! Me abraça, rápido!

Chorei... como uma criança que perde a mãe... chorei por horas e horas, sem parar...’’


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Notas finais do capítulo

Capítulo curto, mas não tinha como ser diferente =s