Sangue escrita por Salomé Abdala


Capítulo 18
Capítulo 16 - Reticências




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—Agora somos só nos dois. – ele disse naquele tom de confronto que tive a oportunidade de presenciar algumas vezes. Devo confessar que meu sangue gelou. Flavius estava bastante mudado, mais ousado e corajoso, não sabia o que podia esperar dele. Sempre me escondi atrás de sua insegurança para não tocar em certos assuntos e tenho medo de que ele decida desenterra-los de repente:

—Bang! – eu disse num gesto teatral – Estejam prontos, marinheiros!

—E eu não pretendo tornar as coisas mais fáceis para você.

Ele disse com uma ironia fina que me lembrou ao Fip:

—Então siga em frente, crucifique-me.

—Eu não quero te crucificar. Só preciso dizer o que nunca disse.

—Olha, Flavius... eu não quero entrar nesse...

—Eu não matei o Fip, ouviu bem?

—Quem está dizendo isso?

—Eu te conheço, Michel!

Calei-me. No fundo ele tinha razão. Flavius prosseguiu:

—Eu não o matei, Michel. Eu não tive nada a ver com o suicídio dele, NADA!

Ele falava com uma certa agressividade, cuspindo as palavras como quem cuspe um desabafo:

—Tudo bem, Flavius.

—E não fui eu quem entregou você e o Cláudio para o seu pai!

Engoli em seco. Fui completamente pego de surpresa por essa outra afirmação, não esperava que Flavius tocasse nesse assunto, não tão diretamente. Ele estava realmente muito mudado! Muito diferente daquele garoto frágil e inocente que conheci. Agora compreendo o que Fip me dizia sobre ele, sobre sua personalidade dúbia e cheia de força:

—Fla... Flavius... eu... eu nunca disse que...

—Disse sim. De forma indireta, mas disse! Não fui eu! Eu nem sabia de vocês dois até a cidade toda começar a comentar.

—Mas me disseram que você tinha nos visto e...

—Não disseram não. Te disseram que alguém tinha os visto. E você deduziu que era eu por causa do jeito que eu te olhava.

—E quem nos viu então?

—Como é que eu vou saber?! Ninguém falava comigo naquela merda de cidade! Você não se lembra?

—É, eu me lembro sim. – disse com a cabeça baixa. – Mas, olha, Flavius, você não precisa me dizer essas coisas...

—Preciso sim. Você sempre me tratou com relutância, Michel, e eu sei que era por isso.

—Eu não te tratava com relutância.

—Tratava sim. Você só aceitava a minha presença por causa do Fip.

—Isso não é verdade.

—É sim.

Calei-me. Era sim verdade. Mas como admitir uma coisa dessas assim?

—E tem mais. – ele disse.

—Mais?

—Você faz um julgamento muito errado de mim. Quando essa história toda do diário acabar você perceberá o quanto foi injusto.

—Eu não faço nenhum tipo de julgamento de você, Flavius!

—Ai, Michel, me poupe disso. Nós não somos mais aquelas crianças bobas de outras épocas. Nós nem vivemos mais na mesma cidade. Não precisamos mais manter essa política de boas relações. Você verá no fim das contas, o quanto foi injusto comigo.

—Você já leu esse diário, não leu?

Ele me fitou como quem tenta manter a dignidade de acusador:

—Sim.

—E quem me garante que você não o modificou?

—Viu? É exatamente disso que eu estou falando, voê faz um juízo muito errado de mim...

—Não é que eu faça um juízo errado de você... eu só...

—Admita, Michel, você sempre teve ciúmes da atenção que o Fip dava para mim.

—Você também.

—Mas você não suportou a idéia de nós termos vindo para cá morar juntos sem você.

—Da mesma forma que eu não suporto a idéia de você ter se casado com esse total desconhecido.

Flavius arregalou os olhos assumindo novamente a postura frágil que sempre teve. Podia apostar meus dois olhos que suas pernas estavam tremendo agora. Aproveitei-me do silêncio que ele fez e me levantei para ir embora:

—É melhor irmos dormir. – eu disse – Precisamos acordar cedo amanhã.

...

‘’No outro dia pela manhã acordei de súbito por causa de um pesadelo. Havia sonhado com meu pai. Felipe estava ao meu lado. Gostava dele pela manhã, com os cabelos bagunçados, sem aquela pose engomadinha que me irritava tanto. Ainda dormia, com um meio sorriso nos lábios muito vermelhos. Ele era mesmo muito parecido comigo. Gostava disso. Tinha um corpo bonito, muito magro, ossudo, sardas pelo peito, pouca coisa mudou... engraçado isso. Não imaginava que o teria novamente em minha cama. Lembro-me de quando tínhamos, sei lá, quatorze, quinze anos e dormíamos juntos assim e fazíamos sexo escondido dos nossos pais. É estranho dizer isso, mas tive vontade de chorar. É engraçado como nosso passado nos faz querer chorar... nós mesmos, nossa história... isso é tão pessoal... o tipo de coisa que não se divide com ninguém, que nos faz nos sentir únicos e ao mesmo tempo sozinhos...

Levantei-me, estava me sentindo muito esquisito. Tinha a sensação de que a qualquer momento meu pai abriria aquela porta, com o cinto nas mãos gritando injúrias para nós dois. E logo apareceria meu avô, nossos tios e toda a família. Depois seríamos novamente expostos na sala, na frente de todos, completamente nus, em julgamento. Ouvindo as acusações e os xingamentos de todos. Meu corpo todo tremia, tinha sensação de febre. Essas eram lembranças que não queria ter.

Vesti-me e saí do quarto. Antes disso, olhei para Felipe mais uma vez. Tinha sido injusto com ele. Eu sei o quanto foi difícil, doído tudo isso. Eu não podia exigir que ele simplesmente enfrentasse tudo e todos. Ele era/é ainda um garoto. Eu não podia chamá-lo verme fraco... não mais.

Desci as escadas e lá estavam eles, os meus meninos. Natasha deitada no chão, numa pose esquisita, boca aberta, garrafa de vinho na mão. Flavius dormindo encostado no peito de Michel que dormia de braços abertos no chão. Tento não me perguntar o que houve entre eles na noite anterior. Mas que bobagem a minha! E eu não tinha acabado de transar com meu primo? Como poderia exigir que Flavius não fizesse nada? Ah, esses puritanismos, querendo ou não eles acabam nos fisgando.

Segui até a cozinha me espreguiçando, fui até a caixinha onde guardava as correspondências. Remexi numas cartas velhas até encontra-la: a carta da velha Guilhermina, a mulher que tocou meu avô dessa cidade. Se alguém pode me defender do meu pai, esse alguém é ela...’’

...

—E onde está esse tal de Felipe? – perguntou Pierre.

Os garotos se entreolharam confusos. Flavius abaixou a cabeça e disse:

—Não sabemos. É engraçado ver essa manifestação de ciúmes do Fip. Ele nunca demonstrava nada do gênero.

—Ah, então você está surpreso, Flavius? – disse Michel – Pensei que você já conhecesse o conteúdo desse diário.

—Eu não o li todo, Michel.

—Então você já o leu? – Perguntou Rebeca.

—Eu e Fip vivemos juntos. Nesse tempo eu cheguei a ler algumas coisas. Mas não tudo.

—Sem ele saber? – indagou Natasha.

—E quando alguém fez alguma coisa sem que Fip o soubesse? Vou aproveitar a deixa e começar meu relato.

...

Acordei com o som dos passos de Fip pelo tablado. Foi quando percebi que estava deitado sob o peito de Michel. Tive alguns flashs de lembranças da noite anterior, das nossas conversas, das risadas. Levantei-me tomando cuidado para não acordar Michel nem pisar na Natasha enquanto passava por cima dela e fui andando devagar até a cozinha, onde Fip estava:

—Bom dia. – falei baixinho enquanto abraçava meu próprio corpo para me proteger do frio que fazia aquela manhã.

—Bom dia. – ele respondeu.

Estava com a cara amassada, o cabelo desgrenhado, sem camisa. Eu gostava muito do corpo dele. Corpo de bailarino, musculatura definida, sem exagero de massa. Muito branco, sem pêlos. Eu gostava:

—Como passou a noite? – ele perguntou.

—Bem. E você?

—Também.

Ficamos um momento em silêncio:

—E então, conseguiu se entender melhor com seu menino? – ele perguntou.

—Acho que sim. – respondi sem jeito. Não queria demonstrar minha animação para ele. Sabia que existia alguma coisa entre nós dois, e falar abertamente sobre Michel não parecia fazer bem a nossa relação. – E seu primo? Onde está?

—No meu quarto. – ele disse.

—Imaginei.

—Que cara é essa? Está com ciúmes?

—Com ciúmes? Eu? Imagina, Fip. Eu só não sei o que você vê nele. – disse me sentando ao seu lado e encostando minha cabeça em seu ombro. – Seu cheiro é bom.

Ele passou a mão no meu rosto enquanto lia uma carta que segurava com a outra mão:

—Que carta é essa?

—É um convite da Dona Guilhermina para um chá. Estava pensando em aceitar.

Dei de ombros:

—Faça como quiser. – disse fechando os olhos – Eu não iria.

—Tudo bem. – ele disse – Não tinha pensado na possibilidade de você ir mesmo.

—Eu sei. Só quero deixar claro que eu não iria.

Ele beijou minha testa e afagou meus cabelos:

—Nem se eu pedisse?

—Você não pediria. Para isso teria que admitir que precisa de mim, e você nunca gosta de admitir coisas desse gênero.

—Vamos comigo? – ele disse passando o braço pelo meu ombro e me apertando forte, de modo que fizesse todo meu corpo responder.

—Sabe onde eu realmente queria ir com você?

—Não. Onde?

—Queria ver você dançar. Num teatro bem bonito e grande na capital.

Ele me abraçou com os dois braços e beijou minha bochecha:

—Você verá! Assim que as coisas se ajeitarem. Mas, por hora, não serve o meu porão? Tem todo um espaço de dança lá, posso dançar para você.

—De verdade?

—Sim. Só preciso me aquecer e me alongar antes.

—E você me ensina?

—Claro. – ele disse se levantando e me levando pela mão. – Vamos, vamos dançar.


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