Sangue escrita por Salomé Abdala


Capítulo 27
Capítulo 25 – Prelúdio de uma tragédia anunciada.




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—Eu não acredito que você está me pedindo isso! – eu disse.

Michel abria e fechava a boca como se tentasse dizer algo mas as palavras lhe fugiam da boca. Continuei:

—Não tenho nada a ver com os problemas do Fip, estamos de relações cortadas! Além do mais...

—Você está sendo injusto.

—Injusto? Eu?

—Que traição tão grave foi essa do Fip, Flavius? Não é nada que possa ser perdoado?

Ele me olhou com aqueles olhos de quem implora. Me derreti todo:

—Bem... na verdade... tinha mais a ver com você.... do que com ele... ah, Michel, você sabe... Fip já te falou....

Abaixei a cabeça sentindo todo o peso do mundo em meu rosto.

—Eu sei. – ele disse – Por isso vim te pedir esse favor. Flavius, não seja tão mesquinho.

Olhei para ele, ainda envergonhado. Meu corpo todo tremia de nervosismo. Será que eu conseguiria encarar o Fip de frente? Mas por Michel eu estava disposto a tentar.

—Está bem. Eu vou. – forcei um sorriso.

—Ah, Flavius! Eu sabia que você não ia me decepcionar!

E me abraçou. Senti seu cheiro, seu leve cheiro. Venci a timidez e o abracei de volta. Sim, decidi tirar uma casquinha. Era tão raro poder tocá-lo.

...

‘’Meu corpo prostrado na cama, o braço pendendo no espaço, pendurado, a mão se arrastando no chão. Mantenho os olhos abertos por capricho, pois não enxergo nada a minha frente, todas as atenções estão voltadas para o interior. Para a dor dentro de mim. Sinto como se estivesse suspenso no tempo. O quarto, a cama, o corpo, o espaço, tudo se dilui e perde seu significado. Não sei quem sou, apenas estou... estou no mundo.

Fragmentos de memórias poluídas me assombram de leve, como se tentando justificar a situação presente. A violência do meu pai, o desaparecimento da minha mãe. O modo como me separaram de Felipe e a vida que tive com meu tio... parece que toda minha vida foi violência, uma selva de constante auto-preservação. As pessoas exigem que eu seja mais gentil... mas que tipo de gentileza recebi para aprender a ser assim?

Tudo que levei foi porrada, pontapé. E isso me tornou o que sou. Essa fratura exposta que grita horrorizada por tudo o que viu. Meu pai. Tento construir sua imagem na minha cabeça, tento me lembrar de suas feições. Imagino-o em uma cadeira de rodas, girando... girando... não sei direito o que sinto... não é pena, não é remorso... é um mal estar, mas não sei o que é.

Não quero ser a vítima encantada, a donzela arrependida da situação. Mas sinto um nó me apertando a garganta.... sinto minha existência sufocar. Não é meu pai, não pode ser meu pai. Eu não gosto dele tanto assim. O ocorrido não justifica esse estado.

Flavius... Felipe... Michel.... Eu.... Natasha, minha vida. Tudo passa por mim, escorre pelo meu corpo. Toda essa merda de vida que ando tendo nessa cidade. Essa paixão. Esse recomeço que acabou caindo no mesmo buraco. E há quanto tempo não danço? Onde está meu interesse por participar de festivais, apresentações, grupos? Onde estão meus sonhos? Meu reflexo... minha imagem... cadê?

Como vim parar nessa cidade? Quando comecei a agir como um coronel, fazendo ameaças preparando emboscadas.... despenquei numa armadilha! Se não tomar cuidado posso acabar por me tornar uma miniatura inconsistente do meu pai... meu pai... girando numa cadeira de rodas...’’

...

Natasha olhava para o jardim. Sentia-se velha naquela tarde. Uma velha senhora a observar um jardim. Estava preocupada. Sabia o peso da situação. Felipe se sentou ao seu lado:

—Acha que o Francis vai ficar bem?

—Não. – respondeu.- Não acho.

—Também acho que não. Ele quer se fazer de forte, mas no fundo é só um menino assustado.

—E quem não é?

Disse isso olhando para as rosas. ‘’Chico, faz tão pouco tempo... e você já é tão importante.’’. Fechou os olhos, a campainha tocou:

—É o Flavius. – ela disse.

—Vou abrir.

—Antes que ele suba. – disse Natasha – Diga que quero falar com ele.

...

—Oi... Natasha?

—Senta aqui, Flavius. Olha pra mim.

Ela estava muito séria.

—O que foi?

—Isso é importante, Flavius. Eu sei que você não o ama. Então não finja que ama, nem para você mesmo.

—Do que está falando?

—Dê um fim nisso enquanto é tempo. O Chico é uma pessoa sedutora, a gente se envolve e não consegue fugir dele. Você não o ama. Não se deixe enganar. Isso vai acabar com vocês dois.

—Pode ficar tranqüila. Não vou me deixar levar.

Flavius subiu. Natasha ficou a observá-lo:

—Droga, ele vai ceder.

...

Eu sentei no sofá e fiquei olhando para a televisão. Parecia que tínhamos um doente em estado terminal na casa. Ficava cada um num canto amuado, preocupado, pensando em como proceder. Eu havia me decidido, ia pedir desculpas. Fui duro com ele. Mas também fui pego de surpresa pela notícia. O modo como o Fip fala as coisas, a maneira como ele tenta não se importar, às vezes me irrita.

É a primeira vez que vejo Natasha preocupada, inquieta. Isso me deixa incomodado. Ela, geralmente, ignora a todos esses pitís. Mas hoje não, hoje ela decidiu encarar. Isso me preocupa. Felipe anda de um lado para o outro. Flavius está lá em cima. Só deus sabe o que pode acontecer agora.

...

’-Posso entrar? – ele disse colocando a cabeça para dentro do quarto.

—Adianta dizer que não?

—Adianta.

—Droga, Flavius, o que você está fazendo aqui?

—Me disseram que você não estava bem.

—E você julgou que vê-lo podia me fazer melhorar?

Na verdade podia, mas não estava disposto a admitir. Ele se preocupou comigo, que coisa mais bonita! Meu coração batia como se eu tivesse 13 anos e meu primeiro namoradinho me desse um beijo. Odeio essa comparação mas não julgo que você mereça uma melhor. Sim, estou implicando com você, leitor(a) também. Afinal de contas não é educado ler, desse modo, as memórias de outra pessoa... Mas não era disso que eu falava, o que era? Ah sim. Flavius, como sempre. Estava ali, parado diante da porta me olhando com aqueles olhos bonitos:

—Se você quiser, eu vou embora.

—Se eu quisesse você já teria ido.

—Vamos ficar de briguinha agora?

Sentei na cama e disse sorrindo:

—Foi você quem começou.

—Eu comecei? Eu comecei o que?

—A me encher o saco com essas crisesinhas de ciúmes.

Ele entrou e bateu a porta atrás de si:

—Aquilo que você fez foi baixo, Fip! Você sabia que eu gostava dele!

—E você sabe que eu gosto de ti e, nem por isso se importou em esfregar sua paixão por ele na minha cara.

Ele desviou o olhar de mim como se ponderasse a situação:

—Bem... mas... mas é diferente....

—Não, não é.

—E você agiu por vingança, então?

—Eu agi por tesão, Flavius. Porque aquele loirinho desgramado me dá um puta tesão, foi por isso!

Ele corou. Ficou me olhando com a pele rubra pela vergonha. Tentou dizer qualquer coisa mas não conseguiu articular palavras. Por fim disse:

—Já tinha me esquecido dessa sua mania de ser desagradável.

—Sincero, você quer dizer.

—Prefiro desagradável.

Ele veio andando na minha direção com aquele jeito manso, sentou-se do meu lado, arrumou meus cabelos e disse:

—Michel me contou o que aconteceu. Como você está se sentindo?

—Não sei exatamente. – tirei a mão dele do meu cabelo – E você? Como está se sentindo?

—Sozinho.

—Hunf. Idiota.

—Idiota? Eu? Por quê?

—O porquê eu não sei. Mas que você é um grande idiota, você é! Fica ai se fazendo de vítima, morrendo de auto-piedade! Você não precisa disso, seu idiota!

Ele abaixou a cabeça:

—Talvez eu precise de ajuda. Sabe, Fip, eu tenho coisas que não consigo lidar sozinho.

—E quem consegue? – sorri passando a mão no seu rosto.

Ele olhou para mim, tentou forçar um sorriso. Eu entendi a sua técnica, queria despejar os seus problemas em cima de mim para me distrair, para que eu cuidasse dele e,com isso esquecesse de mim. É bonito, funciona... mas hoje não....

—Desculpa, Fip.

—Desculpo. Você me desculpa?

—Sim.

—Somos amigos de novo?

—Nunca deixamos de ser.

Nos abraçamos. Droga, nos abraçamos. Eu odeio amar esse cretino:

—Eu preciso me arrumar. – eu disse – Tenho que ir visitar o velho no hospital.

—Quer que eu vá com você?

—Não. É uma viagem longa, você tem a escola, e sua tia. Eu vou com Felipe. Fique aqui e aproveite para se aproximar do Michel.

—Eu não te entendo, Fip. Diz que gosta de mim e fica me empurrando pro Michel.

—Eu não te entendo, Flavius. Diz que gosta do Michel e, quando tento te empurrar pra ele você fala de mim.

Corou de novo, abaixou a cabeça:

—É que... é que... poxa, eu não quero machucar você....

—Mas isso não é uma coisa que você possa decidir. Quem decide até que ponto você pode ou não me machucar sou eu. Não depende de você. Vai ser feliz, menino. Eu me viro com a minha felicidade.

—Eu não sei se tenho chances com Michel.

—E daí? Vai se conformar comigo mesmo, é isso?

—Não é bem assim.

—Então tenta ficar com o menino! Que droga, Flavius!

Ele estava visivelmente perturbado com o diálogo. Quis piorar a situação:

—Bom de cama e bem dotado eu sei que ele é.

Ele olhou para mim com os olhos tão arregalados que parecia que iam saltar da órbita:

—Ah, seu cretino! Como eu gosto de você!

Ele correu na minha direção e me abraçou. Ah, Flavius, eu nunca sei como você vai reagir! Esse moleque sempre me surpreende. Abracei-o de volta. Apertei seus ossinhos frágeis sentindo que alguma coisa no meu coração estava de volta no lugar. Como eu gosto desse cretino!’’


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