Sangue escrita por Salomé Abdala


Capítulo 19
Capítulo 17 - Rosas rasgadas




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‘’-Muita coisa eu posso perdoar. – como o roubo, abuso de poder, assassinatos e apropriação ilegal de terras – Agora, o que seu avô fez! Ah, isso não! Ele desonrou a menina! Ele, um carcamano de cinqüenta e poucos anos, desonrou a pobre da menina! – Ela disse num tom de indignação que não convenceria nem mesmo a mãe da pobre menina. Disse enquanto soltava a fumaça do cigarro que fumava. Era uma senhora muito gorda e imponente naquele vestido florido cheio de rendas. Tão ultrapassado quanto seu jeito. Uma mulher e tanto, pura poesia, dona Guilhermina – E ela não tinha mais do que doze anos! Ah, não! Por Deus! Isso eu não poderia perdoar! – Na verdade poderia, se tivesse acontecido na família dela – Não na minha cidade! Vocês Perez fedem! E eu não quero vocês aqui!

Ela cheirava a colônia vencida. Seus óculos redondos de armação dourada ficavam na ponta do nariz de modo que faziam seus olhos parecerem pequenos. Ela tinha um jeito desajeitado de se mover. Meio cômico até, mas que a dava um ar elegante e digno. Difícil de explicar. Tinha nela um quê de dignidade vencida. De quem já foi grande para valer e hoje sobrevive das memórias do que fez. Uma senhora de quase oitenta anos, com um vigor que deixava meu avô no chinelo cinqüenta vezes:

—Minha querida Guilhermina, eu não tenho o menor interesse em me dedicar à política, aliar-me a sua ou a qualquer outra gente. Nem vou sujar meus pés na lama desse curral. – Eu estava de terno, cabelos bem penteados, pose de pavão – Mudei-me para essa cidade a fim de me manter longe dos meus, e você não pode me negar esse direito.

—Há! Eu soube da sua visita aos Angoti rapazinho. E agora corre pela cidade o boato de que você fez o filho deles fugir de casa e que está metido com o sobrinho da Sofia! Eu não sei o que você esta tramando rapazinho! Mas eu sinto o fedor daqui! Eu sei que coisa boa não é! E se isso está irritando os Angoti, eu gosto de você. – soltou uma risada estrondosa – Eu era muito amiga da sua mãe, você sabe. Nunca perdoei seu pai por tudo que ele fazia com ela. Nem com você! Mas me conte, um rapaz jovem como você não deve querer viver numa cidade morta que nem essa, que te traz aqui?

—Eu não quero estar aqui. Mas eu tive uns problemas na minha família, eu não tenho pra onde ir.

—Há, disso eu não duvido! Você é mesmo um patife abusado! – riu-se – Igualzinho ao seu avô!

—Não me compare com aquele porco velho, Dona Guilhermina, eu quero muito gostar de você.

—Muito bem meu jovem Perez. Retiro então o que disse. Também quero muito gostar de você. Então? Qual se problema com os Perez?

—Você jura que nem imagina? – eu disse fazendo um gesto dramaticamente efeminado.

Ela fez uma cara que ficava entre uma aceitação forçada e o nojo:

—Eu sempre senti muito por não poder proteger sua mãe do seu pai. Mas você eu posso defender. Seu pai jamais encostará um só dedo em você.’’

...

—Nossa onde você estava com essa pose toda? Foi a um casamento? – perguntei quando o Chico entrou.

—Digamos que sim. – Ele respondeu num tom abusado – Cadê todo mundo?

—Aquele menino magrinho que você gosta voltou pra casa. Disse que tinha que almoçar com a tia dele. O seu primo ta tomando banho e o Michel... ué, eu não sei onde ele ta não.

—Nem importa. Você está com fome?

—Não, eu já almocei. Esse gesso está me incomodando tanto!

—O médico disse que você logo vai se livrar do gesso da perna. E quando você estiver livre de todos os gessos eu te conto quem fez isso com você.

—Peraí! Você sabe quem me atropelou?

—Óbvio que eu sei. E eu não vi tudo?

—Quem foi? Me conta!

—Natasha, querida, eu acabei de dizer que só vou contar quando você estiver totalmente recuperada.

—Mas por que?

—Porque eu quero ver você pegando essa pessoa de porrada. E você acha que eu não sei que você vai fazer isso?

—É claro que eu vou! Mas me conta!

—Não, se eu contar agora você vai ter tempo para se acalmar até tirar o gesso e eu vou perder um bom barraco. Desculpe, mas por agora eu não vou contar não.

—Cachorro.

...

—Então essa é sua casa? – perguntou Michel enquanto entrava na sala.

—Sim. – eu disse sem acreditar que ele estava lá dentro.

—Eu sempre quis morar numa casa pequena. É tudo tão impessoal nessas casas grandes.

Eu juro que quis dizer ‘’você poderia morar aqui se quisesse’’ mas achei que seria abusado demais. Disse apenas:

—É bom. Aqui é tranqüilo. Minha tia trabalha o dia todo, eu fico a maior parte do tempo sozinho.

—Eu nunca ficava sozinho em casa. Sempre tinha uma série de empregados por lá.

—Imagino como deve ser ruim. Mas você saiu mesmo de casa?

—Sim.

—E seus pais nem foram atrás de você?

—Eles virão. Eu sei que virão.

—E como você está?

—Na verdade não muito bem. As coisas ainda estão muito confusas na minha cabeça. É muito difícil ter raiva dos própios pais. A gente fica se sentindo culpado.

—Eu sei. Eu sempre tive certa raiva da minha mãe por ela ter se matado. Mas nunca gostei de admitir isso.

—Deve ter sido duro para você. É verdade o que dizem? Que ela se matou na sua frente?

—É. – disse com a cabeça baixa – A imagem disso ainda roda na minha cabeça.

Ele me abraçou forte e disse:

—Eu imagino o quanto deve ser difícil.

Ele tinha um cheiro bom. Suave. Diferente do cheiro do Fip, que era forte, quase selvagem. Michel não, ele cheirava a perfume, a pessoa de fino trato. Cheirava a romantismo. Eu o abracei de volta:

—O Fip me contou a sua história também.

Ele me soltou:

—Não que você já não soubesse.

—Eu sabia o mesmo tanto que você.

—Eu não entendo por que fizeram isso com a gente. – ele disse segurando o choro, eu o fiz sentar na minha cama ( porque a essa altura já estávamos no meu quarto) e o abracei de lado. – Eu não consigo entender.

—As pessoas são cruéis, Michel. Eu sempre quis poder ajudar você, sempre quis te dar meu apoio, mas nunca tive oportunidade.

Ele olhou para mim e sorriu:

—Eu também, Flavius, sempre quis ajudar você.

—Estamos nos ajudando agora, não?

—É, estamos sim.

Nos abraçamos.

...

‘’ – E aí? Como se saiu? – Felipe perguntou.

—Bem.

—O que foi? Você está triste por que?

Porque eu sabia que eles estavam juntos, Michel e Flavius. Sabia que eles estavam se apoiando mutuamente nesse instante. Mas eu não podia dizer isso a Felipe. Sabia que dizer a ele que estava ferido por causa de um amor mal correspondido iria magoa-lo, talvez tanto quanto eu estava magoado agora. Menti:

—Lembranças.

—Eu sei como é.

Ele estava novamente com aquele cabelo bem penteado, a roupa impecável, tudo no seu devido lugar. Aquilo me irritava tanto que eu mal conseguia olhar. Era como se ele fosse tudo o que sempre tentaram me tornar. Tudo o que eu sempre quis negar estava ali, no seu jeito de se vestir, pentear-se, portar-se. Me dava nojo, revolta. Eu sofri tanto para negar isso, para me recusar a seguir esse padrão! E ele não! Ele estava ali, direitinho como era pra ser. O bom menininho de deus. O bom burguês. O que lhe faltava agora? Fazer uma boa faculdade, casar-se com uma garota inocente para manter as aparências e ter bonitos filhos par adestra-los também?

Ah, Felipe, por que você tem que ser assim? Medroso, mesquinho, mentiroso. Eu conheço você! Sei que você não é nada disso! Você não é o menininho da mamãe! Você nem gosta da sua mãe! Mas faz tudo o que ela quer! Do jeito que ela quer! Por que?

Ele me encarava como se lesse meus pensamentos, com aqueles olhos arregalados de ‘desculpe, por favor’. Depois abaixou os olhos e disse:

—Quer ficar sozinho?

—Nunca mais.

Ele me olhou de volta:

—Por que você fugiu de mim?

—Nós já conversamos sobre isso, Felipe. Eu não fugi de você!

—Você não respondia as minhas cartas.

—Eu não recebia as suas cartas.

—Porque você ficou com o nosso tio? Você me esqueceu tão rápido assim?

—Eu não fiquei com o nosso tio, Felipe. Nos já conversamos sobre isso.

—Eu precisei de você, Francis. Eu precisei tanto de você! Da sua força. Você não sabe o quanto eu sofri quando me mandaram para longe de você!

Ele disse como se tivesse derretendo. Me deu dó. Eu imagino o que ele passou:

—Mas agora eu estou aqui, Felipe. E não vou abandonar você.

—Você está aqui porque eu vim atrás de você! Caso o contrário não estaria! Por que você veio para essa roça? Por que não foi atrás de mim?

—Eu achava que você nem se lembrava mais de mim.

—Mentira. Era você quem não se lembrava mais de mim.

Droga, ele estava certo. Como agir? Era uma merda admitir isso, mas eu nunca fui realmente apaixonado por ele. É fato que, para mim, Felipe significou muito pouco. Mas não deixa de ser ruim saber que ele sofreu por minha causa. Eu me sinto mal com isso, apesar de a presença dele me irritar. Eu gostaria que ele fosse embora! Gostaria mesmo! Mas ao mesmo tempo eu queria que ele ficasse.

Era difícil explicar. Eu gostava dele, mas quando ele estava longe... não quando estava aqui, na minha frente com esse cabelinho bem penteado!

—Eu acho que vou embora, Francis.

—E vai para onde? Voltar pra sua mãe?

Ele me olhou assustado:

—Eu tenho medo, Francis. Se eles descobrem que estamos aqui, juntos, Pelo amor de Deus.

—Não tenha medo. Aqui estamos a salvo.

—Você tem certeza disso?

—Tenho. – menti. ’’

...


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