Sangue escrita por Salomé Abdala


Capítulo 17
Capítulo 15 - Presentes, presentes...




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—Ai, por hoje chega né gente? Eu estou cansada. – disse Natasha mexendo os anéis dos dedos.

—Mas já? – disse Pierre. – Há tantas coisas que quero saber! Eu preciso saber! O que aconteceu com Fip?

—Ele se matou pulando de um prédio. – respondeu Natasha num tom ríspido.

—Bem, disso eu sei.

—Então, se você já sabe não tem problema esperar mais um pouco. – levantou-se – Vamos garotos?

Flavius e Michel se levantaram. Michel guardou o diário na mochila e saiu apressado. Flavius disse:

—Amanhã às duas da tarde. Tudo bem?

—Mas...

—Tudo bem sim. – disse Rebeca. – Estaremos lá, obrigada.

Saíram.

—Mas que droga, Rebeca. Se eu tivesse insistido um pouco mais...

—Ah, Pierre, larga de ser chato! Eu vou pro meu quarto escrever!

—Mas eu vou ficar sozinho? Onde está o Felipe? Por que ele não vem dar seu depoimento também?

—Eu que vou saber?

...

Esse Pierre é até bonito. Tem nele um tom de não sei o que. De gente que não sabe para onde quer ir. Eu acho que gosto disso.

—E então, para onde vocês vão agora? – perguntou Natasha.

—Ah eu vou voltar para casa. – disse Michel.

—Eu acho que eu também. – respondi parando no meio da escadaria e me virando para eles. – Engraçado, ainda me sinto coagido com a presença de Michel. Não tanto quanto antes, claro, mas ainda me dá um frio na espinha vê-lo.

—Ah, tem uma padaria 24 horas maravilhosa aqui perto. Por que não tomamos um café? Faz tanto tempo que não fazemos nada do tipo. – disse ela num tom saudoso que tornava difícil negar seu pedido.

—Ah, por mim tudo bem. – eu disse.

—Vamos então. – respondeu Michel já descendo as escadas vindo para perto de mim.

Natasha passou o braço pela minha cintura e abraçou Michel pelos ombros. Assim descemos as escadas e caminhamos até a padaria. É engraçada essa sensação, parece que esses anos não se passaram. De repente fui arrebatado pelo mesmo sentimento que tínhamos nas reuniões na casa do Fip. Essa sensação de liberdade, de leveza, sentir-me jovem, com esperanças... feliz.

Olho para Michel, para seu sorriso bonito, ele não mudou muito, fora o cabelo que está maior e as roupas mais despojadas. Consigo entender o porque de tê-lo amado tanto. Ele tem uma luz tão especial... tão cheia de vida que pede para ser amada. E como amei! Como me dilacerei por não tê-lo.

O clima estava agradável. Sempre amei a rua na madrugada. As luzes, a garoa, as poucas pessoas que saem ou chegam de festas espalhadas na cidade. Lembro-me de quando me mudei para essa cidade com Fip. Quando passei por essas ruas pela primeira vez, de como estávamos felizes, cheios de vida, de esperanças... essas ruas... quantas histórias vivi nelas... quanta vida minha está documentada na memória desses prédios...

—Poxa! Como pudemos deixar a coisa chegar a esse ponto? Por que nunca mais nos vimos? Por que nunca mais nos falamos? – disse Natasha– Precisamos nos ver mais vezes!

Ela parecia vibrante! Estávamos todos vibrantes!

—Com certeza. – disse Michel.

Mas seu tom era menos animado. Era um tom de ‘’seria ótimo mas temos tantas obrigações em nossas vidas corriqueiras que, com certeza, não teremos tempo para isso.’’. Eu me calei. Senti essa facada sem me manifestar... o tempo... como ele pode nos entorpecer tanto? Como podemos passar anos sem nos encontrar sem ao menos perceber que tanto tempo se passou? Como o dia a dia pode nos engolir tanto? Saudades do tempo em que o tempo não era assim, tão apressado, tão dado a nos tapear:

—Bem é aqui! Vamos entrar?

Entramos.

...

Flavius está tão diferente. Tão seguro, forte. Seu olhar nos enfrenta, nos afronta. Muito diferente daqueles olhares que se esquivavam e se abaixavam diante de nós. Ele ainda tem aquele tom de dor, de decepção. Aquele ar de quem leva a vida por levar... mas quem não leva? Natasha continua radiante, embora seu rosto já carregue alguma maturidade. Deve estar agora perto dos trinta anos. Não tem mais aquele ar de menina, já tem jeito de mulher:

—E como vai o casamento? – perguntei.

—Como deveria estar. – disse Flavius com naturalidade. É engraçado, mas ainda não me adaptei a ideia de ele estar casado com outro que não fosse Fip... ou eu... – O Gabriel é uma pessoa fácil de conviver, temos uma vida pacata... sem paixão. Não nos amamos realmente, não somos loucos um pelo outro, por isso nos fazemos companhia, nos entendemos bem, sabemos nos respeitar....

—É mais fácil viver assim com quem não ama. – disse Natasha. – A gente não leva as coisas pra um lado tão pessoal né?

—É verdade...

—Sabe que ainda não me acostumei a ideia? Acho que é porque ainda não o conheci.– disse.

—Acho que vocês não iam ver nada demais nele. Ele não tem nada a ver com o Fip ou... com você...

—Ah então é por isso que você não o ama! – disse Natasha rindo.

—Bingo! – ele respondeu e olhou para mim com um sorriso velado. Eu sorri de volta. – E você Natasha, não pensa em se casar?

—Deus me livre! Eu não tenho tempo nem de ficar sozinha! Aquele restaurante suga todo o meu tempo! Foi um sufoco conseguir um tempo para vir para cá! Eu fico preocupada de deixar tudo na mão da Branca, a minha gerente. Coitada ela fica toda louca! Ela me liga umas cinco vezes por dia! Ahahaha! Nós estamos com um cozinheiro novo, sabe? E ele ainda está se adaptando a tudo.

—Ah, mas deve ser muito ruim ficar sozinha, não?

—Ah eu gosto. Eu adoro chegar no meu apartamento à noite e não ter ninguém lá... bem, a noite não, de madrugada né. Porque agora nós estamos servindo jantar também e, nossa senhora, tem dias que terminamos de arrumar tudo quase às quatro!

—Nossa, então os negócios andam bem!

—Sim! O movimento anda cada vez maior! Lembra quando eu abri, Michel? Você foi o único que foi na inauguração! O Fip estava em turnê no Japão e mandou um buquê de flores e um cheque bem gordo para ajudar nas contas. E você Flavius, por que você não foi mesmo?

—Eu não lembro. Acho que foi na época eu estava em Buenos Aires.

—Ah sim, foi isso mesmo! Você tinha acabado de conhecer o Gabriel. E ele já aprendeu a falar bem o português?

—Ah sim, mas ainda tem o sotaque carregado... mas estamos pensando em voltar para a Argentina... ele recebeu uma boa proposta de emprego lá...

—Mas e você! E o seu trabalho?! – perguntei.

—Ah, eu arrumo outra coisa pra fazer por lá.

—Eu não acredito, Flavius! Não acredito que você vai largar tudo pra ir atrás desse cara!

—E por que não? Ele não largou tudo para vir para cá comigo? E além do mais, depois da morte do Fip eu não sei se ainda aguento morar por aqui.

—Morar por aqui? Você mora do outro lado do país! Pelo amor de deus, Flavius!

—Está com ciúmes, Michel?- disse Natasha.

—Ai, Natasha é claro que... bem... é, estou um pouco sim.

Flavius me encarou. Não disse nada, apenas me encarou. Natasha quebrou o silêncio:

—Mas vocês vão passar as férias comigo, não vão? Por favor, gente. Eu queria tanto ter vocês lá em casa! – disse segurando nossas mãos.

—Eu vou sim! – disse prontamente. – Assim que eu entrar de férias!

—Bem, eu não posso prometer muita coisa, mas juro me esforçar para ir.

—Já é um bom começo. – disse Natasha. – Você vai adorar minha cidade, Flavius. É até perigoso você não querer voltar mais para sua casa.

—Minha casa, na verdade, é aqui. – disse num suspiro - Não sei se me acostumo ao calor.

—É, tem isso. Lá é muito calor mesmo!

—É...

Ficamos em silêncio por alguns segundos:

—E seu trabalho, Michel? Como anda? – perguntou Flavius.

—Como sempre. Estreamos um espetáculo novo semestre passado, a temporada acabou há pouco tempo. Foi uma boa temporada, sabe. E fora isso ando dando aulas de teatro em uma escola perto da minha casa. Não é uma coisa que eu realmente gosto de fazer, mas ajuda a pagar as contas. Sabe, fazer teatro de vanguarda não dá muito dinheiro, então eu preciso encontrar essas outras saídas para me sustentar.

—Entendo...

Mais uma vez silêncio.

—Bem, eu acho que já vou. – disse Natasha – Estou muito cansada. E preciso acordar cedo amanhã. Beijos, beijos meus queridos. Vamos jantar juntos amanhã?

—Claro!

—Com certeza.

E ela se foi.

Permanecemos em silêncio por mais alguns minutos, eu brincando com os saches de açúcar vazios e Flavius misturando seu capuccino com a colher:

—Então Senhor Michel... – ele disse.

—E então...

—Agora somos só nos dois.

...


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