Sangue escrita por Salomé Abdala


Capítulo 16
Capítulo 14 - Para sentir seu leve peso




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‘’-Sabe,  - eu disse para o Flavius quando estávamos deitados no tapete – Tem uma coisa muito séria que eu quero te dizer.

—Diga.

—Eu sei que você tem lá seus momentos de histeria. Eu já vi acontecer duas vezes. Sabe, você quebrou minha casa, depois quase me quebrou inteiro. Tipo, sei lá, você teve uma vida difícil, eu quase consigo entender isso. Mas, se a gente vai continuar fazendo isso de ficar juntos, eu preciso que você me garanta que isso nunca vai acontecer de novo.

—Eu garanto. Juro.

—É sério, Flavius, eu passei a vida inteira apanhando do meu pai. Passei a vida inteira vendo ele bater na minha mãe. De jeito nenhum eu vou viver isso tudo de novo, ok?

—Você nunca tinha me contado isso do seu pai.

—E não vou contar agora. Eu só quero que fique bem claro. Eu gosto de você, eu gosto mesmo. Mas se isso acontecer de novo eu vou desaparecer da sua vida pra sempre, ouviu?

—Ouvi.

—Ótimo, então vamos.

Quando chegamos à minha casa, estavam todos lá, conversando na sala, com aquele ar de divertimento juvenil que tanto me agradava. Flavius, como sempre, ficou constrangido com o movimento, mas tentei não ligar. Estava de bom humor:

—Olha só quem chegou! – disse Natasha, já um pouco corada pela bebida.

—Gente esse é o Flavius, acho que todos vocês já o conhecem. – disse

—É o garoto que te deu uma surra! – respondeu Natasha rindo.

Flavius corou e abaixou a cabeça. Felipe olhou para ele com espanto, como se não acreditasse enquanto Michel parecia ignorar a informação. Eu ri. Não porque havia achado graça no comentário, mas porque não tinha o que dizer e queria fingir que não me importava com o fato.’’

...

—Eu não me lembro de ter dito isso. – disse Natasha – Que pesado.

—Eu me lembro. – retrucou Michel com um tom leve, como se degustasse a lembrança.

—Eu também. – disse Flavius com a cabeça baixa.

—E você ficou super sem graça, aposto! – disse Natasha.

—Sim. Queria sair correndo dali.

—Ah, acho bem feito.

Riram os três, num tom de familiaridade nostálgico. Há quanto tempo não se encontravam? Há quanto não riam juntos? Há anos atrás, suas vidas pareciam tão interligadas que todos julgavam impossível essa separação. Mas o tempo escorreu e seus mundos seguiram órbitas distintas. Tão diferentes que fora difícil para eles sorrirem juntos, dessa forma, em uníssono novamente. E agora que aconteceu, agora que o sorriso veio, acompanhado por aquelas lembranças, cada um deles (a sua maneira) se pôs a pensar em como haviam deixado as coisas chegarem ao ponto que chegou. Como eles, que se amavam, se protegiam e se gostavam tanto puderam chegar ao ponto que chegaram?

E aos poucos as fichas foram caindo, a separação, o tempo, a vida, eles tão amigos e agora quase estranhos... a morte... a vida que há tanto se encontrava tão distante... suicídio... morte... e a vida que correu por caminhos tão diferentes daqueles sonhados por esses jovens há anos atrás... por que o tempo é tão cruel? E assim as risadas foram secando e o silêncio se erguendo, imponente como o Sol da manhã. Rebeca e Pierre calados também, talvez perdidos em suas próprias lembranças juvenis.

Quanto tempo ficaram em silêncio? Segundos, horas, minutos? Não sabiam. O silêncio é o reflexo da eternidade e sua presença impede o tempo de correr. Talvez por isso o relógio da casa de Fip insistia em fazer tanto barulho, espalhando seu insistente tic-tac por toda mobília, por toda a ‘’família’’ por entre suas vidas. E foi no embalo do som do relógio que se encontraram os cinco pela primeira vez. Naquela tarde quente, em que Michel saiu de casa.

...

            -O Chico tá demorando né? – disse Natasha em um tom despreocupado, abandonando a taça vazia sobre a mesa de madeira e contemplando as flores do jardim.

            -Está sim. – concordou Felipe sem contemplar as plantas, olhando para o fogão à lenha há tanto tempo não usado. E pôs a refletir sobre seus antepassados que viveram ali. Sua avó, que ele gostava tanto e morreu tão cedo por causa da tirania do velho Francisco.

            Michel não respondeu. Estava ainda pensando na ultima conversa, na ultima risada. Fazia tempo que não ria assim. Olhou para Natasha, assustado com o silêncio que de repente se instalou, como se levasse um susto:

            -Vamos para a sala? – disse – O Sol está batendo muito forte aqui. – mentiu, na verdade não estava, mas gostaria de mudar de ambiente, por pura vontade de mudar.

            Concordaram todos, sem dizer uma palavra, apenas se levantaram, pegaram suas taças e a garrafa de vinho. Michel foi na frente, leve, solto.

            -Alguém me ajuda com o degrau? – disse Natasha tentando descer sozinha.

            Michel a ajudou e prosseguiu levando-a até a sala

            -Quer sentar no chão?

            -Ah eu quero, vai que eu bebo demais e caio daqui! – riu.

            Felipe ajudou a colocar Natasha no chão e ali ficaram em círculo, conversando sobre tantas coisas sem significado. Falando tanto sobre coisa nenhuma. Preenchendo seu tempo, suas vidas. Pareciam tão íntimos, tão companheiros, tão inseparáveis. Os três, ali, rindo de suas vidas, transformando todas as desgraças em piadas, sentindo o leve peso do viver.

...

            -Gente, esse é o Flavius, acho que todos vocês já o conhecem. – disse Fip depois de entrar.

            Engraçado como eu nunca tinha reparado no Flavius antes. Não no sentido de nunca ter notado sua presença, mas no sentido de nunca ter reparado no quanto ele era bonito. Não sei se era a bebida, a descontração do momento, ou a companhia do Fip, mas havia algo iluminando Flavius, aquele menino estranho que todos já haviam se acostumado a ignorar.

            Ele entrou de cabeça baixa. Depois corou e levou muito tempo para parecer à vontade. É estranho, mas me parecia que minha presença fazia ele ficar menos à vontade. Talvez por eu ser da cidade ele pense que eu compartilho da mesma opinião que a maioria dos moradores daqui tem. Talvez ele se sinta oprimido por pensar que eu também fazia piadinhas sobre ele:

            -Oi, Flavius! – disse para tentar fazer ele ficar mais à vontade – Senta aqui com a gente.

            Ele resistiu. Olhou pra mim com espanto, corou mais um pouco e abaixou mais a cabeça. Fip deu um empurrãozinho nele e disse:

            -Vamos, Flavius, vamos nos sentar. – E Fip se sentou ao lado de Felipe, seu primo. E Flavius se sentou ao meu lado.

            -Tudo bem? – eu perguntei, tentando ser simpático para mostrar que eu não tinha nada contra ele – Como sua tia está?

            -Tu...tudo bem. Ela... ela ta bem... também.

            Ele ficou um tempão em silêncio. Eu não sabia o que dizer. Natasha, Felipe e Fip pareciam estar desenvolvendo um diálogo tão divertido. Eu queria me entrosar no assunto, mas não podia deixar Flavius sozinho no seu silêncio Não sabia exatamente como ajuda-lo a se sentir melhor.

...

            Logo que eu entrei vi Michel sentado no chão, com aquele primo esquisito do Fip e a menina que a gente salvou. Eles pareciam estar se divertindo tanto. Tão soltos um com o outro. Cheguei a invejar isso tudo. Queria ficar solto assim com Michel. Conversar despreocupado com ele. Fazer ele rir, me notar, gostar de mim...

—Gente esse é o Flavius, acho que todos vocês já o conhecem. – disse Fip me expondo mais do que eu queria ser exposto. Agora estavam todos olhando para mim!

—É o garoto que te deu uma surra! – disse a menina rindo. E o Michel olhou para mim assustado! Droga, todos na cidade já pensavam que eu era louco. Agora com isso, ele vai realmente pensar que eu sou um desequilibrado.

Eu não sabia onde enfiar a cara. Queria sair correndo dali. Odeio ser feito de idiota em público. Ainda mais na frente do Michel. Fip riu também. Eu odiei isso! Como ele podia rir assim de mim? Ainda mais depois do que tinha acabado de acontecer entre a gente! Foi ai que eu me lembrei: tinha acabado de transar com o Fip, e agora estava aqui, querendo conversar com o Michel! Me senti sujo, vadio, um animal!

Eu gostava do Fip, e sentia por ele um desejo incontrolável! Ele era tão bonito, tinha um corpo tão perfeito, torneado, cheio de curvas bonitas, bem desenhado. Um cheiro forte, olhos profundos. E ele sabia me pegar de um jeito! Eu não sabia explicar. Mas Fip me enchia de desejo e prazer. Eu não resistia a ele, não resistia a seus olhos e ao seu sorriso, até mesmo a sua mania de implicar, de me irritar... seu jeito de me entender, de saber quem realmente sou e ainda gostar de mim!

Mas com Michel era diferente! Por ele eu sentia uma coisa pura, diferente. Ele era tão angelical, tão perfeito em suas feições! Por ele eu queria ser uma pessoa melhor, mais feliz, mais divertida. Ele me fazia querer ser outra pessoa. Uma pessoa melhor! E eu o amava por isso!

Ele sorriu para mim e pediu para que eu me sentasse com eles. Fiquei sem graça, sem saber o que fazer. Fip se sentou primeiro, ao lado daquele primo feio dele. Deixando o lugar ao lado de Michel para mim. Ou será que ele queria mesmo era se sentar ao lado do seu primo? Não quis dar na vista, por isso tentei não olhar para eles, mas reparei que Fip o abraçou ao sentar. Não gostei daquilo. Como Fip poderia agir desse jeito logo depois de nós termos transado?Será que eu não signifiquei nada para ele? E agora esse garoto ficaria morando aqui. Livre para transar com Fip quando quisesse! Por quanto tempo isso aconteceria? Senti muita raiva! Mas não quis demonstrar.

Michel perguntou por minha tia. Nem lembro o que respondi. Queria esmurrar aquele primo cretino do Fip. Aquele oferecido idiota, todo se jogando pra cima do Fip. Idiota! Ele e o Fip conversavam tão naturalmente. Evidente, eles eram primos, deviam ter muitas histórias para compartilhar. Muitas recordações de infância, de muitas cenas e lugares onde não estive. Como eu poderia competir com tudo isso?

—Você vai ficar aí em silêncio?

Disse aquela menina pra mim. Como ela era atrevida! Eu não tinha dado a ela essa liberdade toda! Eu não gostava dela. Ela parecia tão vulgar, tão cheia de si... parecia o Fip, mas um pouco menos elegante. Uma versão mais baixa do Fip, era isso que ela era. Michel entrou na onda do comentário e disse:

—É mesmo. – pegou na minha mão. Seus dedos eram macios, leves, tocavam-me como se eu fosse uma pluma, uma seda, ou qualquer coisa de fino trato. Era macio, aveludado, tinha uma temperatura amena, nem tão quente como era o corpo do Fip, nem tão gelado como era o meu. Era agradável. – Conversa com a gente.

Sorri para ele e respondi:

—Vou conversar. Eu demoro um pouco para ficar à vontade.

—Eu entendo, normalmente eu também sou assim.

Meu coração batia acelerado. Será possível que estivesse realmente acontecendo? Estávamos mesmo conversando? Ele estava ali, todo leve e entregue a mim. Um terreno aberto para que eu nele caminhasse. E estava, de fato dando meus primeiros passos? Um pouco inseguros, um pouco desconfortáveis, mas logo eu me acostumaria ao terreno e aprenderia a caminhar livremente por ele! Será possível? Poderia mesmo ser real?

A menina, que se chamava Natasha, disse:

—Bebe um pouco, assim você fica à vontade mais rápido.

—Acho melhor não. – respondi.

—Ah, eu acho uma boa idéia. Espera aí. – ele pegou uma taça, encheu-a com vinho e me entregou. Nossos corpos estavam muito próximos um ao outro, de modo que eu podia sentir seu calor. Fiquei levemente excitado, senti um calafrio me subir à espinha. Foi quando olhei para Fip e ele também parecia muito próximo de seu primo. Será que ele estava excitado também? Que droga! Por que esse menino tinha que estar aqui? – Toma – ele disse – Bebe um pouquinho.

Peguei a taça e agradeci. Bebi um gole olhando para ele, que por sua vez continuou olhando para mim. É impressão minha ou ele estava dando moral para mim? Será que ele estava interessado ou eu estava enxergando as coisas assim porque queria? É estranho, ao passo que tudo parecia um sinal, ao mesmo tempo parecia não ser. Seu jeito de me olhar, de me tratar de me sorrir.... me tornar uma pessoa melhor... é engraçado como ele me fazia me sentir assim...

...

‘’Foi uma noite bonita. Cantamos, dançamos, rimos. Até Flavius estava solto e leve. Dançando e sorrindo, fazendo comentários engraçados. Natasha e seu senso de humor sagaz, Michel e sua beleza plena e Felipe com todas as nossas lembranças. Uma noite mágica, cheia de risos. Seguimos brincando até umas quatro da manhã, quando, um por um fomos vencidos pelo álcool. Estávamos assistindo a um filme, não me lembro qual. Natasha esticada no sofá, e nós, os meninos, amontoados no tapete no chão. Nossos corpos todos muito próximos, misturando o cheiro de nossos corpos com o do vinho de nossas bocas. Ao poucos foram dormindo, um por um. Natasha foi a primeira, seguida pelos outros.

Eu não. Cochilei de leve e logo acordei. Minhas costelas ainda doíam por causa da surra. Levantei-me e fui até a cozinha beber um chá. Depois pretendia ir para minha cama me deitar. Flavius estava deitado sob o peito de Michel. Engraçado como isso não me incomodou. Cheguei à cozinha e observei o quintal pela janela, e fiquei refletindo sobre a vida. É engraçado como a nossa vida continua mesmo na iminência da morte. Estranho pensar em como as coisas seguem independente da nossa presença ou da presença de qualquer um... ninguém é insubstituível... a vida tem seu próprio mecanismo, seu próprio organismo que funciona independente de estarmos aqui ou não:

—Pensando em quê?

Disse Felipe entrando na cozinha:

—Na vida, e na morte.

—Engraçado, pensava nisso também. Francis, me desculpe.

—Por que?

—Eu menti para você. Sobre o porque de eu estar aqui.

—Eu imaginei. – disse puxando-o para mais perto de mim, abraçando-o afagando seus cabelos. – Quer me dizer a verdade?

—Ainda não.

—Como quiser.

Ele afastou a cabeça do meu peito e disse olhando para mim:

—Por que você fez isso comigo? Por que me abandonou assim? Eu te amava tanto Francis, precisava tanto de você!

Não soube o que responder. Eu o abandonei porque não o amava tanto assim. Eu o amava isso é fato, mas não a ponto de me contentar em viver só com ele. Sua presença não me preenchia e logo me entediava, de modo que eu tinha que procurar outras pessoas para me distrair. E todo esse amor, toda essa dependência me enchiam o saco, e eu logo arrumava um jeito de fugir. Mas, evidente, eu não podia dizer isso a ele. Na verdade eu podia, e até já tinha dito quando nos separamos. Mas é engraçado como as pessoas gostam de tocar na ferida, gostam de ver suas almas pegar fogo. Passei a mão nos seus cabelos e disse:

—Porque as coisas tinham que ser assim. Você me conhece, Felipe, eu sou assim, não consigo ficar preso as coisas.

—É, eu sei. – ele disse se afastando, pegando para ele um pouco de chá. – Eu sofri tanto nesses anos. Queria tanto me vingar de você. Por ter me largado, por ter me trocado pelo nosso tio!

—Opa, espera aí. Eu não te larguei, Felipe. Sua mãe te mandou para outro estado. Nossa família separou a gente!

—Você podia ter ido atrás de mim Fip.

—Podia é? Você não conhece meu pai não, seu animal?

Ele abaixou a cabeça sem saber o que dizer, depois de um tempo disse:

—Mas também não precisava ter me escrito aquela carta. Não precisava ter me dito que estava ficando com nosso tio.

—Foi pra você não alimentar falsas esperanças. A situação já era toda tão difícil, não tinha porque a gente ficar se apegando a essas ilusões. Eu fiz aquilo pra esquecer tudo que estava acontecendo, e achava que você precisava esquecer também! E, a propósito, eu nunca fiquei com o nosso tio.

—Engraçado como você se parece com seu pai.

Ele disse isso pra me ferir, eu sei que disse. Mas essa noite eu estava tão sereno que nem me irritei. Apenas senti pena... de nós, de mim, de tudo o que aconteceu. Quase senti vontade de pedir para que ele ficasse comigo. Mas parece que nossa história não cabia mais em nossas vidas. Parece que não havia mais espaço para nós dois. Fiquei sem saber o que dizer. Ficamos ali, os dois, estacionados em nossos pensamentos, tomando chá, com os olhares perdidos no infinito:

—Eu te amo. – eu disse, sem me importar com o futuro. Sabia que não poderíamos ficar juntos, mas, naquele momento, naquele eterno momento, tudo o que eu queria era poder dizer. – Eu te amo. Obrigado por ter vindo.

—Eu te amo também. – ele me abraçou. – Me desculpe por ter vindo!

—Você me fudeu legal não foi? – perguntei.

—Sim, eu queria me vingar.

—O que exatamente você fez?

—Contei para o seu pai onde você estava.

—Que se foda. Uma hora ele ia descobrir mesmo! Afinal de contas eu nem me escondi tão bem assim.

—Ele vai matar você?

—É provável que ele tente.

—Me desculpe.

—Não se preocupe. O importante é que você está aqui.

Sorri para ele. Beijei sua testa e subimos para o meu quarto de mãos dadas.

Felipe sempre foi assim, sempre meteu as mãos pelos pés e depois se arrependeu. Não é a primeira vez que ele me mete numa furada. Não será a última vez que o perdoo por isso...’’

...

 

 


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