Sangue escrita por Salomé Abdala


Capítulo 23
Capítulo 21 - Ciúmes




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No outro dia acordei pela manhã decidido a visitar meus pais. Dizer que sentia saudades, que estava bem. Queria receber notícias deles também. Levantei-me e fiquei um tempo a mirar meu quarto (pois que a essa altura já o considerava meu). Era bonita a mobília, a decoração, mas tudo muito imparcial, limpo, formal. Quase um quarto de hotel. Um quarto de visitas. É o que eu era, uma visita.

Encarei a janela que dava vista para o jardim. O monte de terra que começava a germinar vida, a se misturar a paisagem. Talvez esteja acontecendo o mesmo com meu coração. Estou a germinar vida! Minha dor está finalmente se acalmando. Sinto como se estivesse, de repente, despertado de um coma e percebido que é hora de começar a viver!

Levanto da cama e caminho em direção ao banheiro. Existem três banheiros na casa, dois no andar de cima e um no andar de baixo. Gosto do que fica em baixo, por quase não ser usado, sinto-o como se fosse meu. E é engraçado, não faz muito tempo que estou aqui e já sinto até ciúmes desse banheiro. Como se ele pertencesse, de fato, a mim.

Passo pela porta do quarto de Fip, a porta está trancada. Imagino que ele deva ter se deitado com Felipe. Fip nunca dorme sozinho, quando não é Flavius, sou eu, Natasha ou Felipe. Sozinho ele nunca fica... e se diz forte, independente. Parece uma piada. De muito bom gosto, mas ainda assim uma piada.

...

—Flavius, fico feliz que tenha amigos agora. – disse Sofia enquanto mastigava seus cereais – Até me parece mais corado.

—É... – respondeu o rapaz num tom quase morto.

—Eu gosto daquele menino, como é o nome dele? Fit, Fik, Lig... Vocês arrumam cada nome – riu-se – Desde quando isso é nome de gente? Mas ele é um rapaz bonito, não é? Achei ele lindo. E muito divertido, simpático. Você podia chamar ele para almoçar aqui em casa qualquer dia desses. Eu posso preparar aquela lasanha que você gosta. O que acha?

Flavius sentiu o alimento remexendo em seu estômago. Tudo o que não queria e não precisava era ouvir o nome de Fip, aquele cafajeste traidor! ‘’Divertido? Simpático?’’ ele era um desgraçado! Um desqualificado!... mas bonito, isso era sim! Lindo! E isso era o que dava mais ódio! O fato de ser difícil para nós odiar as pessoas bonitas.

Nem toda raiva, nem todo rancor conseguiam apagar a suavidade de seus traços, a beleza esculpida de seu corpo, seu sorriso, sua voz. E Flavius sentia uma repulsa ao imaginar que aquele corpo não seria mais seu! Mas nem gostaria que fosse! Não queria vê-lo nunca mais! Almoçar aqui? Nem em um milhão de anos! Mas com certeza ele aceitaria o convite. Soltaria aquele sorriso bonito e diria ‘’Muito bem, senhor Flavius, eu vou até seu covil para me alimentar de suas vísceras.’’. Talvez dissesse isso ao pé de sua orelha, ou puxando-o pela camisa para se aproximar de seu rosto... maldito!

—Não quero chamá-lo! – disse numa explosão.

—Por que? Vocês brigaram? É por isso que está assim tristinho? Ah, não se preocupe me querido, essas coisas são assim mesmo! Logo vocês...

—EU NÃO QUERO FALAR SOBRE ISSO!

—Ai credo! Eu só levo grito nessa casa! – disse se levantando – Eu vou trabalhar que eu ganho mais! – pegou a chave do carro e caminhou ainda falando – Que coisa! Não se pode falar nada! Sempre no grito! Eu devia morrer logo pra te deixar em...

E sua voz foi desaparecendo aos poucos até não se ouvir mais. Deixando Flavius sozinho com seus pensamentos, suas mágoas e feridas recém abertas. Que Fip transasse com outras pessoas, isso ele podia esperar, e até mesmo entender. Mas Michel! Michel não era disso! E pensar que ele chegou a acreditar que o garoto estava começando a nutrir algum sentimento por ele. ‘’Idiota! Burro! Cretino! Por que ele haveria de se interessar?’’ pensou enquanto fazia uma lista de defeitos irremediáveis em sua cabeça.

‘’Só um idiota gostaria de um esquisito, inseguro, magrelo e feio como você! É claro que ele preferiria ao Fip! Ele é bonito, é seguro de si, comunicativo, atraente! E você? Você é o que? Um inseguro, medroso, desajustado, repulsivo... triste...’’ foi quando lhe caíra a ficha, era uma pessoa triste. Insatisfeita com o destino que sua vida levou, indefesa diante do mundo, das pessoas, do destino que recebera até então. Era triste, mais nada. Uma pessoa sem ninguém.

E as lágrimas logo vieram aos olhos, ele não tinha ninguém. Então vieram à sua memória palavras e momentos soltos, que se remendavam num recorte esquisito onde todas suas rejeições, todas as zombarias, xingamentos e agressões se acumulavam, como que tentando dar apoio para a nova teoria. Triste sim. E rejeitado, odiado! Triste porque as pessoas só o faziam mal.

E, num ato inconsciente, puxava de sua memória mais atos de agressão, mais momentos em que tudo que precisou foi de alguém que lhe estendesse a mão. Amor, carinho, proteção. Era tudo que pedia. Tudo o que queria.... um pouco de atenção. Mas nunca recebera, nunca tivera nada em sua vida. Sempre ouvira das pessoas um sonoro ‘’não’’.

‘’Quero morrer! Quero morrer e nascer outra pessoa! Mais bonita, mais segura, mais feliz! Que consiga se comunicar com clareza, falar com as pessoas, se fazer entender. Que seja desejável, agradável, amável... Sim, se tivesse um nariz menor! Uma pele mais morena... no resto dava-se um jeito! Que fosse bonito de um modo que chamasse a atenção... que me tirasse a invisibilidade... como Fip ... se eu fosse ao menos um pouco parecido com Michel, teria todo o amor que quisesse, que pudesse escolher. Todas as meninas e alguns meninos caíam de amores por ele! Até mesmo o Fip.... Michel e Fip... com nenhum dos dois posso competir! Ambos muito mais bonitos, muito mais atraentes... no meio deles eu sou ninguém.’’ .

Lembrou-se de quando acordou no quarto de Fip, de sua primeira conversa. Achara-o bonito no primeiro olhar, seus olhos, seu sorriso, suas feições. E ele parecia tão calmo, tão acima dos julgamentos mesquinhos que os outros lhe reservavam.

‘’—Eu estava fazendo uma turnê pela cidade e vi você esborrachado no chão. Como não achei ninguém que se responsabilizasse por ti eu peguei você pra mim. Algum problema? – ele disse.

—Acho que não. Absolutamente ninguém vai sentir minha falta mesmo.

—A partir de agora, eu vou... – ele disse, e sorriu, fazendo com que uma tempestade revirasse meu coração. Ele me estendeu a mão. Amou-me! Disse que eu era alguém, que eu existia para ele! Mas mentiu! Mentiu descaradamente! Fez-me de palhaço! De idiota! Um idiota! Isso que sou! Como pude acreditar que ele se interessaria por mim? Por mim que sou um nada sem atrativos! Um qualquer!’’

Atirou-se no chão em prantos. A essa altura não sabia se lhe doía mais a traição de Fip ou de Michel. Sabia apenas que sentia dor, uma dor maior do que tudo que já sofrera, capaz de fazê-lo perder os sentidos, explodir, morrer... e depois emergir novamente, como em um parto, para ser lançado na escuridão. Sozinho. E novamente a dor. Não teria fim. Seria amargo e solitário pelo resto da vida. Imaginava-se famoso, rico, poderoso, grandioso, e todos se perguntando e pensando ‘’Olha só como Flavius se deu bem. Como ele é maravilhoso, mas parece infeliz.’’.

Sim, em sua mente as pessoas prestavam atenção a sua dor! Elas conheciam sua existência e preocupavam-se com ela até. Desejavam-no. Ansiavam por sua atenção, por sua companhia. Mas ele estaria sempre ocupado demais para ceder. E quando todos recebessem a notícia de seu suicídio se perguntariam o por que.

Porque eu sou sozinho! Ele respondia a si mesmo. Porque cresci e existi sem o auxilio de vocês. E então ele volta para a realidade. Está só, deitado no chão da cozinha, em prantos. Ninguém o assiste. Não há testemunhas, sua vida é um espetáculo triunfante de camarotes vazios.

Onde estará Fip, aquele que jurava se importar? Sorrindo com os outros, provavelmente. E ele aqui... a sós... deitado no chão da cozinha. Novamente a escuridão... novamente a dor...

...

No caminho para a casa de meus pais passei pela porta da residência onde Flavius mora. O carro de sua tia não estava na garagem, ela devia ter saído para trabalhar. Talvez fosse bom que eu batesse na porta. Explicasse minha situação, pedisse desculpas. Sim isso seria muito bom!

Mas quando me vi diante da porta, congelei. Fiquei parado diante dela por vários minutos. A mão estacionada no meio do caminho entre meu corpo e a campainha. O que lhe diria? Como pediria desculpas? Se ele e Fip não eram namorados porque deveria me desculpar?

Ele disse que não queria ver nenhum de nós. Talvez fosse melhor não perturbar. Mas talvez ele precise. Talvez precise de apoio...não, melhor não. Já tenho meus pais para enfrentar hoje. É melhor que eu esteja bem quando bater na porta deles.

Dei meia volta. Caminhei em direção a construção que um dia chamei de lar....

Toquei a campainha, a empregada atendeu. Não pude deixar de lembrar das insinuações de Fip de que ela e meu pai mantinham um caso. Senti nojo:

—Senhor Michel! – ela disse – Que bom que o Senhor voltou! Estávamos todos preocupados! Sua mãe tentou chamar a polícia mas eles disseram que se você é maior de idade e saiu por conta própria não há nada que eles possam fazer. Ela ficou tão nervosa. Disse que vai processar o menino, como é o nome dele? Aquele que chegou agora. Ela e seu pai brigam o tempo todo porque ela acha que ele tem que tomar alguma atitude. Mas ele diz que você tem que quebrar a cara e aprender com a vida, para depois voltar com o rabo entre as pernas e dar valor para o que eles te dão...

—Tá bom. Tá bom. – disse um pouco sem paciência – Onde está minha mãe?

—Ela foi à igreja. Seu pai foi trabalhar.

—Bem. Então diga a ela que vim até aqui. Que estou bem e não pretendo voltar, mas que não quero que fiquemos brigados. Que volto mais tarde.

—Si... sim senhor...

Disse ela com uma expressão surpresa. Voltei para a casa de Fip evitando os caminhos que passassem pela igreja. Estava aliviado em não ver minha mãe e não pretendia cruzar com ela no caminho de volta.

...

—Quer dizer que você pensou em bater na minha porta e me pedir desculpas naquele dia? – perguntou Flavius.

—Sim, mas achei que não faria a menor diferença.

—Está enganado, Michel. Isso teria feito toda a diferença. – disse num tom pensativo, como se imaginando dentro de si como seriam as coisas caso isso tivesse ocorrido.

...

No outro dia quando eu acordei, tava tudo muito calmo. Eu nunca mais dormi na minha casa, ficava sempre na casa do Chico. Dormia no quarto do andar de baixo porque não conseguia descer a escada sozinha por causa dos gessos.

Acordei umas dez da manhã e fui para a cozinha, o Michel já tinha acordado, sei porque tinha restos de pão de forma na mesa e o único aqui que gostava desse pão era ele. Comi meu pedaço de torta e fui para a sala. Chico nunca acorda antes do meio dia então não preciso nem esperar. Agora o Felipe, bem, geralmente ele acorda cedo, mas vai saber o que aconteceu entre os dois naquela noite.

...

Felipe acordou por acaso. Abriu os olhos como que por instinto, sem que nenhum estímulo externo o despertasse do sono. Estava nos braços de Fip. Não haviam transado na noite anterior, apenas se deitaram juntos, abraçados, recordaram atos de sua vida no passado e adormeceram.

Sentia o clima fresco da manhã e a pele quente de Fip sobre seu corpo (estavam ambos sem camisa). E tentou se virar sem acordar o primo. Insucesso, assim que Felipe se moveu, o outro garoto acordou, ainda sonolento e o puxou de volta para perto de si:

—Onde o senhor pensa que vai?

—Ia me levantar.

—Ah não. Não vai levantar não. – disse segurando sua mão, trançando seus dedos – Tá tão bom aqui. – e beijou sua bochecha.

Felipe não contestou, ajeitou seu corpo ao de Fip e adormeceu novamente.

...

Acordou de sobressalto:

—Deus, que horas são?

—O que? – perguntou Fip assustado. – O que aconteceu?

—Que horas são?

—Não sei. – sentou-se na cama – Vou olhar. – Levantou-se e caminhou até a porta que levava ao corredor, abriu-a e mirou o relógio de pêndulo que se encontrava próximo a escada:

—São onze e vinte e cinco. – disse ainda sonolento.

—Nossa, estou atrasado! – levantou-se apressado vestindo a camisa.

—Atrasado? Para que?

E Fip se deixou observar o rapaz. Gostava dele assim, ao acabar de acordar, com a elegância em desalinho:

—Combinei com Flavius que almoçaria na casa dele hoje. – disse.

—Ah. – disse fechando a cara e saindo do quarto batendo a porta.

Felipe, por causa da pressa, ignorou-o. Correu até o banheiro, tomou o banho mais rápido que pôde, escovou os dentes e desceu apressado a escada quando deu de frente com um Fip de cara amarrada sentado na grande poltrona que pertencera ao seu avô:

—O que foi? Por que esta de cara? – perguntou.

—Você vai almoçar na casa do Flavius?

—Sim, ele me chamou.

Fip se levantou e caminhou em direção ao rapaz:

—Mas vai sair assim? – disse abotoando o ultimo botão de sua camisa – Com o cabelo desalinhado?

—Desalinhado? Me cabelo parece...

Fip passou a mão no seu cabelo com força desmanchando, em parte, seu penteado:

—Divirta-se. – disse num tom mal humorado enquanto subia a escada.

Com a face dolorida, Felipe se levantou e ficou a observar o primo subir a escada:

—Por que fez isso?

—Por nada, meu querido, para desejar boa sorte. – sorriu com ironia.

‘’Francis... você está... com ciúmes?’’ – pensou sorrindo, ignorando completamente que Fip poderia estar com mais ciúmes de Flavius do que dele.

...


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